Anoto este facto, entre outros, no meu caderno, para futuras referências. Quando for grande terei sempre comigo um espesso caderno de notas com numerosas páginas metodicamente dispostas por ordem alfabética. Aí escreverei as minhas notas. Na letra B, haverá por exemplo "Borboletas brancas reduzidas a pó". Se no meu romance tiver que descrever um raio de sol num parapeito da janela, irei ver a letra B e lá encontrarei as palavras "Borboletas brancas reduzidas a pó". Há-de ser-me útil.
Virginia Woolf, As Ondas.
29 de abril de 2015
28 de abril de 2015
uma amiga conta-me ao telefone que a segunda feira é difícil para ela. sem a interromper, ouço-a falar de um estado de torpor de que não consegue libertar-se e que, diz, normalmente desaparece no dia seguinte, tão inexplicavelmente como apareceu. «fico sentada na cama apenas a olhar mas sem pensar. vejo as mãos, olho para as mãos; vejo a dobradiça, olho para a dobradiça. e o tempo passa, assim, até que a certa altura percebo que o tempo passou e eu não me mexi». aterrorizada, enquanto a oiço revejo-me de pé à entrada da sala, minutos antes de receber a chamada, sem conseguir dar um passo para a frente ou para trás embora perfeitamente consciente da indolência, ao longo de, percebi já ao telefone com sobressalto, quase uma hora. há qualquer coisa de reconfortante em não estar louco sozinho. é como naquela velha máxima, «vamos ao fundo mas vamos todos juntos ao fundo.»
estou a tomar o pequeno almoço quando percebo que esse torpor está a chegar e olho através da janela, procurando uma fuga. um raio de sol maciço pousa sobre a roupa branca no estendal e faz ricochete na peça de metal de uma das molas. o azul do céu faz lembrar um dia de verão, brilhante e pesado. não se ouve nada. quando volto a ter consciência de mim, reparo que sorrio tenuemente, mas que o nó na garganta se mantém. como posso honrar tanta beleza?
já no final do dia, decido enfim sair de casa. levo um livro na mão. é um livro que quero muito ler, que tenho medo de ler. já me aconteceu o mesmo antes com outros livros que, tal como este, apesar de terem sido escritos por outrem, existem em mim. talvez tenha medo de ser desapontada. talvez não queira que o escritor tenha falhado onde eu falho e vou protelando a abertura das páginas enquanto seguro o livro nas minhas mãos com o coração extasiado, como quando vamos ao primeiro encontro de um amor que acaba de começar. e então ele diz «Olhei para a fachada, a fachada, a fachada» e eu resplandeço. escreve «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e tenho vontade de rir, porque a perfeição dá vontade de rir. chama a um poema BREVE PAUSA NO CONCERTO DE ÓRGÃO* e sou eu. estou sentada no café numa hora de vazio, leio nesse livro «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e aquilo é a minha jangada em mar alto (alto porque não tem fundo, ou não sei se tem, mas mar não deve ser porque não vejo água e o horizonte é apenas isso, horizonte). corro para casa, exaltada, feliz, como se tudo fosse possível. mas para que quero eu tanto escrever? aqui há tempos fui a uma conferência onde um escritor dizia que só acreditava em escritores que publicam, que mostram, que copiam, que procuram dialogar ativamente com o seu tempo e com os seus contemporâneos. na altura aquilo deixou-me a pensar «se calhar é isso que me faz falta, ser um pouco menos invisível», mas nunca cheguei a alterar alguma coisa, na verdade, creio que nem sequer cheguei a querer alterar. gosto deste pequeno buraco húmido onde não vem ninguém. não tenho a força necessária para deixar um livro no mundo e está bem assim. não quero usar a escrita para nada. qualquer ruído me é insuportável e um livro não pode ser publicado sem ruído. é como se caminhasse precisamente em sentido contrário a esse: quero escrever sobretudo quando até eu deixar de ler o que escrevo. sempre achei que mal o esperasse, o ímpeto desapareceria mas, pelo contrário, parece agravar-se. aconteceu por acaso, nada disto se presta à compreensão. como um pintor que procura acertar na cor, mantenho simultâneas a dificuldade e o desejo de dizer. existe em mim uma correspondência perfeita entre a asfixia e a libertação, entre a agonia e a aurora. seja como for, é a única vontade, a razão pela qual ainda me vou interessando por perceber alguma coisa do mundo e por permanecer nele. por pobre razão que seja, não precisa de validação.
*Versos e título de poemas de Tomas Tranströmer.
estou a tomar o pequeno almoço quando percebo que esse torpor está a chegar e olho através da janela, procurando uma fuga. um raio de sol maciço pousa sobre a roupa branca no estendal e faz ricochete na peça de metal de uma das molas. o azul do céu faz lembrar um dia de verão, brilhante e pesado. não se ouve nada. quando volto a ter consciência de mim, reparo que sorrio tenuemente, mas que o nó na garganta se mantém. como posso honrar tanta beleza?
já no final do dia, decido enfim sair de casa. levo um livro na mão. é um livro que quero muito ler, que tenho medo de ler. já me aconteceu o mesmo antes com outros livros que, tal como este, apesar de terem sido escritos por outrem, existem em mim. talvez tenha medo de ser desapontada. talvez não queira que o escritor tenha falhado onde eu falho e vou protelando a abertura das páginas enquanto seguro o livro nas minhas mãos com o coração extasiado, como quando vamos ao primeiro encontro de um amor que acaba de começar. e então ele diz «Olhei para a fachada, a fachada, a fachada» e eu resplandeço. escreve «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e tenho vontade de rir, porque a perfeição dá vontade de rir. chama a um poema BREVE PAUSA NO CONCERTO DE ÓRGÃO* e sou eu. estou sentada no café numa hora de vazio, leio nesse livro «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e aquilo é a minha jangada em mar alto (alto porque não tem fundo, ou não sei se tem, mas mar não deve ser porque não vejo água e o horizonte é apenas isso, horizonte). corro para casa, exaltada, feliz, como se tudo fosse possível. mas para que quero eu tanto escrever? aqui há tempos fui a uma conferência onde um escritor dizia que só acreditava em escritores que publicam, que mostram, que copiam, que procuram dialogar ativamente com o seu tempo e com os seus contemporâneos. na altura aquilo deixou-me a pensar «se calhar é isso que me faz falta, ser um pouco menos invisível», mas nunca cheguei a alterar alguma coisa, na verdade, creio que nem sequer cheguei a querer alterar. gosto deste pequeno buraco húmido onde não vem ninguém. não tenho a força necessária para deixar um livro no mundo e está bem assim. não quero usar a escrita para nada. qualquer ruído me é insuportável e um livro não pode ser publicado sem ruído. é como se caminhasse precisamente em sentido contrário a esse: quero escrever sobretudo quando até eu deixar de ler o que escrevo. sempre achei que mal o esperasse, o ímpeto desapareceria mas, pelo contrário, parece agravar-se. aconteceu por acaso, nada disto se presta à compreensão. como um pintor que procura acertar na cor, mantenho simultâneas a dificuldade e o desejo de dizer. existe em mim uma correspondência perfeita entre a asfixia e a libertação, entre a agonia e a aurora. seja como for, é a única vontade, a razão pela qual ainda me vou interessando por perceber alguma coisa do mundo e por permanecer nele. por pobre razão que seja, não precisa de validação.
