31 de agosto de 2017

na exposição que está atualmente no Museu de Arte Antiga sobre o tema do culto mariano, estão representadas obras que vão desde a antiguidade (século III) à contemporaneidade. nelas, desde o Renascimento, ao Maneirismo e passando pelo Barroco, a figura da Virgem surge normalmente acompanhada de anjos, santos, apóstolos, mártires e naturalmente, de Cristo, menino, morto ou ressuscitado. poucas são aquelas que apresentam a Sagrada Família, ou seja, que incluem José, e, mesmo naquelas onde a sua figura surge, é de forma lateral, obscura, enigmática. sem o contestar, toda a iconografia religiosa confirma o silêncio do pai adotivo nas Escrituras. ausente ou silencioso até à sua morte, mesmo quando recebe em sonho o aviso do anjo para partir para o Egito, a sua obediência e contemplação são absolutas. até Deus fala nas Escrituras através de símbolos, como é o caso da sarça ardente. José preconiza uma disciplina de silêncio que excede a representação, aquela que serve a atenção pura e a meditação, mas também a sua dimensão soturna e escandalosa. quem se cala, quem se ausenta? o pai, «a medida de todas as coisas», diria Kafka.
o que pensará o meu gato quando está quieto à janela a olhar para as presas que não pode alcançar? o mesmo que eu, digo-me, quando olho para o tempo que não me pertence.

28 de agosto de 2017

é sempre difícil para uma mulher começar a falar entre homens. a voz tem de encontrar forma de se impor e optar, pelo menos a princípio, entre um registo que não é natural e os momentos de silêncio, raros e curtos. para que o seu discurso seja tido em conta, não basta contudo fazer-se ouvir. é necessário legitimá-lo através de sobrepostos discursos, através dos quais por vezes se recorre à lembrança de que fazer-se ouvir não implica metamorfosear a palavra no masculino. para audiências mais avisadas, isso costuma bastar. ainda assim, contudo, parece-me sempre que é o silêncio que vence entre a comunidade das mulheres, cujos olhares e gestos, quase sempre invisíveis para os homens, falam mais do que as próprias vozes.

27 de agosto de 2017

a primeira abordagem do termo terra nullius sugere a ideia de uma utopia paradoxal: no nosso imaginário, o termo refere-se a uma terra onde a paz perdura através da vastidão sem pertença, mas também a uma terra abandonada, terra que é impossível penetrar e habitar. é, por isso, ao mesmo tempo, a única terra que ainda há a desbravar, ideia que nos transporta para as grandes expedições, do Ártico, das florestas virgens, do mar, aventuras que já só poderão ter lugar hoje no espaço sideral ou no interior da Terra. o termo sendo romano, reconhece-se à partida a sua arbitrariedade, já que os romanos não descobriram nada: os seus territórios foram conquistados à força, assim como foi a América, a Austrália ou o Brasil. para que isso fosse possível, houve portanto uma adaptação do significado do termo e assim, em vez de abandonada, essa terra não tinha «sociedades civilizadas». deste modo, era considerada desocupada ou desabitada. porém, este sentido legal do termo e as consequências que daí decorrem (escrevo no presente do indicativo porque na Austrália o conceito de terra nullius continua a ser apresentado em ações judiciais pelos povos aborígenes), não afetou o teor fantasioso que ainda hoje sugere. é como se a ideia de uma terra pura, devastada pela solidão que ninguém pode viver, insondável e incompreensível, permanecesse no imaginário contemporâneo reforçado por um silêncio que serve a aniquilação. 

