26 de agosto de 2017

ainda perto da estação, decidiram parar para almoçar num restaurante à beira rio com uma esplanada onde sobrava uma mesa coberta por toalhas brancas de papel. Clara sentou-se em primeiro lugar, seguida dos pais, Virgínia a seu lado e Armando à cabeceira. Xavier e Rita, o casal de amigos de Clara que os iria albergar alguns dias na quinta onde viviam, perto de Santarém, sentaram-se nos lugares que restavam. o calor começava a subir, assim que todos concordaram que tinha sido uma boa decisão pararem para comer e refrescarem-se antes de seguir caminho. um atento e denso silêncio, que Clara se prontificou a desfazer, acolheu-os à mesa. depois de ter passado o olhar por cada um dos convivas procurando inteirar-se dos seus estados de espírito, pegou no menu para apresentar os pratos do dia. o pai, que mais a preocupava, pois era dado a estados sombrios e desajustados, parecia bem disposto, com um ar fraterno, e a mãe, sempre preocupada com todos, parecia descontraída, embora cansada. à frente de Clara, Xavier mantinha o sorriso de sempre, discreto e impenetrável e Rita, sentada à frente de Virgínia, foi a única a devolver o olhar a Clara. para sua surpresa, a escolha das refeições foi rápida e animada. Clara nunca tinha convidado os pais para casa de amigos e, por isso, sentia algum nervosismo perante o fim de semana que os esperava. mas, depois de terem sido também eles convidados, Xavier e Rita tinham-se mostrado peremptórios e Clara, que conhecia bem a sua hospitalidade, concordou. Armando foi o primeiro a pegar no pão, seguido de Xavier e depois Clara. Armando forrou um pedaço com uma fatia de queijo e Xavier comeu primeiro sem nada e depois com o outro queijo que estava na mesa. Virgínia também comeu desse queijo. Clara abriu a manteiga e Rita não tocou no pão, ficando a comer azeitonas pretas com alho e azeite. Clara temia saber por onde a conversa iria começar e acabou por ser ela própria a dar o mote pois era, até àquele momento, a única a saber que Armando e Xavier tinham passado pela mesma zona em Angola, na altura da Guerra Colonial. enquanto o almoço não chegava, depois do quebra gelo de Clara, descobriram que tinham feito conhecimentos em comum e que por pouco não se tinham cruzado. durante um bom bocado, falaram apenas um com o outro, ora olhando-se nos olhos, erguendo várias vezes as sobrancelhas, ora acenando em confirmação com a cabeça, como se apenas eles os dois conhecessem um certo conto de fadas cujo negrume era para os restantes invisível. Virgínia, cuja história também parecia, em muitos aspetos, pertencer a um conto de fadas de terror, manteve o olhar sobre a toalha branca e o silêncio. ainda que tivesse conhecido Armando em Angola, talvez pensasse que a sua história só poderia ser contada a outras mulheres ou, pelo menos, distante dos reparos do marido. Rita olhou para ela, Clara olhou para Rita, mas as histórias de guerra não se podiam interromper ou ser manchadas pelo ruído de discursos paralelos. Clara lembrou-se que esse conto de fadas feminino continha ameaças, uma fuga com a roupa que tinha no corpo, um casamento num barco por procuração, a chegada a um país desconhecido, uma receção por anónimos, um aborto, um nado morto. a comida chegou. Xavier e Rita partilhariam uma açorda de sável, Clara e Virgínia uma caldeirada à fragateiro e Armando uma perna de cabrito com grelos. a conversa foi alternando entre África e a quinta a que chegariam dali a umas horas, Rita e Xavier explicando com amabilidade que poderiam estar como em sua casa e usufruir de todos os espaços de lazer, do alpendre à piscina, ou mesmo dar uma volta pelo terreno, onde havia toda a espécie de animais e plantas, como árvores de fruto, um canteiro de aromáticas, cavalos, ovelhas e patos. pediram mais uma garrafa de vinho. Virgínia parecia iluminar-se quando se falava da quinta: os seus olhos sorriam. era raro sair da terra, mais raro ainda estar com outros casais. a ocasião havia sido longamente preparada e, apesar da insistência em contrário de Clara, tinha guardado o melhor vestido na mala. nisto, Clara apercebe-se com repulsa que Armando devorou a perna de cabrito enquanto todos ainda estavam a comer, chamando o empregado e pedindo imediatamente uma sobremesa e um café sem esperar por ninguém. Xavier não pareceu reparar, mas Rita ficou confusamente obstinada em comer devagar. logo a seguir, Virgínia termina também a sua refeição e pergunta «o que é que há de fruta?», como se dali o empregado a pudesse ouvir. Clara resmungou o mais gentilmente possível, baixinho e ao ouvido da mãe, «espera um bocadinho», mas não foi ouvida. assim que o empregado trouxe a sobremesa e o café a Armando, Virgínia perguntou «o que são as sobremesas?» e pediu uma. Clara, Xavier e Rita ficaram abandonados à sua sorte de comedores lentos, enquanto Virgínia comia uma sobremesa e Armando pedia uma aguardente. Clara recordou que também costumava terminar as refeições rapidamente e que até já tinha acontecido num jantar que Xavier e Rita desatassem à gargalhada pela sua solicitude ao acabar de comer e ir lavar os pratos, sem pausas. era então dali que lhe vinha o hábito, de comer quase sem respirar, a correr, de não fazer pausas entre o prato, a fruta e o cigarro que lhes seguia, sobretudo quando estava sozinha. comer mais devagar tinha sido portanto uma aprendizagem social depois de ter saído de casa dos pais. agora, era como se a rapidez de Armando e Virgínia fosse um grave sinal de desrespeito das normas que a grandes expensas tinha procurado adaptar-se. com o corpo tenso, percebeu que a moderação a que tinha dedicado a sua vida não passava de uma aprendizagem malograda, alimentada pela revolta, contra os sinais inconscientes da educação que tinha recebido.