*Versos e título de poemas de Tomas Tranströmer.
27 de abril de 2015
26 de abril de 2015
25 de abril de 2015
24 de abril de 2015
Estive a ver a minha cronologia do Facebook para trás e, ao contrário do que normalmente acontece quando recordo coisas que disse ou escrevi, fiz tanto sentido que a determinado momento me vi confinada a um corredor de tempo com um lapso temporal único. A sensação de estar finalmente em identificação comigo mesma, provocou-me uma vertigem intensa, daquelas que tocam o coração e tornam familiar a profundidade da paisagem. Contudo, a vertigem não só era insuficiente para que pudesse deixar subitamente de estar de acordo comigo, como me transmitia conforto. Com uma inflexível estabilidade, a vertigem era esse conforto.
Só conheci três pessoas que falavam sem diferenças entre si e o que diziam. Um discurso limpo, sem ilusões.
A primeira vez que aconteceu eu andava pelo bairro alto sozinha, e entrei num bar com uma livraria de filosofia onde por vezes se realizavam conversas. Estava cheio, o bar era recente e estava na moda. Uma ténue nuvem de fumo branco começava a instalar-se dentro das paredes cor de rosa. Dirigi-me ao balcão sem dinheiro mas confiante. Conhecia o barman, tinha sido meu professor. Era uma daquelas pessoas que gostam de seduzir portanto nada seria tão fácil como conseguir uma imperial de graça. Voltei-me para o bar meio imerso na escuridão e atravessei-o lentamente. Passei por alguns livros no chão ao lado de uma cadeira de vime e parei à porta para fumar um cigarro. Estava sozinha. É uma recordação forte a desta solidão, talvez me sentisse sozinha. Lembro-me que foi nesse dia que conheci a Filipa. A Filipa tinha acabado de chegar de Paris, mas agora eu ainda não a conhecia. Era uma mulher morena, cabelo negro, o nariz muito fino, olhos chinesados. Ainda me lembro do cheiro dela, a amêndoas. Tinha pequenas borbulhas no rosto, perto do nariz, o cabelo muito liso e negro, os olhos escuros, uma voz rouca e suave, no tom preciso da voz que eu adorava nas mulheres. Tinha acabado de se divorciar, como eu tinha acabado de me separar, como eu tinha acabado de chegar de Paris e portanto percebia coisas como xenofobia, violência e machismo mesmo sem se falar delas. A primeira coisa que me disse, depois de se dirigir a mim entre a multidão, deixando três rapazes pendurados a meio da conversa no seu encalço, foi: «Queres vir fumar uma?». Lembro-me agora que era uma boa sensação de solidão: entrar no bar lentamente, sem ser notada, atravessá-lo, ver tudo, dar um golo na cerveja, ninguém me conhecer, eu não conhecer ninguém, poder sair dali sozinha para outro lugar. Era uma liberdade assombrosa. Estávamos no início da primavera, o ar tinha um cheiro doce, nessa noite bastante carregado por causa do calor. Eu era tão jovem, e sabia-o. Não me lembro exatamente como começou, sei que a certa altura o ex-professor anuncia com muita pompa alguém que vai falar. Fiquei feliz por afinal haver qualquer coisa nessa noite pois a música e as vozes cessariam. Sem prestar atenção ao que dizia, sentei-me no chão, diante da cadeira da pessoa que ia falar, que tinha o cabelo comprido grisalho, sobrancelhas negras e um rosto longo com muitos sinais. Não me lembro de nada do que disse e nunca o consegui esquecer. Uma a uma, as suas palavras penetravam o meu corpo como sopros de vida, dirigiam-se ao meu coração como setas se dirigem ao centro do alvo e fulminavam as minhas hesitações. Achei que ele era um mago. E como é que as pessoas não o sabiam, como é que não andavam multidões atrás daquele homem, quem era aquele homem? Perguntei-me se todos estariam a ouvir o mesmo que eu, achei que no cérebro dele devia haver qualquer coisa muito bela e não compreendia que não se falasse disso todos os dias como se fala em belos pores do sol. Revoltava-me a possibilidade de ser a única a sabê-lo, a ouvi-lo. Quando se calou, abriram espaço a perguntas e não fui capaz de mexer uma pestana para articular uma palavra. Não se podia dirigir a palavra a um ser daqueles por uma razão trivial e eu não tinha nada para dizer a não ser «não te cales», o que, por timidez, não disse, com receio de denunciar a espécie de admiração em que estava imergida. Tentei saber quem era, pois não tinha prestado atenção à apresentação inicial, mas o tempo acabou por apagar o nome, ficando o rosto e a profissão. Quando saí do bar, procurei uma explicação para o que tinha acabado de acontecer. Que espécie de discurso era aquele? Não pude encontrar resposta. Eu queria falar assim. E ali estava, diante de mim e em plena evidência, a confirmação de que tinha estado certa ao decidir regressar. Reencontrei-o há uns dias, por acaso, mal ele soubesse a certeza — e enfim, a vontade — que mantive todos estes anos, de um dia voltar a ouvi-lo.
