3 de dezembro de 2016

Quando me levantei, Gwendolyn já estava no seu caixão, assente nas quatro cadeiras de mogno da sala da frente. Trajava o seu vestido de noiva, guardado todos aqueles anos num baú no andar de cima, e umas luvas brancas com muitos botõezinhos de madrepérola que eu nunca tinha visto e cuja visão me trouxe lágrimas, as primeiras de sempre no presbitério. Elias estava sentado ao lado do caixão, a velar a defunta, enquanto lá fora, sozinho no celeiro vazio que rangia com o gelo, um jovem pregador auxiliar que tinha vindo de Corwen num pónei, ensaiava o sermão a fazer no dia do funeral. Elias nunca se recompôs da morte da sua mulher. Luto não é a palavra adequada ao estado em que caiu depois do seu desaparecimento, disse Austerlitz. Embora na altura, com treze anos, não o tivesse compreendido, percebo hoje que a infelicidade que cresceu dentro dele destruiu a sua fé no momento em que mais precisava dela. Quando voltei a casa, no verão seguinte, havia semanas que não era capaz de exercer o seu ministério. Ainda subiu ao púlpito mais uma vez. Abriu a Bíblia e, com voz entrecortada, como se lesse somente para si, debitou o versículo das Lamentações: He has made me dwell in darkness as those who have been long dead. Não fez o sermão. Ficou ali de pé algum tempo, a olhar por cima das cabeças da congregação paralisada de espanto com uns olhos que me pareceram os de um cego, parados. A seguir desceu lentamente do púlpito e saiu da igreja.

W. G. Sebald, Austerlitz.