26 de agosto de 2017

ainda perto da estação, decidiram parar para almoçar num restaurante à beira rio com uma esplanada onde sobrava uma mesa coberta por toalhas brancas de papel. Clara sentou-se em primeiro lugar, seguida dos pais, Virgínia a seu lado e Armando à cabeceira. Xavier e Rita, o casal de amigos de Clara que os iria albergar alguns dias na quinta onde viviam, perto de Santarém, sentaram-se nos lugares que restavam. o calor começava a subir, assim que todos concordaram que tinha sido uma boa decisão pararem para comer e refrescarem-se antes de seguir caminho. um atento e denso silêncio, que Clara se prontificou a desfazer, acolheu-os à mesa. depois de ter passado o olhar por cada um dos convivas procurando inteirar-se dos seus estados de espírito, pegou no menu para apresentar os pratos do dia. o pai, que mais a preocupava, pois era dado a estados sombrios e desajustados, parecia bem disposto, com um ar fraterno, e a mãe, sempre preocupada com todos, parecia descontraída, embora cansada. à frente de Clara, Xavier mantinha o sorriso de sempre, discreto e impenetrável e Rita, sentada à frente de Virgínia, foi a única a devolver o olhar a Clara. para sua surpresa, a escolha das refeições foi rápida e animada. Clara nunca tinha convidado os pais para casa de amigos e, por isso, sentia algum nervosismo perante o fim de semana que os esperava. mas, depois de terem sido também eles convidados, Xavier e Rita tinham-se mostrado peremptórios e Clara, que conhecia bem a sua hospitalidade, concordou. Armando foi o primeiro a pegar no pão, seguido de Xavier e depois Clara. Armando forrou um pedaço com uma fatia de queijo e Xavier comeu primeiro sem nada e depois com o outro queijo que estava na mesa. Virgínia também comeu desse queijo. Clara abriu a manteiga e Rita não tocou no pão, ficando a comer azeitonas pretas com alho e azeite. Clara temia saber por onde a conversa iria começar e acabou por ser ela própria a dar o mote pois era, até àquele momento, a única a saber que Armando e Xavier tinham passado pela mesma zona em Angola, na altura da Guerra Colonial. enquanto o almoço não chegava, depois do quebra gelo de Clara, descobriram que tinham feito conhecimentos em comum e que por pouco não se tinham cruzado. durante um bom bocado, falaram apenas um com o outro, ora olhando-se nos olhos, erguendo várias vezes as sobrancelhas, ora acenando em confirmação com a cabeça, como se apenas eles os dois conhecessem um certo conto de fadas cujo negrume era para os restantes invisível. Virgínia, cuja história também parecia, em muitos aspetos, pertencer a um conto de fadas de terror, manteve o olhar sobre a toalha branca e o silêncio. ainda que tivesse conhecido Armando em Angola, talvez pensasse que a sua história só poderia ser contada a outras mulheres ou, pelo menos, distante dos reparos do marido. Rita olhou para ela, Clara olhou para Rita, mas as histórias de guerra não se podiam interromper ou ser manchadas pelo ruído de discursos paralelos. Clara lembrou-se que esse conto de fadas feminino continha ameaças, uma fuga com a roupa que tinha no corpo, um casamento num barco por procuração, a chegada a um país desconhecido, uma receção por anónimos, um aborto, um nado morto. a comida chegou. Xavier e Rita partilhariam uma açorda de sável, Clara e Virgínia uma caldeirada à fragateiro e Armando uma perna de cabrito com grelos. a conversa foi alternando entre África e a quinta a que chegariam dali a umas horas, Rita e Xavier explicando com amabilidade que poderiam estar como em sua casa e usufruir de todos os espaços de lazer, do alpendre à piscina, ou mesmo dar uma volta pelo terreno, onde havia toda a espécie de animais e plantas, como árvores de fruto, um canteiro de aromáticas, cavalos, ovelhas e patos. pediram mais uma garrafa de vinho. Virgínia parecia iluminar-se quando se falava da quinta: os seus olhos sorriam. era raro sair da terra, mais raro ainda estar com outros casais. a ocasião havia sido longamente preparada e, apesar da insistência em contrário de Clara, tinha guardado o melhor vestido na mala. nisto, Clara apercebe-se com repulsa que Armando devorou a perna de cabrito enquanto todos ainda estavam a comer, chamando o empregado e pedindo imediatamente uma sobremesa e um café sem esperar por ninguém. Xavier não pareceu reparar, mas Rita ficou confusamente obstinada em comer devagar. logo a seguir, Virgínia termina também a sua refeição e pergunta «o que é que há de fruta?», como se dali o empregado a pudesse ouvir. Clara resmungou o mais gentilmente possível, baixinho e ao ouvido da mãe, «espera um bocadinho», mas não foi ouvida. assim que o empregado trouxe a sobremesa e o café a Armando, Virgínia perguntou «o que são as sobremesas?» e pediu uma. Clara, Xavier e Rita ficaram abandonados à sua sorte de comedores lentos, enquanto Virgínia comia uma sobremesa e Armando pedia uma aguardente. Clara recordou que também costumava terminar as refeições rapidamente e que até já tinha acontecido num jantar que Xavier e Rita desatassem à gargalhada pela sua solicitude ao acabar de comer e ir lavar os pratos, sem pausas. era então dali que lhe vinha o hábito, de comer quase sem respirar, a correr, de não fazer pausas entre o prato, a fruta e o cigarro que lhes seguia, sobretudo quando estava sozinha. comer mais devagar tinha sido portanto uma aprendizagem social depois de ter saído de casa dos pais. agora, era como se a rapidez de Armando e Virgínia fosse um grave sinal de desrespeito das normas que a grandes expensas tinha procurado adaptar-se. com o corpo tenso, percebeu que a moderação a que tinha dedicado a sua vida não passava de uma aprendizagem malograda, alimentada pela revolta, contra os sinais inconscientes da educação que tinha recebido.