O segundo encontro ocorreu vários anos depois, mas igualmente num dia de boa solidão. Fui ouvir uma conferência ao calhas, sem sequer conhecer o tema ou os oradores. A última pessoa que falou é a pessoa mais audaz que conheci na minha vida. Um homem velho, de cabelo grisalho, um pouco despenteado, gordo, com um fato completo de fazenda castanho, muito sereno, que durante toda a conferência tinha estado em silêncio, olhando em redor com delicada atenção aos pormenores. Embora verdadeiro, o que ele disse entrava em choque frontal com aquilo que a grande maioria das pessoas que ali estava defendiam, por desmascarar a fragilidade da estrutura e revelar a fraude dos seus argumentos. Na verdade tratava-se de uma coisa muito simples, que estava à mostra e que qualquer criança compreenderia. Falou pausadamente, olhando para a plateia do anfiteatro, não leu nada. Tinha as mãos pousadas em cada um dos braços da cadeira e, encostado a ela, mostrava-se descontraído. Ao observá-lo, ocorreu-me que poderia estar em casa a ver os netos brincar. Contudo, o que disse foi tão forte que quebrou todas as minhas resistências e, aninhada na cadeira azul, eu cedi. A simplicidade, a pobreza, a ousada escolha dos conceitos, a clareza comovente das suas palavras, tornaram evidente que estava a viver um momento único na minha vida. Logo depois do primeiro silêncio, cuja duração confirmava a veracidade daquilo que todos tinham ouvido, as reações começaram, precipitadas, com a prepotência esperada. As vozes sobrepunham-se, havia quem procurasse acalmar este ou aquele e preservar as aparências. Absolutamente indiferente à confusão instalada, vejo-o voltar a cabeça na minha direção e olhar diretamente para mim, que não tinha desviado os olhos dele por um instante. Não olhou por acaso, não encontrou por acaso o meu olhar enquanto olhava para as pessoas na plateia, olhou sim deliberadamente, como se tivesse estado sempre consciente da minha presença, secreta e marginal, naquela cadeira azul. Olha-me nos olhos e assim fica, no meio da confusão, assim ficamos, a olhar um para o outro, praticamente até a sala ficar vazia. Sobre o meu rosto impassível, as lágrimas caiam como rios que transbordam. Nesse dia escrevi hoje foi um dia extraordinário. Kairos — «essa hora estranha» — que impele ao silêncio e à atenção. essa hora em que nos vemos, tu e eu, aqui e agora, vivos.
A terceira pessoa que mencionei foi na realidade a primeira. Foi também nessa tarde que ri, com ela, o melhor riso da minha vida, pois finalmente alguém tinha respondido à minha obstinada pergunta.
Só conheci três pessoas que falavam sem diferenças entre si e o que diziam. Um discurso limpo, sem ilusões.
A primeira vez que aconteceu eu andava pelo bairro alto sozinha, e entrei num bar com uma livraria de filosofia onde por vezes se realizavam conversas. Estava cheio, o bar era recente e estava na moda. Uma ténue nuvem de fumo branco começava a instalar-se dentro das paredes cor de rosa. Dirigi-me ao balcão sem dinheiro mas confiante. Conhecia o barman, tinha sido meu professor. Era uma daquelas pessoas que gostam de seduzir portanto nada seria tão fácil como conseguir uma imperial de graça. Voltei-me para o bar meio imerso na escuridão e atravessei-o lentamente. Passei por alguns livros no chão ao lado de uma cadeira de vime e parei à porta para fumar um cigarro. Estava sozinha. É uma recordação forte a desta solidão, talvez me sentisse sozinha. Lembro-me que foi nesse dia que conheci a Filipa. A Filipa tinha acabado de chegar de Paris, mas agora eu ainda não a conhecia. Era uma mulher morena, cabelo negro, o nariz muito fino, olhos chinesados. Ainda me lembro do cheiro dela, a amêndoas. Tinha pequenas borbulhas no rosto, perto do nariz, o cabelo muito liso e negro, os olhos escuros, uma voz rouca e suave, no tom preciso da voz que eu adorava nas mulheres. Tinha acabado de se divorciar, como eu tinha acabado de me separar, como eu tinha acabado de chegar de Paris e portanto percebia coisas como xenofobia, violência e machismo mesmo sem se falar delas. A primeira coisa que me disse, depois de se dirigir a mim entre a multidão, deixando três rapazes pendurados a meio da conversa no seu encalço, foi: «Queres vir fumar uma?». Lembro-me agora que era uma boa sensação de solidão: entrar no bar lentamente, sem ser notada, atravessá-lo, ver tudo, dar um golo na cerveja, ninguém me conhecer, eu não conhecer ninguém, poder sair dali sozinha para outro lugar. Era uma liberdade assombrosa. Estávamos no início da primavera, o ar tinha um cheiro doce, nessa noite bastante carregado por causa do calor. Eu era tão jovem, e sabia-o. Não me lembro exatamente como começou, sei que a certa altura o ex-professor anuncia com muita pompa alguém que vai falar. Fiquei feliz por afinal haver qualquer coisa nessa noite pois a música e as vozes cessariam. Sem prestar atenção ao que dizia, sentei-me no chão, diante da cadeira da pessoa que ia falar, que tinha o cabelo comprido grisalho, sobrancelhas negras e um rosto longo com muitos sinais. Não me lembro de nada do que disse e nunca o consegui esquecer. Uma a uma, as suas palavras penetravam o meu corpo como sopros de vida, dirigiam-se ao meu coração como setas se dirigem ao centro do alvo e fulminavam as minhas hesitações. Achei que ele era um mago. E como é que as pessoas não o sabiam, como é que não andavam multidões atrás daquele homem, quem era aquele homem? Perguntei-me se todos estariam a ouvir o mesmo que eu, achei que no cérebro dele devia haver qualquer coisa muito bela e não compreendia que não se falasse disso todos os dias como se fala em belos pores do sol. Revoltava-me a possibilidade de ser a única a sabê-lo, a ouvi-lo. Quando se calou, abriram espaço a perguntas e não fui capaz de mexer uma pestana para articular uma palavra. Não se podia dirigir a palavra a um ser daqueles por uma razão trivial e eu não tinha nada para dizer a não ser «não te cales», o que, por timidez, não disse, com receio de denunciar a espécie de admiração em que estava imergida. Tentei saber quem era, pois não tinha prestado atenção à apresentação inicial, mas o tempo acabou por apagar o nome, ficando o rosto e a profissão. Quando saí do bar, procurei uma explicação para o que tinha acabado de acontecer. Que espécie de discurso era aquele? Não pude encontrar resposta. Eu queria falar assim. E ali estava, diante de mim e em plena evidência, a confirmação de que tinha estado certa ao decidir regressar. Reencontrei-o há uns dias, por acaso, mal ele soubesse a certeza — e enfim, a vontade — que mantive todos estes anos, de um dia voltar a ouvi-lo.
