23 de junho de 2019

ocultar o rosto. barbas, maquilhagem, tatuagens, o cabelo que se força a cobrir a testa, fotografias com óculos e orelhas de animais virtuais, e os recursos ao photoshop que, entre olhos aumentados e defeitos escondidos, aumentam e se diversificam.
o que é o rosto? em Lévinas, o seu grande filósofo, o rosto não deve ser entendido no sentido próprio. ele excede qualquer descrição possível, seja a cor dos olhos, a forma do nariz, o desenho dos lábios, o seu eixo, como qualquer outra característica ou atributo. Lévinas descreve o rosto como uma miséria, uma vulnerabilidade e uma indigência que, em si, sem palavras explícitas, imploram ao sujeito uma resposta, exigindo-lhe apoio e ajuda. o acesso ao rosto é, pois, imediatamente ético: "Le visage s’impose à moi sans que je puisse cesser d’être responsable de sa misère. La conscience perd sa première place" (Totalité et infini, 1961). nele, o olhar é conhecimento, perceção. está sempre a nu, oferecido, exposto, sem defesa. a relação social com outrem impede a sua objetivação, a sua descrição. e é ambivalente: na sua nudez, a primeira palavra, que não é dita mas cujo significado é expresso, é «não matarás». mas a nudez do rosto traz consigo igualmente a mensagem inversa, a da tentação do homicídio. enfim, o rosto «fala», reclama que lhe respondamos e que respondamos por ele. a sua aparição é um mandamento moral, uma ordem.
tenho prazer em contemplar rostos completamente nus, sem maquilhagem ou adereços, pois são uma potência ativa reveladora de intimidade. tão mais perto se encontram da beleza mais intacta quanto mais perigosamente se aproximam da nudez mais crua, mais pobre.


14 de junho de 2019

de cada vez que o vento se levanta, um buliço atinge as árvores e o pó, de modo que parece que um avião parte, atravessando o céu perto dos telhados. ao que dei conta, devem ter partido cem aviões esta tarde e eu, deitada no sofá, olhando pela janela para as casas silentes e sem mudança, ouvi-os atentamente a todos. caindo a noite, o vento sossegou. os pássaros começaram a aparecer na varanda e senti vontade de ouvir música. deslizei para fora do sofá e vim ocupar a cadeira à frente da escrivaninha, olhando para as listas de artistas que guardei no computador. será errado profanar o silêncio do meu luto? como poderei usar uma língua que nasceu da tua extinção? depois de ti, o que é que eu vou dizer? a atenção dissipou-se, os objetos desta casa esquivam-se aos seus nomes, a tradução de um pecado tornou-se concêntrica, sem fim e sem destino. o sol arde, mas não vejo os teus destroços. estás fora da linguagem,

exata
intacta
inteira

como o princípio de um precipício.

*

para a minha mãe, que faria anos hoje.

11 de junho de 2019

teria saudades de fazer aquele caminho, embalada pela luz do estio, vagarosa e soberba, que todos os lagartos procuravam. a paz era tanta que a cada passo se afundava mais profundamente, contudo, sem peso, como se a terra a recebesse pela primeira vez e, assim, pudesse participar do seu âmago, intacto e inexplorado. procurava agora a água, mas, sem a encontrar, esperou. o céu sem nuvens era ameaçador, como uma doença. sem esperar nada, esperou ainda até a noite cair completamente, altura em que as pessoas começaram a aparecer, passando por ela sem notarem a sua presença compacta e inabalável. de uma alegria que encontra o deserto, diluiu-se num medo que sabe do silêncio da morte, sombra feminina sem expressão, sem eloquência, sem força. levantou-se do nada sem desejar mover-se e procurou a ousada metáfora para o jogo do tempo, que só no fim executava os seus movimentos e se cumpria. o sono alcançou-a e desistiu da vigília. o caminho perfeito foi esquecido para sempre, a água inundou-lhe os sonhos e o medo elevou-se à intrépida insensatez do amor.