29 de dezembro de 2016

um homem com um fato de trabalho
azul
come lentamente
debaixo dos limoeiros
e entre a folhagem
das trepadeiras
para onde arrastou uma cadeira
pois um único raio de sol brilha
nesse local
rodeado de escuridão.
o homem
come lentamente
com a cabeça pendida sobre o peito
sem saber que o observo da janela
enquanto fumo
e descobrindo sozinha
que somos irmãos.
não o chamo
mas ele diz-me o nome
que ouço como se não houvesse outra voz no mundo
nem outro homem
mas logo o seu nome me foge
escondendo-se de mim
e esqueço-o
enquanto a voz ainda ecoa.

28 de dezembro de 2016

26 de dezembro de 2016

Encontrava-me agora numa grande cozinha com mármore negro nas bancadas e uma ilha de madeira maciça onde se cortava pão sobre uma grossa tábua. Pálidos raios de sol atravessavam as portas envidraçadas e criavam um ambiente feérico, ou talvez tivesse essa sensação porque tudo estava finalmente limpo e as facas, os copos, o fogão e o lava loiças brilhassem nos seus lugares. Era uma casa enorme, com grandes salas, chão de madeira e paredes altas. Na cozinha, enquanto a observava terminar a limpeza, tive subitamente a sensação de que o tempo parava, ou pelo menos que abrandava de modo que pude estabelecer, com toda a tranquilidade e lentidão, uma comparação com a minha própria casa, pequena, minúscula de facto, com poucas coisas, apenas o necessário, e voltei a sentir, como por vezes acontecia quando me encontrava dentro dela e parava para pensar nisso, que nada mais desejava. Numa casa grande como esta, não saberia quem sou.
À medida que a noite avançou, o vestido, a princípio muito bem engomado e justo, de um vermelho vivo e com uma renda cor de pele no peito, ganhou duas pregas na cintura, duas gordas pregas criadas pelo movimento do corpo, que pronunciavam a barriga, lisa e redonda, e a tornavam finalmente humana.

23 de dezembro de 2016

o regresso às coisas antigas, e às memórias que elas me trazem, devolve-me uma paz amargurada que, sendo pouco rica e pequena, se torna, com o tempo, cada vez mais inspiradora.

22 de dezembro de 2016

20 de dezembro de 2016

Tenho medo das pessoas porque não me sentem, mas compreendem-me. Tenho medo das pessoas porque querem que eu viva a mesma vida que elas. Querem que eu dance coisas alegres. Não gosto da alegria. Gosto da vida.

Nijinski, in Cadernos.

16 de dezembro de 2016

Com o recheio da casa já dentro de caixotes, olhei pela janela. Estava um dia branco, no horizonte apenas alguns telhados se destacavam, o rio, ao longe, mal se via por entre a bruma. Chovia torrencialmente a intervalos curtos. Nenhum dos pássaros abrigados na copa densa da nespereira no jardim da casa que ficava do outro lado da rua cantava. A ideia de mudança, que tantas vezes me tinha paralisado de medo, concretizava-se agora sem grande dificuldade. Afastei-me da janela como se pudesse ignorar as saudades que me atormentavam e procurei racionalizar para não sentir: o que é uma casa? As paredes ou o seu recheio? A localização ou aquilo que fazemos dentro dela? O tempo que aí vivemos ou aquilo que trazemos para dentro dela, durante o tempo em que estivemos fora? Não pude dar resposta a nenhuma das perguntas. Era como se a casa fosse uma entidade com quem mantinha uma relação, agora em rutura. Havia por isso uma tensão instalada entre nós, como há entre os casais que não estão de acordo em separar-se. A casa tinha vontade, emoções, uma linguagem que apenas eu podia reconhecer e entender. E tudo nela tentava convencer-me a ficar. No entanto, tal como já havia acontecido, mal eu decidia ficar, ela silenciava-se. Desta vez, era definitivo. Olhei para o chão no canto ao lado esquerdo da janela da sala durante muito tempo e com paixão. Não havia nada lá, nem sequer a ausência de alguma coisa que entretanto tivesse sido removida. Era apenas um pedaço de chão, um minúsculo espaço focado pelo meu olhar, sem qualquer razão. E nele havia paixão. Dei três passos em frente, baixei-me e toquei-lhe. Durante alguns minutos que me pareceram horas, eu e a casa estávamos novamente ligados para sempre e o movimento dos dias, ainda que brando, regressava. Pressenti em mim uma leve, mas clara, hesitação: haveria como voltar atrás? Desfazer os caixotes, voltar a colocar as roupas nos armários, os livros nas estantes, a comida na dispensa, a cama, o sofá, a mesa e as cadeiras nos seus lugares. Não encontrei motivo para o negar e ao mesmo tempo conhecia bem a irreversibilidade desta mudança. Ainda assim, de alguma forma misteriosa, a casa e eu estávamos acima dela, sabendo que era juntos que devíamos ficar. Apercebi-me então, com uma satisfação de que se teme o desenvolvimento, que de certo modo nada nos podia separar. Levantei-me, em fúria contra esse pressentimento. Decidi começar a deitar fora caixotes, mesmo sem saber ao certo tudo o que continham, pois apenas tinha escrito neles nomes genéricos como LIVROS, ROUPA ou COZINHA, e embora soubesse que dentro de dois ou três caixotes estavam também cadernos, objetos que estimava e me eram úteis, alguns deles caros, de que eventualmente sentiria falta mais cedo ou mais tarde. Apesar disso, determinado, peguei num, desci as escadas e deixei-o junto ao caixote do lixo do outro lado da rua, um pouco mais abaixo. Quando voltei as costas senti uma liberdade ácida, como se eu próprio estivesse a ser consumido. Decidi então ser metódico, comecei a abrir os caixotes e a escolher o que queria deitar para o lixo dentro de um saco de plástico preto. Pouco a pouco, a minha ligação à casa desvanecia. Ela não se manifestou.