O segundo encontro ocorreu vários anos depois, mas igualmente num dia de boa solidão. Fui ouvir uma conferência ao calhas, sem sequer conhecer o tema ou os oradores. A última pessoa que falou é a pessoa mais audaz que conheci na minha vida. Um homem velho, de cabelo grisalho, um pouco despenteado, gordo, com um fato completo de fazenda castanho, muito sereno, que durante toda a conferência tinha estado em silêncio, olhando em redor com delicada atenção aos pormenores. Embora verdadeiro, o que ele disse entrava em choque frontal com aquilo que a grande maioria das pessoas que ali estava defendiam, por desmascarar a fragilidade da estrutura e revelar a fraude dos seus argumentos. Na verdade tratava-se de uma coisa muito simples, que estava à mostra e que qualquer criança compreenderia. Falou pausadamente, olhando para a plateia do anfiteatro, não leu nada. Tinha as mãos pousadas em cada um dos braços da cadeira e, encostado a ela, mostrava-se descontraído. Ao observá-lo, ocorreu-me que poderia estar em casa a ver os netos brincar. Contudo, o que disse foi tão forte que quebrou todas as minhas resistências e, aninhada na cadeira azul, eu cedi. A simplicidade, a pobreza, a ousada escolha dos conceitos, a clareza comovente das suas palavras, tornaram evidente que estava a viver um momento único na minha vida. Logo depois do primeiro silêncio, cuja duração confirmava a veracidade daquilo que todos tinham ouvido, as reações começaram, precipitadas, com a prepotência esperada. As vozes sobrepunham-se, havia quem procurasse acalmar este ou aquele e preservar as aparências. Absolutamente indiferente à confusão instalada, vejo-o voltar a cabeça na minha direção e olhar diretamente para mim, que não tinha desviado os olhos dele por um instante. Não olhou por acaso, não encontrou por acaso o meu olhar enquanto olhava para as pessoas na plateia, olhou sim deliberadamente, como se tivesse estado sempre consciente da minha presença, secreta e marginal, naquela cadeira azul. Olha-me nos olhos e assim fica, no meio da confusão, assim ficamos, a olhar um para o outro, praticamente até a sala ficar vazia. Sobre o meu rosto impassível, as lágrimas caiam como rios que transbordam. Nesse dia escrevi hoje foi um dia extraordinário. Kairos — «essa hora estranha» — que impele ao silêncio e à atenção. essa hora em que nos vemos, tu e eu, aqui e agora, vivos.
A terceira pessoa que mencionei foi na realidade a primeira. Foi também nessa tarde que ri, com ela, o melhor riso da minha vida, pois finalmente alguém tinha respondido à minha obstinada pergunta.
23 de abril de 2015
num trabalho de estatística leio a meio de uma frase: a simetria (ou anonimato) e faz-se luz.
ainda ontem, a meio de uma conversa com um amigo, me deixei sobressaltar ao proferir as palavras de que toda a gente gosta, quer dizer, do comum, sobressalto de espanto, como em criança acontecia frequentemente perante expressões da minha avó, cuja audição, para grande suplício dos adultos, me impedia de comer, de falar e me fizeram descobrir o riso. estas formas, que regulam o juízo e a condição de possibilidade do conhecimento, parecem ter a mesma origem. mas não é isso que me atrai nelas. o que me atrai é a resposta da minha sensibilidade a cada uma delas, que as constitui em última análise numa dupla sobreposição de oposições.
ainda ontem, a meio de uma conversa com um amigo, me deixei sobressaltar ao proferir as palavras de que toda a gente gosta, quer dizer, do comum, sobressalto de espanto, como em criança acontecia frequentemente perante expressões da minha avó, cuja audição, para grande suplício dos adultos, me impedia de comer, de falar e me fizeram descobrir o riso. estas formas, que regulam o juízo e a condição de possibilidade do conhecimento, parecem ter a mesma origem. mas não é isso que me atrai nelas. o que me atrai é a resposta da minha sensibilidade a cada uma delas, que as constitui em última análise numa dupla sobreposição de oposições.
21 de abril de 2015
Na minha rua ao meio-dia
um homem gordo
de fato cinzento e gravata
com óculos
sussurra a palavra
silêncio
inclinando ligeiramente a cabeça na minha direção
quando nos cruzamos
como se quisesse cumprimentar-me
ou ameaçar-me
embora não o conhecesse.
Isto aconteceu
e eu não tenho ninguém a quem possa contá-lo
porque ninguém senão tu
poderia
acreditar em mim
e tu não estás.
Ouviste bem?
perguntarias
desconfiado
e eu responder-te-ia que ele passou do meu lado bom
a escassos centímetros do meu ouvido
numa rua sem trânsito ao meio-dia
e que
por muito que repetisse mentalmente
a frase
estas coisas não acontecem
esta tinha acabado de me acontecer.
À tarde estive muito tempo sem saber o que fazer
sentada a olhar para as minhas mãos
até que me levantei e comecei a fazer muitas coisas
estando esta carta entre elas.
Estava no quiosque da rua das árvores
aquele
quando pensei
primeiro em escrever e depois em escrever-te
sobre isto
mas ao levantar-me não sabia como
e agora pelos vistos nem me interessa.
Pouco antes disso
quando cheguei
pedi um carioca ao balcão
e enquanto o tiravam da máquina
perguntei três vezes
quanto custava
e
sem resposta
possivelmente porque dentro do quiosque
o ruído era tal
que as vozes eram absorvidas
sobretudo a minha
desisti de repetir a pergunta
e esperei.