20 de agosto de 2017

enquanto acendo um cigarro, o gato salta lentamente da mesa para o chão e desaparece para a varanda. ocorre-me à memória, ainda que de forma vaga, os rostos de um homem e de uma mulher que deixei de ver. o sol está a pique e eu, mais lenta que o gato, enquanto olho para a página em branco, penso na mulher que me disse que «[isto] não é como literatura, há uma concretização». tiro outro café para pensar nos livros que não escrevi apesar de escrever todos os dias e nos livros que li, que estou a ler, em como penso sempre que são os mais preciosos que existem. o que acontece quando leio? uma solução. e quando escrevo? um problema. acendo mais um cigarro, o homem e a mulher assomam como fantasmas para me fazer companhia, sorriem discretamente, quase poderia ouvi-los falar. uma música preenche o silêncio, provavelmente Bach. olho para o meu corpo ainda sem rugas, talvez ainda tenha algum encanto. parece-me que tudo o que tenho a dizer é superficial e, por isso, a minha avidez é incompreensível. vou levantar-me e esconder-me na casa sombria, tenho esperança de encontrar nela alguma benevolência.

18 de agosto de 2017

sempre sonhei muito com bebés, não só na idade adulta, portanto. em pequena era recorrente um sonho em que estava em alto mar, de onde emergia um monstro gigante, e eu tinha de salvar a minha irmã, o bebé, mas não sabia nadar. na idade adulta os temas diversificaram-se: estou grávida a descer uma ladeira dentro de um carro que perde os travões, estou rodeada de bebés sem saber porquê mas com um missão ou com deleite, tenho um bebé invisível nos braços, alguém me oferece apressadamente um bebé que me sinto relutante em aceitar, bebés que mato em série ou bebés que tenho de resgatar a um assassino ou a um perigo qualquer. por vezes quero acordar, por vezes, quando acordo, quero voltar a adormecer. um dia, fui ver que significado tinham estes sonhos. no livro dizia que estão relacionados com a criatividade, com a necessidade de resolver um dilema. perante os sonhos, contudo, intensos e cheios de pormenores, esta parca explicação deixou a desejar. a criatividade é uma coisa lata e, para quem escreve, todos os dias há um dilema a resolver. esta noite, por curiosidade, era o próprio sonho que me apresentava um dilema. fiquei aflita quando acordei sem o ter resolvido e estava estranhamente serena quando, depois de ter conseguido adormecer novamente, acordei uma vez encontrada a solução. não tenho apetência para fazer análises psicanalíticas, pelo contrário. penso que os sonhos são países de onde nenhum viajante regressa, sinais de possibilidades marcados pela catástrofe, através da qual se ligam à vigília. pode-se despertar para uma vida nova depois de um sonho. a sua relação com a natureza resiste à imaginação, à hipótese, à prescrição. os seus labirintos intermináveis, a sua lentidão mole, a sua densidade dramática, quem pode dizer se nos pertence ou se existe à tona do mundo, onde vamos colhê-los ao acaso? certo é que, seja de que maneira for, há sonhos que ficam connosco, que deixam uma marca, como é o caso, por exemplo, dos sonhos que parecem mais reais do que a vigília. sonhos em que somos chamados, que se erguem como uma montanha e nos engolem, a que não podemos ficar indiferentes. há no entanto algo que todos partilham: por muito que queiramos saber o seu significado, nada revelam para lá do desejo.