8 de dezembro de 2016

Em criança imaginava que uma vez adulta iria ter uma vida extraordinária. Seria tão simples aceder às experiências como desejá-las e todas elas me acrescentariam, em felicidade e em realização. Tornar-me, eis o grande motivo dos meus pensamentos nessa altura. Desconhecia que a felicidade está em pequenas coisas e que é inexplicável, pois apenas quem as viveu pode reconhecer a sua centelha num discurso. Descobri por conseguinte mais tarde, e justamente nos momentos de queda, que a felicidade é o oposto de uma epopeia e sobretudo que nunca está completa. Não é que nos falte a sua completude uma vez que temos acesso a ela, antes a sua imperfeição contribui para a simplicidade que a caracteriza e que nos pasma. É muito breve...

7 de dezembro de 2016

Começar de novo, não num lugar qualquer mas no campo, longe do burburinho das vozes alheias e da rotina exaurível da cidade, onde os selos dos nossos padrões se repetem como um déjà vu, isto é, como se fosse a primeira vez, não é apanágio do romantismo. Pelo contrário, é talvez a utopia contemporânea mais frequente, que mais ressurge quer na forma de um estilo de vida — viver na cidade como se estivéssemos no campo —, quer como fuga implacável, em rutura com o passado. Num caso como noutro, é a existência que está em causa, que vocifera, que quer expandir-se rompendo com as condições que a limitam e torturam. Ser auto-suficiente parece traduzir-se assim na mais forte expressão de liberdade. O mundo é feito de mudança, porque não deixar cair aquilo que nos aprisiona? Imersos na natureza, nada mais existe. Abandonar os esforços para impor a nossa vontade e visão do mundo em prol da indeterminação, não como uma queda mas como desapego, distanciamento, alegria, é o sonho de que vários amigos me falam, porventura o pesadelo, pois surge com grande angústia ou, pelo menos, com o sentimento de opressão que coexiste em todos aqueles que se vêem forçados ao cativeiro em que as nossas cidades se tornaram, com os deveres do trabalho e da sociabilidade, e onde uma voz inumana alastra monstruosamente. O silêncio ouve.

5 de dezembro de 2016

No arquivo climatizado do acervo da biblioteca da Brigham Young University, na cidade de Povo, no Utah, Estados Unidos da América, existe um retrato do pintor japonês Mori Yusen onde, embora uma carta anexa endereçada ao seu pai adotivo Mori Shuho garanta que é dele, o seu rosto não é claramente reconhecível. Nascido em 1780 em Osaka, veio a falecer em 1851 desconhecido do mundo. Quando aos 10 anos é adotado, traz consigo não se sabe que memórias. Supõe-se que terá sido pintor, embora na verdade não passe disso mesmo, uma suposição. Se o supomos, isso deve-se ao grau de excelência e aperfeiçoamento da técnica do livro publicado postumamente — sessenta e oito anos depois da sua morte — por uma editora em Tokyo e graças a Yamda Geishu Do, intitulado Ha Bun Shu, um conjunto de desenhos do mar, das suas ondas, espuma, vastidão e força. Ha significa onda, Bun frase e Shu reunir, pelo que poderíamos traduzir esse título por algo como Reunir a mensagem das ondas. «Ocean inside a circle surrounded by wave foam» é o título de um desses desenhos, onde um largo oceano é focado dentro de um círculo em torno do qual a espuma se acumula. Mas este é um dos desenhos que aproveitam todo o espaço do papel. Outros desenhos apresentam poucas linhas, desenhadas cirurgicamente, pormenores de uma onda ou de um pequeno pedaço de espuma, muitos outros círculos onde o mar parece caber deixando o vazio em redor e até, num deles, uma divisão em quadradinhos. O seu trabalho parece tender para um crescente depuramento conceptual, de modo que, em alguns desenhos, as linhas começam a resultar em formas geométricas que não se confundem com as imagens e, sobretudo, não simbolizam nada, até que a certo momento o desenho ultrapassa o papel estendendo-se por três páginas, com lençóis de água que se desdobram como se desdobram os rolos de papel de seda japoneses, habitualmente usados para a pintura ou para a caligrafia. Em todos os desenhos o mar surge revolto, como se o pintor nunca tivesse visto a água lisa tal uma folha virgem. Não existe harmonia nas coisas imperturbadas, é o que Mori Yusen parece querer dizer-nos. Quantas sombras nos foram reveladas com maior simplicidade?