O rapaz poe a chávena à minha frente
e outro rapaz aparece à frente da chávena
a mexer na caixa registradora
pergunto
quanto custa
e o segundo rapaz olha para mim
mas fica muito espantado
como se estivesse a ver uma assombração
e não me diz o preço do café
não diz nada
só olha para mim
até que me rio
baixinho
a olhar nos grandes olhos dele
a olhar para mim
e enfim
antes que eu pudesse corar
eis que ele sorri de volta
como uma criança
inocente
e me oferece o café.
Talvez eu já não possa corar senão quando sonho
porque quando estava sentada
a beber o carioca
e a ler
um livro chamado
A Casa das Belas Adormecidas
de um japonês chamado
Yasunari Kawabata
pensei
meu deus
ainda bem que te riste!
só que já não era no rapaz que eu pensava
mas sim na minha vida
ou em como a vivi.
Na altura não percebi porque pensei aquilo
assim
e queria muito perceber
um daqueles pensamentos que não sabemos de onde vêm
que nos surpreendem por serem novos
mal acabados de nascer
e as coisas novas têm
o prazer intenso
do êxodo
que não se pode ignorar
e sobe-se um degrau
ou desce-se
isso não importa
o que importa é que nesse prazer
se perde a capacidade de corar
que envelhecemos
sentimos o vento na cara
uma voz
muito bem definida
como carvão novo
sobre papel virgem
ressoa no corpo
e sem nossa intenção
apesar de ser nossa
alastra
na terra no espaço na noite que rompe.
Então levantei-me
e a caminho de casa
pensando no que tinha para escrever
perguntei-me se esse pensamento
estaria relacionado com o livro
porque o livro fala de um velho
chamado Eguchi
cujas recordações são aparentemente arbitrárias
mas depois não são.
Senti-me desesperar por não saber de onde vinha
aquele pensamento
onde ouvi
com o estômago
todas as gargalhadas
verdadeiras
que dei na minha vida.
Só agora
que já me perdi dentro da escrita
posso dizer que talvez perceba
e sim
foi por culpa do livro
do velho Eguchi
que olhava para a pele branca das raparigas novas
e se recordava da filha que mais amava
ou de uma amante que nem tinha sido das mais importantes
porque o rapaz sorriu
e não conseguiu falar
enquanto olhava para mim.
Reparei entretanto
que estou a escrever sem vírgulas
que o horizonte
para lá da janela
ficou totalmente branco
e como é capaz de chover
apanhei a roupa.
um homem gordo
de fato cinzento e gravata
com óculos
sussurra a palavra
silêncio
inclinando ligeiramente a cabeça na minha direção
quando nos cruzamos
como se quisesse cumprimentar-me
ou ameaçar-me
embora não o conhecesse.
Isto aconteceu
e eu não tenho ninguém a quem possa contá-lo
porque ninguém senão tu
poderia
acreditar em mim
e tu não estás.
Ouviste bem?
perguntarias
desconfiado
e eu responder-te-ia que ele passou do meu lado bom
a escassos centímetros do meu ouvido
numa rua sem trânsito ao meio-dia
e que
por muito que repetisse mentalmente
a frase
estas coisas não acontecem
esta tinha acabado de me acontecer.
À tarde estive muito tempo sem saber o que fazer
sentada a olhar para as minhas mãos
até que me levantei e comecei a fazer muitas coisas
estando esta carta entre elas.
Estava no quiosque da rua das árvores
aquele
quando pensei
primeiro em escrever e depois em escrever-te
sobre isto
mas ao levantar-me não sabia como
e agora pelos vistos nem me interessa.
Pouco antes disso
quando cheguei
pedi um carioca ao balcão
e enquanto o tiravam da máquina
perguntei três vezes
quanto custava
e
sem resposta
possivelmente porque dentro do quiosque
o ruído era tal
que as vozes eram absorvidas
sobretudo a minha
desisti de repetir a pergunta
e esperei.
O rapaz poe a chávena à minha frente
e outro rapaz aparece à frente da chávena
a mexer na caixa registradora
pergunto
quanto custa
e o segundo rapaz olha para mim
mas fica muito espantado
como se estivesse a ver uma assombração
e não me diz o preço do café
não diz nada
só olha para mim
até que me rio
baixinho
a olhar nos grandes olhos dele
a olhar para mim
e enfim
antes que eu pudesse corar
eis que ele sorri de volta
como uma criança
inocente
e me oferece o café.
Talvez eu já não possa corar senão quando sonho
porque quando estava sentada
a beber o carioca
e a ler
um livro chamado
A Casa das Belas Adormecidas
de um japonês chamado
Yasunari Kawabata
pensei
meu deus
ainda bem que te riste!
só que já não era no rapaz que eu pensava
mas sim na minha vida
ou em como a vivi.
Na altura não percebi porque pensei aquilo
assim
e queria muito perceber
um daqueles pensamentos que não sabemos de onde vêm
que nos surpreendem por serem novos
mal acabados de nascer
e as coisas novas têm
o prazer intenso
do êxodo
que não se pode ignorar
e sobe-se um degrau
ou desce-se
isso não importa
o que importa é que nesse prazer
se perde a capacidade de corar
que envelhecemos
sentimos o vento na cara
uma voz
muito bem definida
como carvão novo
sobre papel virgem
ressoa no corpo
e sem nossa intenção
apesar de ser nossa
alastra
na terra no espaço na noite que rompe.
Então levantei-me
e a caminho de casa
pensando no que tinha para escrever
perguntei-me se esse pensamento
estaria relacionado com o livro
porque o livro fala de um velho
chamado Eguchi
cujas recordações são aparentemente arbitrárias
mas depois não são.
Senti-me desesperar por não saber de onde vinha
aquele pensamento
onde ouvi
com o estômago
todas as gargalhadas
verdadeiras
que dei na minha vida.
Só agora
que já me perdi dentro da escrita
posso dizer que talvez perceba
e sim
foi por culpa do livro
do velho Eguchi
que olhava para a pele branca das raparigas novas
e se recordava da filha que mais amava
ou de uma amante que nem tinha sido das mais importantes
porque o rapaz sorriu
e não conseguiu falar
enquanto olhava para mim.
