31 de março de 2016

FAIRY

Para Helena se conjuraram as seivas ornamentais nas sombras virgens e as claridades impassíveis do silêncio astral. O ardor do estio foi confiado a aves mudas e a indolência requerida a uma barca de lutos sem preço por angras de amores mortos e de perfumes esparsos.
— Depois do momento do canto dos lenhadores rumor de torrente sob a ruína dos bosques, dos chocalhos do gado ecoando nos vales; e dos gritos na estepe.
Para a infância de Helena tremeram as peliças e as sombras, — e o peito dos pobres, e as lendas do céu.
E seus olhos e danças ainda superiores às cintilações preciosas, às influências frias, ao prazer do cenário e da hora únicos.

Jean-Arthur Rimbaud
Não contes a ninguém o que viste, fica-te pela imagem.
inscrição no oráculo de Dodona (Grécia).

de visita à terra natal, assombra-me o facto de, há um ano, ter tido tamanha ilusão acerca dela que cheguei mesmo a pensar, ainda que por breves momentos, na possibilidade de aqui voltar a viver. foi, claro, uma ilusão breve, e contudo, que assustadora. não há, como nunca houve, qualquer lugar para mim aqui. quando digo «qualquer lugar», isso significa que sou obrigada a manter-me inteiramente e a todo o momento em segredo. naturalmente que a exaustão chega a dado momento, por vezes de forma abrupta, por vezes gradualmente, como um vómito que se consegue ou não conter. nos casos em que não posso controlar a explosão, a minha estranheza impõe-se repentinamente como um colosso, bizarro, disforme, sem medida. quando, por qualquer motivo, pretendo ajustar-me, é, ao contrário, uma implosão que se dá, e debato-me no meu mutismo sem aceitar que não tenho chão onde repousar. todos esses fantasmas me perseguem desde sempre, pois não há dúvida de que aqui existe amor. que espécie de ser se debela contra o amor com tanta repugnância? que espécie de ser se afirma por adversão a coisas tão simples como as que aqui existem? incapaz de transmutar a rebeldia em docilidade, refugiei-me na solidão e na escrita, contra as quais, há que dizê-lo, também luto. que espécie de ser não tem lugar sobre a terra? pois eu procuro dizer tudo o que vejo — desejo dizê-lo —, mergulhar nessa repugnância para a desmascarar e desnudar, tal como ela me desnuda a mim. dizer aquilo que ninguém diz, violar o silêncio e erguer-me em plena luz.
tanto sofrimento em troca de tão inútil clarividência. imagem irrealizável, impossível de acender e impossível de apagar; silêncio sem fôlego, contudo, pensante, como uma pacificadora intuição primordial. deve ser isto o inferno, bocas que não emitem som, narizes que não inspiram, mãos que não tocam, olhos que abertos nada vislumbram. que luz íntima não irradia? tanto azul, tanto céu, demasiado céu. por toda a parte ele está, em toda a parte é nele que estou. objetivo e místico, o tempo pertence-lhe por inteiro, como uma bigorna. nenhuma fuga. opaca e rejeitada como uma pequena lasca incómoda, sequer um raio nele desce ao meu encontro. que código regula as extravagâncias da razão? no centro do mundo, nenhuma essência é condenada: que tudo está a nascer significa também que já tudo morreu. nisso reside o pacto com a vida. nem a solidão nem a loucura nem o diabo na sua ambivalência nem a fome em todas as suas vertentes me corromperam e eu caminho sobre as vossas cabeças.

27 de março de 2016

demasiado céu.

18 de março de 2016

Proença da Beira, por exemplo, uma cidade a norte de Portugal, com os seus cafés, jardins, empresas e casas: não aparece nos mapas. Passei por lá há uns anos quando estava perdido a caminho de Valpaços, através da nacional. Lembro-me de ficar incrédulo por umas mulheres já estarem a lavar no tanque àquelas horas, do som da roupa encharcada a bater no cimento. Fora isso, um silêncio absoluto. Tivessem-me descrito o quadro e tê-las-ia imaginado em viva tagarelice ou a cantar. Era trabalho árduo, a hora imprópria até para madrugadores e a água estava fria, de repente parecia-me ridículo que tivesse podido imaginar alguém a cantar debaixo de tanta nitidez. Apenas uma delas olhou para mim dentro do carro vermelho, a meio de um gesto. Parei no Café Central para comer uma bifana, aviar um copo de vinho branco e pedir direções. Passei os olhos pela secção de necrologia do jornal, como se os mortos confirmassem a realidade, e acabei por me demorar mais porque começou a chover. Ainda vi passar um homem que gritou para dentro do café «Vais lá aparecer logo?», a quem responderam «Tu agora não queres mai' nada!». Já de saída fui encher a garrafa num bebedouro de granito com a inscrição «1872», que ficava à frente de uma capela, bem bonita aliás, de estilo medieval. Só quando finalmente cheguei ao meu destino me apercebi do insólito. Cheguei a procurar mapas em bibliotecas e lojas da especialidade, em nenhum encontrei sequer uma referência. Seria um nome antigo e a placa onde o vi assinalado resultante de uma comemoração histórica? Mesmo assim, não deixaria de ser inédito. Como pensar nela? Como uma cidade fantasma? Ou como uma cidade imaginária que realmente passou a existir?

16 de março de 2016

no liame oculto entre as formas há qualquer coisa que não é possível encontrar. um olhar vivo como um relâmpago não penetra esse núcleo vivo cuja irresistível evidência de uma origem comum, se torna afinal um obstáculo, ao mesmo tempo insuperável e irresistível, e oferece caminho à reconstrução da consciência. a vidência não é uma dádiva. o olhar que rompe de alto a baixo o espaço e o tempo está isento de qualquer inquietação, repugnância ou remorso e na essência da vida observa a sua voracidade.

15 de março de 2016

Mania do suicídio

Às vezes tenho desejos
de me aproximar serenamente
da linha dos eléctricos
e me estender sobre o asfalto
com a garganta pousada no carril polido.
Estamos cansados
e inquietam-nos trinta e um
problemas desencontrados.
Não tenho coragem de pedir emprestados
os duzentos escudos
e suportar o peso de todas as outras cangas.
Também não quero morrer
definitivamente.
Só queria estar morto até que isto tudo
passasse.
Morrer periodicamente.
Acabarei por pedir os duzentos escudos
e suportar todas as cangas.
De resto, na minha terra
não há eléctricos.


Rui Knopfli

9 de março de 2016

Não existe maior obstáculo para conseguir a libertação do que a necessidade de fracasso.

Émile Cioran