17 de agosto de 2017

sinto-me próxima das ervas que rompem a calçada, o alcatrão e o cimento, mais do que das pessoas e dos animais com quem me cruzo na rua, à exceção talvez de algum gato fugitivo. são também essas ervas que procuro nas fotografias das cidades, como se sem elas a cidade não passasse de uma ilusão, de um conto de fadas que me é sugerido com eloquência, mas deixa um rasto de incredulidade. por toda a parte as árvores morrem, mas estas ervas continuam a nascer nas paredes dos prédios, na margem dos passeios e à porta das casas, como se não passasse ninguém, como se ninguém as pisasse. crescem timidamente e, porém, portam nelas toda a violência da natureza e a inutilidade de a domar. o que seria de nós sem elas, insolucionáveis e incivilizadas, prontas a crescer sem medida por toda a parte? sou como essas ervas, daninhas ou não, irrompendo sem prudência, por vezes inconveniente, distraída da minha vulnerabilidade.

16 de agosto de 2017

em determinadas condições de tempo e de lugar, o corpo, negro, harmonioso e furtivo, é como um vocação de que ninguém se lembra entre as pequenas coisas. para além do amor, em silêncio, assim viverá connosco, mesmo quando sobre ele vier a desgraça, e trabalhará infatigavelmente para obter a sua própria imagem. anda e canta e agita os braços em explosões de riso até cair, a horas imprevistas, no meio do chão vazio como no meio de um campo vazio. nenhum desejo oculto: a mais viva curiosidade regula-o dentro da sua própria irrealizada treva.

14 de agosto de 2017

Lean On Me

depois de dançarmos toda a noite
mergulhamos confusas sob as estrelas
recordando o que foi.
acordou sem nome a meio da noite de pesadelos demasiado reais nos quais se movia voluntariamente e, deslumbrada, como se lhe fosse revelada uma língua nova, lembrou-se primeiro do nome dela e só depois do seu. abriu a janela, o vento soprava quente, ouviam-se vozes longínquas, a lua iluminava os telhados como se proibisse um segredo e, enquanto a olhava, sentiu que não gostava de ter Lúcia entre as suas recordações. deambulou ao acaso pela casa, suspeitando que estava a mentir. bebeu água como se estivesse a espantar demónios e voltou à cama, onde os lençóis brancos desfeitos lhe pareceram acolhedores. esperou pela manhã sem esperança de voltar a adormecer. lembrava-se da língua dela na sua boca, de um terror imprevisto que deu lugar a um frémito ousado, da mão frágil e em brasa como um chicote. detestava a ideia de ser apenas ela a ter aquelas recordações e teve vontade de rir, um riso sarcástico que a fez apertar o estômago até sentir dor. como ácido, a obsessão desorientava-a reduzindo-a a um animal ferido em fuga e esvaziando-a. teve medo de não voltar a sentir aquilo outra vez mas reconfortava-a o seu desaparecimento, era quase como viver com um fantasma, inócuo como a sombra de um nome. secretamente contudo, havia reflexo dele nas suas intenções: talvez não voltasse a vê-la mas sabia que não podia recuar e voltar a amar um homem. sucumbia assim a uma juventude tardia, alegre e insensata, que a atingia em cheio desfazendo a tensão. com os olhos no teto, depois do esgotamento, viu-se na posse do seu corpo violando todas as proibições sem punição, sem ameaça e sem culpa.
Ninguém pode querer sem fazer. E com isto eu não quero apenas dizer a execução deve seguir o querer, o que é já uma boa máxima de prática; quero dizer que a execução deve preceder a prática. Como assim? (...). Que o homem aja antes de querer, é o que é evidente pela infância. O homem nada no universo desde que foi lançado nele e nunca, de maneira nenhuma, se poderá retirar dele. A acção real está, portanto, sempre começada.