Reparei entretanto
que estou a escrever sem vírgulas
que o horizonte
para lá da janela
ficou totalmente branco
e como é capaz de chover
apanhei a roupa.
20 de abril de 2015
19 de abril de 2015
Between two lifes,
throughout life,
during life,
an odd moment arrives
when you learn to part
from what you've seen before
because it no longer exists for you.
Because you need to forget.
The moment of parting
is a moment of death.
Parting comes like a winter night
in a scorching summer.
It undoubtedly
towers over
the gray banality
like a dead distant cousin,
or something like that.
Parting is unusual
it has a certain charm
and it has
a touch of pride.
Parting.
Nadav Lapid
throughout life,
during life,
an odd moment arrives
when you learn to part
from what you've seen before
because it no longer exists for you.
Because you need to forget.
The moment of parting
is a moment of death.
Parting comes like a winter night
in a scorching summer.
It undoubtedly
towers over
the gray banality
like a dead distant cousin,
or something like that.
Parting is unusual
it has a certain charm
and it has
a touch of pride.
Parting.
Nadav Lapid
17 de abril de 2015
Every man has reminiscences which he would not tell to every one, but only to his friends. He has other matters in his mind which he would not reveal even to his friends, but only to himself, and that in secret. But there are other things which a man is afraid to tell even to himself, and every decent man has a number of such things stored away in his mind. The more decent he is, the greater the number of such things in his mind. Anyway, I have only lately determined to remember some of my early adventures. Till now I have always avoided them, even with a certain uneasiness. Now, when I am not only recalling them, but have actually decided to write an account of them, I want to try the experiment whether one can, even with oneself, be perfectly open and not take fright at the whole truth. I will observe, in parenthesis, that Heine says that a true autobiography is almost an impossibility, and that man is bound to lie about himself. He considers that Rousseau certainly told lies about himself in his confessions, and even intentionally lied, out of vanity. I am convinced that Heine is right; I quite understand how sometimes one may, out of sheer vanity, attribute regular crimes to oneself, and indeed I can very well conceive that kind of vanity. But Heine judged of people who made their confessions to the public. I write only for myself, and I wish to declare once and for all that if I write as though I were addressing readers, that is simply because it is easier for me to write in that form. It is a form, an empty form—I shall never have readers. I have made this plain already…
Fyodor Dostoevsky, Notes from Underground.
Fyodor Dostoevsky, Notes from Underground.
ainda mal tinha acordado, saltou da cama, vestiu-se e precipitou-se escadas abaixo até à rua. enquanto dava os primeiros passos, reparava em como, no meio do atraso que o fez correr, surgia uma alegria forte, talvez por não ter pensado muito ou por estar a fazer uma coisa nova. a vida não devia ser sempre isto? a cada momento, boa ou má, uma coisa nova. um precipitar-se escadas abaixo para a rua. dois indianos passam de mão dada do seu lado direito, um limão pendurado na venda de morangos diante do portão da feira brilha, uma rapariga leva o garfo à boca dentro de um restaurante e, com a boca aberta, olha através do vidro, cruzando o seu olhar com o dele. está atrasado. uma pequena gota de suor, quase imperceptível, escorrega desde a têmpera pescoço abaixo, logo sendo tocada pelo vento. talvez o sedentarismo seja um erro contra a natureza. duas pretas cantam enquanto lavam a entrada de um prédio e um homem que passa entre elas com o jornal debaixo do braço não as ouve. não consegue discernir sobre se está intimamente em ordem ou desordenado, ambos os estados lhe parecendo igualmente justos. o sol alto caía. uma náusea breve e cortante sobressaltou-o e tornou o passo mais vagaroso, não podia dizer se muito se pouco. a crueldade da vida era afável.
16 de abril de 2015
numa fotografia onde, com menos de um ano, estou ao colo de um tio, vejo o meu olhar dirigido ao meu pai, que se encontra atrás da máquina fotográfica. não tenho memórias desse colo, desse dia, desse ano e creio que não gostaria de ter. mas sei que é ao meu pai que se dirige aquele olhar. o que leio nesse olhar é indistinguível entre o medo e a intuição, indistinguível entre a durabilidade e a velocidade. primeiro era o meu corpo, vulnerável e aberto, e depois o desconhecido, que nunca mais acabava de começar e terminar. porquê aquilo, que seguras nas mãos, e tão negro, entre ti e mim? porque ocultas o teu rosto? porquê esta distância, entre ti e mim? porquê aquilo em vez de mim? o meu crescimento não foi ainda capaz de se sobrepor a ti e à tua extinção. a tua extinção perdura, foi feita para perdurar, não apenas em mim mas na vibração da noite, mole, volumosa. não quero que aconteça nada, disse-te. enquanto durar a noite, só quero estar contigo. e que ela seja indissolúvel. disse-te.
15 de abril de 2015
Simplificando,
nessa época [circa 1970], já me tinha distanciado de todos os
movimentos políticos e das lutas pela liberdade. Acredito que alguém que
queira mudar o mundo tem de começar não no que lhe é exterior, mas que o
início dessa transformação é no seu interior. E essa é uma conquista
que se alcança milímetro a milímetro.
Arvö Part
Arvö Part
14 de abril de 2015
lembro-me da estranha sensação de partilha de intimidade quando vi uma exposição com companhia pela primeira vez. lembro-me de corar intensamente e baixar os olhos com um sorriso envergonhado diante de um quadro, reação que me fez pasmar dada a sua imprevisibilidade e inverosimilhança. nem os livros nem o cinema nem a televisão nem os amigos me haviam trazido notícia de tal possibilidade e contudo, a intensidade do meu pudor e o olhar de embaraço de quem me acompanhava, por sinal também ele virgem, davam-me a pensar que eu poderia não ser a única pessoa no mundo a conhecer a sensação. como se, diante de uma obra, não só nos despíssemos, mas tivesse lugar uma estimulação recíproca, de caráter secreto, privado, profundo, através da qual nos revelamos. Etty Hillesum diz que ainda é mais difícil falar de fé do que das coisas íntimas e, quando li isso, pensei que percebia perfeitamente o que ela queria dizer. mas não tinha na altura apercebido um espaço assim tão vasto para as coisas íntimas.