3 de dezembro de 2016

Quando era miúda, à vinda da escola, passava por uma casa com uma placa na entrada a dizer «Associação Columbófila» que, até ao dia em que fui convidada a lá entrar, pensei ser uma associação de historiadores aficionados relacionada com Cristóvão Colombo. Não havia quase nada lá dentro para além de uma mesa de matraquilhos e uma arca cheia de minis, por isso a visita não teve nada de memorável, a não ser que foi nesse dia que fiquei a saber que os pombos também são animais de estimação, que são treinados para ir e regressar de longas distâncias, tendo sido até utilizados na Segunda Guerra Mundial para levar mensagens codificadas, e que — facto perturbante —, uma vez treinados, indiferentes ao paradeiro do dono, nunca mais abandonam o local onde vivem. Se o dono deixa a casa os pombos lá continuam, a sobrevoar o local, aos círculos. Nunca me esqueci deste dado tão extraordinário como inútil e, sempre que viajo, quando encontro pombos a desenhar por vezes pequenos, por vezes enormes círculos no céu, procuro imediatamente a casa a que deverão pertencer, por receio que ali estejam para sempre, no ar e aos círculos, sem poder pousar. A casa onde moro hoje teve nas traseiras e durante muitos anos, as ruínas de uma outra casa, que deverá ter sido bonita por sinal, com uma retrete antiga na varanda cheia de azulejos e um pequeno jardim no piso de baixo. Junto a essa casa havia uma gaiola gigante que era uma casa de pombos. E lá andavam eles, ano após ano, sobrevoando a casa aos círculos e regressando ao final da tarde. Ora, no ano passado, para meu grande terror, fizeram obras nesta casa e deitaram a gaiola abaixo. A casa ficou bonita, moderna e branca, o jardim arrancaram-no, erva a erva. Sempre que ía à janela, procurava pelos pombos. Até que os descobri: encontraram uma ranhura entre a nova varanda e o anexo (construído no lugar da gaiola), onde se podiam abrigar do vento e da chuva. Rapidamente, o minúsculo espaço por baixo da varanda se encheu de pombos cansados de voar. Não passaram muitos dias até que o dono da nova casa descobrisse o ardil e tapasse a reentrância com plásticos e tábuas. Agora os pombos dormem dispersos e onde podem pousar, na ombreira de uma janela que não se abre, atrás de um vaso. E continuam a regressar. 
Quando me levantei, Gwendolyn já estava no seu caixão, assente nas quatro cadeiras de mogno da sala da frente. Trajava o seu vestido de noiva, guardado todos aqueles anos num baú no andar de cima, e umas luvas brancas com muitos botõezinhos de madrepérola que eu nunca tinha visto e cuja visão me trouxe lágrimas, as primeiras de sempre no presbitério. Elias estava sentado ao lado do caixão, a velar a defunta, enquanto lá fora, sozinho no celeiro vazio que rangia com o gelo, um jovem pregador auxiliar que tinha vindo de Corwen num pónei, ensaiava o sermão a fazer no dia do funeral. Elias nunca se recompôs da morte da sua mulher. Luto não é a palavra adequada ao estado em que caiu depois do seu desaparecimento, disse Austerlitz. Embora na altura, com treze anos, não o tivesse compreendido, percebo hoje que a infelicidade que cresceu dentro dele destruiu a sua fé no momento em que mais precisava dela. Quando voltei a casa, no verão seguinte, havia semanas que não era capaz de exercer o seu ministério. Ainda subiu ao púlpito mais uma vez. Abriu a Bíblia e, com voz entrecortada, como se lesse somente para si, debitou o versículo das Lamentações: He has made me dwell in darkness as those who have been long dead. Não fez o sermão. Ficou ali de pé algum tempo, a olhar por cima das cabeças da congregação paralisada de espanto com uns olhos que me pareceram os de um cego, parados. A seguir desceu lentamente do púlpito e saiu da igreja.

W. G. Sebald, Austerlitz.