Alain, Minerve ou la sagesse.

13 de agosto de 2017

V.

o teu rosto
selvagem recordação

12 de agosto de 2017

«agora a minha vida vai mudar», pensou, inebriado de ideias. pegou num caderno para as anotar a todas, por prioridade, e dedicou-se imediatamente à primeira. depois da melancolia dos últimos meses, era uma lufada de ar fresco, vinda não sabia de onde nem porquê. cheio de confiança, a passagem do tempo deixou de o angustiar e o tédio desapareceu, substituído por sucessivas epifanias. parecia-lhe que tinha a vida toda na mão, o passado e o futuro flutuavam como nuvens inofensivas num céu soalheiro. o raciocínio desenvolvia-se com rapidez e leveza, o mundo adquiria densidade e a sua vida um significado, cujos problemas pareciam ter-se afogado num poço longínquo, reservado dos olhares. com certa estupefação, observou que nada daquilo era novo: as ideias que tinha transposto no papel estavam a ser cozinhadas há anos, sem terem tido, contudo, força para ver a luz do dia. portanto, pensava, porquê agora e não antes? que sinal impercetível havia sido agente da mudança? extenuado pela ausência de resposta, temendo que a inspiração desaparecesse, reduziu a lista a duas coisas, e continuou a elaborar planos para concretizar a primeira das prioridades. nisto, por e-mail, chegou-lhe uma carta relacionada com a ideia. a felicidade inundava-o, começou a pesquisar na internet, lembrou-se de livros, imaginou uma resposta à carta totalmente arquitetada, eloquente e sagaz. sem vontade de se arredar dos seus projetos, quando o telefone tocou não atendeu. até a solidão tinha agora um sentido, pensou, sem sentimentos de culpa por se isolar. fez um chá, nunca fazia chá. gostava das pessoas que faziam chá mas achava a bebida insípida e a preparação aborrecia-o. naquele momento, porém, o ritual deu-lhe oportunidade para pensar na sua ideia afastado do computador e, por isso, apreciou-o. enquanto bebia, no entanto, ocorreu-lhe que o melhor talvez fosse beber álcool. sim, sem dúvida, o álcool contribuiria para a inspiração, e saiu em direção à loja do nepalês, a única que àquela hora se encontrava aberta. comprou um whisky de má qualidade e juntou-lhe pedras de gelo em abundância. estava divino. três copos depois, a profusão de ideias voltou e lembrou-se dela. os anos de silêncio que os separavam não impediram que a atração inicial se mantivesse, uma espécie de sortilégio movediço onde se deleitava. ao olhar para uma fotografia guardada no computador, esmoreceu. como era bela e dócil no seu vestido azul, sorrindo e movendo-se como se existisse apenas para ele. olhava para a fotografia com o mesmo ímpeto das últimas horas, perguntando-se o que aconteceria se voltasse a contactá-la. teria o mesmo número, o mesmo e-mail? não importava, procurá-la-ia estrada fora até a encontrar. com certeza ficaria contente de o rever, com certeza, se a atração permanecia nele, também a alimentava a ela. desligou o computador e levantou-se, inundado por uma espécie de beatitude, determinado em reaver o tempo perdido. já deitado, pegou no telefone e, ao ver o nome dela inscrito sobre o ecrã, todos os planos que pareciam ter finalmente arrancado se desfizeram como poeira passageira.

11 de agosto de 2017

Adiamos as perguntas decisivas, fazendo ininterruptamente perguntas ridículas, inúteis e infames e, quando fazemos as perguntas decisivas, é tarde de mais. Toda a vida vamos adiando as grandes perguntas, até que elas se tornam uma cordilheira de perguntas e nos obscurecem. Mas nessa altura é tarde de mais. Devíamos ter a coragem (face àqueles a quem temos de perguntar, como face a nós próprios) de os atormentar com perguntas, sem consideração nenhuma, implacavelmente, não os poupar não os burlar com a complacência. Ficamos arrependidos de não termos perguntado nada, quando aquele a quem tínhamos de perguntar já não pode ouvir essas perguntas, já está morto. Mas mesmo que tivéssemos feito todas as perguntas, teríamos obtido nem que fosse uma única resposta? Nós não aceitamos a resposta, nenhuma resposta, não podemos fazê-lo, não devemos, assim é a disposição da nossa sensibilidade e o nosso estado de espírito, assim é o nosso ridículo sistema, assim é a nossa existência, o nosso pesadelo. 