12 de abril de 2015
descobri que Freud se encontra dentro da categoria dos meus adversários prediletos. o exercício de me entregar às suas reflexões e de as refutar, senão uma por uma, pelo menos em grande maioria, é feito mediante uma conquista de paciência e de impassibilidade. acontece que por vezes concordo com ele. são esses os momentos que mais aprecio, pois o mundo abranda e eu com ele. quem não é paciente consigo próprio, não se aceita, e resta-lhe viver num mundo demasiado restrito. não tenho outro desejo senão o de permanecer no mundo onde me observo de forma impassível. como diz Santo Agostinho*, «cair e levantar-se é bom, mas nunca cair é ainda melhor».
*algures nas Confissões.
*algures nas Confissões.
11 de abril de 2015
Escritor:
Isso está provado
Nós apenas temos provas para o fracasso
dos escritores
Todos os escritores falharam
Houve sempre apenas escritores falhados
Mãe:
E Shakespeare
Escritor:
Shakespeare também
mas eu disse todos
partem todos do princípio
de que falham
quando têm algum valor
Só os estúpidos os medíocres
nunca pensaram nisso
Pensar em falhar
é o pensamento essencial
Thomas Bernhard, No Alvo, 1990.
Isso está provado
Nós apenas temos provas para o fracasso
dos escritores
Todos os escritores falharam
Houve sempre apenas escritores falhados
Mãe:
E Shakespeare
Escritor:
Shakespeare também
mas eu disse todos
partem todos do princípio
de que falham
quando têm algum valor
Só os estúpidos os medíocres
nunca pensaram nisso
Pensar em falhar
é o pensamento essencial
Thomas Bernhard, No Alvo, 1990.
Há na intimidade um limiar sagrado,
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.
Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.
Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição.
Agora compreendes porque já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.
Anna Akhmátova, Só o Sangue Cheira a Sangue, 1915.
encantamento e paixão não o podem transpor -
mesmo que no silêncio assustador se fundam
os lábios e o coração se rasgue de amor.
Onde a amizade nada pode nem os anos
da felicidade mais sublime e ardente,
onde a alma é livre, e se torna estranha
à vagarosa volúpia e seu langor lento.
Quem corre para o limiar é louco, e quem
o alcançar é ferido de aflição.
Agora compreendes porque já não bate
sob a tua mão em concha o meu coração.
Anna Akhmátova, Só o Sangue Cheira a Sangue, 1915.
10 de abril de 2015
a tendência da criação contemporânea que radica no envolvimento com uma comunidade o objetivo em si da produção de uma obra de arte (as chamadas práticas artísticas comunitárias), soa-me sempre como os sinais de alarme emitidos por aqueles que temem o fim dos tempos e pretendem resgatar a fé à força, antes que chegue o derradeiro momento do Juízo Final. até determinado período, muito recente, a arte contemporânea dirigia-se e convocava apenas e somente o indivíduo. Freud terá sido um dos maiores responsáveis por esta passagem ao individual e ao seu caráter singular e, pelo menos desde os anos 60, tornou-se comum afirmar que há tantas leituras de uma obra de arte quanto forem os indivíduos que a observem (sendo o conceito de observação importante, por permitir abranger a noção de interação). ao dizer que cada um de nós é um artista, Joseph Beuys, levou ao limite essa afirmação, conferindo ao comum, de resto tal como John Cage, destaque individual, ou seja, caráter único, excecional. se antes a beleza era tida por raridade, apenas acessível e uma elite, num instante imprevisto e improvável, passou a estar disseminada numa multitude de acontecimentos que, embora eles próprios impermanentes, tornaram o seu acesso possível de modo permanente. a arte conceptual, em particular, veio contudo estabelecer uma diferença: a partir do momento em que a obra se pensa a si própria, passa novamente a pertencer a uma elite, detentora das suas chaves e códigos. mas sem deixar de se dirigir ao individual, pelo contrário, ainda através da exacerbação do potencial individual. desde a escolha dos materiais, à composição da forma, tudo na obra passou a constituir um código próprio inultrapassável. Susan Sontag chega a declarar que a arte tende para a anti-arte. que, tal como a atividade do místico se dirige à ausência de Deus e ao silêncio para além do discurso, também a arte tende para a eliminação da imagem ou do objeto, substituindo o acaso pela intenção. a inescapável mediação entre a criação individual, de dimensão espiritual, e o caráter material da arte, acaba por surgir ao artista como uma negação da transcendência que procura, nada lhe restando senão não criar.
se pensarmos que na Idade Média a ideia de um eu separado da comunidade nem sequer existia, e que, séculos mais tarde, mesmo um Louis XIV afirma que o Estado é ele, e não o contrário, percebemos que há casos em que nem a História ajuda, pois o que se perde fica perdido com o que se ganha — e uso aqui o verbo perder fora da sua conotação negativa, pois a perda é irremediável tanto quanto o ganho é passageiro. pelo menos desde a arte rupestre até ao período barroco, as obras de arte confundem-se, senão com a própria comunidade, através das suas vivências, pelo menos com a sua espiritualidade, através dos seus credos, espiritualidade que não era, pois a própria definição o impedia, vivida individualmente.
se pensarmos que na Idade Média a ideia de um eu separado da comunidade nem sequer existia, e que, séculos mais tarde, mesmo um Louis XIV afirma que o Estado é ele, e não o contrário, percebemos que há casos em que nem a História ajuda, pois o que se perde fica perdido com o que se ganha — e uso aqui o verbo perder fora da sua conotação negativa, pois a perda é irremediável tanto quanto o ganho é passageiro. pelo menos desde a arte rupestre até ao período barroco, as obras de arte confundem-se, senão com a própria comunidade, através das suas vivências, pelo menos com a sua espiritualidade, através dos seus credos, espiritualidade que não era, pois a própria definição o impedia, vivida individualmente.