Thomas Bernhard, Autobiografia — O Frio.

6 de agosto de 2017

nos minutos que separavam o colégio de casa habituei-me a procurar caminhos novos, estar atenta aos detalhes e usufruir de um silêncio reconfortante. começávamos o dia com orações e os crucifixos, freiras e esculturas de santos eram omnipresentes. a pureza de espírito e a vida monástica eram preconizadas e, entre esse mundo e o exterior, a violência, o mutismo e a solidão marcavam a diferença. não precisei de muito tempo para descobrir que o meu espírito não era puro mas sim desafiador, provocatório e barroco, estimulado pela observação do que há de mais trivial no mundo em contraponto ao que, embora quotidianamente apregoado, não podia experienciar. mesmo quando pensei em ser freira, era como se o desígnio fosse uma dança invisível onde era protagonista e, assim, mal a madre diretora me perguntou, aos seis anos, se tinha sido chamada, respondi ruborizada que não, ao que ela sorriu e me fez um sinal de cruz na testa dizendo que podia repeti-lo sempre que estivesse triste. não senti nada, nenhuma manifestação de uma entidade superior, nenhum alívio, nenhuma esperança e, se é verdade que voltei a repeti-lo numas poucas vezes de maior angústia, também é verdade que rapidamente me dispensei de ter sido abençoada, consciente de que o significado do gesto era vazio. era nesses momentos de libertação que o meu futuro se abria, desconhecido e vasto. com o passar do tempo, mais as minhas amigas pareciam devotas, indo à missa todos os domingos e participando com entusiasmo nas atividades dos escuteiros e das guias — onde havia mais orações a rezar —, mais me desinteressava, acabando por fim por fazê-lo com sacrifício até conseguir convencer a minha mãe a não ir. antes, contudo, cheguei a chefe nas guias e fugi do desejo dos rapazes nos escuteiros, ocasiões de protagonismo que já chegavam esgotadas. em casa, entretanto, desenhava, lia tudo aquilo a que podia deitar a mão, ouvia música. quando o meu pai se foi embora, a relação com a minha mãe tornou-se conflituosa, de modo que uma violência foi substituída por outra, esta, no entanto, onde tentava ter uma voz. tornei-me uma adolescente revoltada, diligente e astuta, com apenas um objetivo em mente: ir-me embora. sonhava conhecer o mundo e balançava entre fazer justiça e desobedecer aos códigos. nisto, surgiu a escrita, que, apesar de já me acompanhar há algum tempo, começava a impor-se. precisamente por essa razão, na véspera de sair da cidade para ir estudar, destruí todos os cadernos, temendo levar para a minha fuga alguma recordação daqueles anos. queria escrever, mas livre da minha história oficial, onde a banalidade não podia ser resgatada.

5 de agosto de 2017

3 de agosto de 2017

um amigo contou-me ontem uma história extraordinária. quando era um miúdo com cerca de 6 anos de idade, costumava passar por um acampamento de ciganos, perto da sua casa. certo dia, a irmã foi fazer-lhes uma doação de roupa e o pequeno acompanhou-a. ao fundo do acampamento, viu uma menina, morena e de olhos verdes, que devia ter a mesma idade. viu-a ele e viu-o ela. dias depois, voltou a passar pelo acampamento para a ver e tentar meter conversa, mas não a encontrou mais. entretanto, o acampamento foi levantado e os ciganos desapareceram. cinquenta anos depois, numa visita à feira de Carcavelos para comprar roupa, o meu amigo para numa banca e vê uma mulher morena de olhos verdes que o vê a ele também. reconhecem-se e falam pela primeira vez, como se fossem amigos há muitos anos. quando ouço estas histórias, penso sempre que ninguém as acreditaria se as inventasse. mas a vida é isto, encontros e desencontros feitos apenas de olhares remotos e de gestos ínfimos que estão na sombra e cuja intensidade, contudo, é de uma beleza pungente.