vivo num ciclo interminável de recomeços, lutos consecutivos, separada dos outros por uma rede inextricável de mal-entendidos. é engraçada a vida que me coube viver. antes procurava saídas. agora que posso admirar perfeitamente a rede (cuja espessura, grandeza e malha apertada me deixam espantada e incrédula por deixar passar o ar e portanto, por poder continuar a respirar), estou cada vez mais curiosa para perceber onde me levará a capacidade de a viver. do que posso ver acima de mim, pressuponho que seja uma rede cilíndrica mas, para ser completamente honesta, é uma abóbada, já que abaixo de mim nada vejo e nada toco, o que torna perfeitamente plausível a pergunta sobre a existência, que não é senão uma pergunta sobre limites. talvez um dia escreva qualquer coisa sobre isso. ou não. talvez, ao contrário, tudo o que procede do silêncio a ele regresse, e o percurso sirva apenas para adquirir uma forma mais plena, se é que isto seja coisa (não é) que se possa dizer sobre o silêncio. na verdade, sei que também esta malha é um engano. embora ainda não o possa ver, e porque ainda me lembro das suas formas anteriores, sei que um dia será porventura tão densa que acabará por desaparecer perante os meus olhos, transformando-se em pura escuridão intransponível, não sei se negra se branca. o que serei eu quando estiver a admirar isso não consigo imaginar. estou só curiosa por saber se ainda serei capaz de lhe dar um nome.
9 de abril de 2015
E la classe degli scialli neri di lana,
dei grembiuli neri da poche lire,
dei fazzoletti che avvolgono
le facce bianche delle sorelle,
la classe degli urli antichi,
delle attese cristiane,
dei silenzi fratelli del fango
e del grigiore dei giorni di pianto,
la classe che dà supremo valore
alle sue povere mille lire,
e, su questo, fonda una vita
appena capace di illuminare
la fatalità del morire.
Et la classe des châles noirs de laine,
des tabliers noirs à peu de lires,
des fichus qui enveloppent
les visages blancs des sœurs,
la classe des hurlements antiques,
des attentes chrétiennes,
des silences fraternels dans la boue
et de la grisaille des jours de pleur,
la classe qui donne valeur suprême
à ses pauvres mille lires,
et qui, là-dessus, fonde une vie
à peine capable d'illuminer
la fatalité du mourir.
Pier Paolo Pasolini, poema sobre mulheres de mineiros vítimas de uma explosão de gás.
dei grembiuli neri da poche lire,
dei fazzoletti che avvolgono
le facce bianche delle sorelle,
la classe degli urli antichi,
delle attese cristiane,
dei silenzi fratelli del fango
e del grigiore dei giorni di pianto,
la classe che dà supremo valore
alle sue povere mille lire,
e, su questo, fonda una vita
appena capace di illuminare
la fatalità del morire.
Et la classe des châles noirs de laine,
des tabliers noirs à peu de lires,
des fichus qui enveloppent
les visages blancs des sœurs,
la classe des hurlements antiques,
des attentes chrétiennes,
des silences fraternels dans la boue
et de la grisaille des jours de pleur,
la classe qui donne valeur suprême
à ses pauvres mille lires,
et qui, là-dessus, fonde une vie
à peine capable d'illuminer
la fatalité du mourir.
Pier Paolo Pasolini, poema sobre mulheres de mineiros vítimas de uma explosão de gás.
8 de abril de 2015
vejo-me a assumir vertiginosamente uma infantilidade plena. na medida em que sou cada vez mais perfeitamente pueril, inocente, ingénua e na medida também em que, por outro lado, desenvolvo — ou desenvolve-se, já que é um movimento amplamente involuntário —, um profundo desligamento do mundo. este movimento é em parte sentido como emancipação, serenidade, tranquilidade e, no mesmo peso, sentido como fragilidade, ameaça ou instabilidade.
que o sou — infantil — «cada vez mais perfeitamente», significa que o sou melhor. por exemplo: não se pode ser melhor uma coisa que se deixou de ser, porque isso implicaria voltar a ser o que já deixou de ser e portanto necessariamente, ser uma coisa nova. o tempo é o ónus da nossa humanidade, nada há que o inverta, belisque, reverta, pare. o amor pode confundir-nos com ele e esse é o limiar. ora, estou numa fase da vida em que não só afirmo que sou uma coisa que deixei de ser, como acrescento que o sou melhor e a seguir coloco um ponto final.
o que há de mais puro e subtil nos corpos não é atingível nem mesmo pela doença. é por isso que os corpos caem quando morrem, porque o devir é interrompido. o que a existência tem de perecível é isto portanto, o seu devir (e serão aliás muito poucas as situações em que um corpo está tão violentamente exposto ao devir como na doença), tudo o resto pode perdurar. todas as mortes são inconclusivas. o rigor que se espera da morte, nomeadamente nas expetativas de revelação que as pessoas alimentam sobre ela, não existe, porque o rigor é contrário àquilo que se termina, isto é, não existe rigor fora do movimento, não existe rigor onde não existe mudança e tudo o que a compõe, como volume, sensibilidade, ritmo. os fins são sempre remotos. ao contrário da existência, que é aquilo que é porquanto é, o fim é aquilo que nunca é enquanto não é.
que o sou — infantil — «cada vez mais perfeitamente», significa que o sou melhor. por exemplo: não se pode ser melhor uma coisa que se deixou de ser, porque isso implicaria voltar a ser o que já deixou de ser e portanto necessariamente, ser uma coisa nova. o tempo é o ónus da nossa humanidade, nada há que o inverta, belisque, reverta, pare. o amor pode confundir-nos com ele e esse é o limiar. ora, estou numa fase da vida em que não só afirmo que sou uma coisa que deixei de ser, como acrescento que o sou melhor e a seguir coloco um ponto final.
o que há de mais puro e subtil nos corpos não é atingível nem mesmo pela doença. é por isso que os corpos caem quando morrem, porque o devir é interrompido. o que a existência tem de perecível é isto portanto, o seu devir (e serão aliás muito poucas as situações em que um corpo está tão violentamente exposto ao devir como na doença), tudo o resto pode perdurar. todas as mortes são inconclusivas. o rigor que se espera da morte, nomeadamente nas expetativas de revelação que as pessoas alimentam sobre ela, não existe, porque o rigor é contrário àquilo que se termina, isto é, não existe rigor fora do movimento, não existe rigor onde não existe mudança e tudo o que a compõe, como volume, sensibilidade, ritmo. os fins são sempre remotos. ao contrário da existência, que é aquilo que é porquanto é, o fim é aquilo que nunca é enquanto não é.
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