29 de novembro de 2019

Não quero dar-me bem com toda a gente. Não gosto de toda a gente. Não sou nem quero ser politicamente correta. Mas também não preciso de ter uma opinião sobre tudo. Há assuntos que não me interessam. Outros há ainda que me interessam sem que sinta necessidade de me manifestar sobre eles. Não tenho uma fotografia para publicar todos os dias no Instagram. Nem todas as semanas nem todos os meses. Não preciso de publicar nas redes sociais os livros que leio, os espetáculos a que assisto, as exposições que visito. Devia haver mais silêncio. São as crianças que dizem tudo o que lhes passa pela cabeça. Escolher não falar é um sinal de emancipação. Se isso custar a admiração de alguém, tanto melhor, será revelador. Gostaria de ter um impacto discreto no mundo, reservado, como um segredo que só se oferece a alguns. Dito isto, a verdade é que tenho — sempre tive — dificuldade com as palavras. Não sou prolixa, sou nefelibata. Prezo a minha solidão e claramente prefiro escrever do que falar. Pressinto a ameaça dos mal entendidos em cada diálogo, como se se tratassem de armadilhas potenciais, outros como verdadeiros flagelos infligidos pela verborreia e pela vaidade, incluindo a minha própria. Além disso, preciso de esvaziar a cabeça mais do que me permito. O prazer da contemplação é das coisas mais preciosas que descobri na vida. Não ter de me explicar ao mundo, nem de me provar, é condição indispensável de uma existência que dispensa o alarde da felicidade.

28 de novembro de 2019

o corpo

ubíquo e pesado
o céu manifestava-se
através das suas cores,
nuvens e estrelas.
o vento e os pássaros
atravessavam-no como
sons relativamente
concretos,
isto é,
singulares.
olhei para ele
enquanto me falavas,
sem esperar submergir-me.
escancarado o coração
sonhei beijar-te ali,
tocar-te nos ouvidos,
nas mãos.
não o fiz.
esperei que acabasses
para apontar
para o alto
e ver nos teus olhos
e veres nos meus olhos.

24 de novembro de 2019

sem dúvida
há qualquer coisa
que me liga a este dia
ainda por descobrir

o sino toca ao longe
e ecoa pelas ruas
da cidade tranquila
a esta hora

o céu está branco
mas não há vento
o ar seco não faz
adivinhar a chuva

não é um dia
como os outros
a incógnita avisa-me
que nunca o vivi.

19 de novembro de 2019

Sobre o fim do mundo

O tema do fim do mundo apareceu várias vezes na história da cristandade e, em todos os períodos, surgiram profetas que anunciavam como próximo o último dia. É singular que hoje essa função escatológica - que a igreja esqueceu - tenha sido adotada pelos cientistas, que se apresentam cada vez mais frequentemente como profetas, que preveem e descrevem com absoluta certeza as catástrofes climáticas que levarão ao fim da vida na terra. Singular, mas não surpreendente, caso se considere que, na modernidade, a ciência substituiu a fé e assumiu uma função propriamente religiosa – ela é, aliás, em todos os sentidos, a religião do nosso tempo, aquilo no qual os homens acreditam (ou, ao menos, acreditam acreditar).
Como qualquer religião, a religião da ciência também não podia deixar de ter uma escatologia, isto é, um dispositivo que, mantendo os fiéis no medo, reforça a fé deles e, ao mesmo tempo, garante o domínio da classe sacerdotal. Aparições como Greta são, nesse sentido, sintomáticas: Greta acredita cegamente naquilo que os cientistas profetizam e espera o fim do mundo em 2030, exatamente como os milenaristas na Idade Média, que acreditavam no retorno eminente do messias para salvar o mundo. Não menos sintomática é uma figura como aquela do inventor de Gaia, um cientista que, concentrando os seus diagnósticos apocalípticos sobre um único fator – a percentual de CO2 na atmosfera -, declara, com estupefaciente candor, que a salvação da humanidade está na energia nuclear. O que está em jogo, em ambos os casos, tem um caráter religioso e não científico, que se revela na função central que um vocábulo – a salvação - tirado da filosofia cristã da história exerce.
O fenômeno é ainda mais inquietante na medida em que a ciência nunca incluiu a escatologia entre as próprias tarefas, e é possível que o emprego da nova função profética traia a consciência da própria inegável responsabilidade nas catástrofes das quais prevê a chegada. Naturalmente, como qualquer religião, a religião da ciência também possui os seus incrédulos e os seus adversários, isto é, os adeptos da outra grande religião da modernidade: a religião do dinheiro. Porém, as duas religiões, aparentemente divididas, estão secretamente em solidariedade, uma vez que foi certamente a aliança - cada vez mais forte - entre ciência, tecnologia e capital, que determinou a situação catastrófica que hoje os cientistas denunciam.
É preciso que fique claro que estas considerações não pretendem tomar posição quanto à realidade do problema da poluição e das transformações nocivas que as revoluções industriais geraram nas condições materiais e espirituais dos seres vivos. Ao contrário, alertando contra a confusão entre religião e verdade científica, e entre profecia e lucidez, trata-se de não deixar acriticamente que as partes interessadas ditem as próprias escolhas e as próprias motivações, que, em última análise, não podem ser senão políticas.      

Giorgio Agamben, 18 de novembro de 2019, tradução Luan Sevignani.

17 de novembro de 2019

The silence afterwards

Try to be done now
with the provocations and sales statistics,
the Sunday breakfasts and incinerators,
the military parades, the architecture competitions
and the triple rows of traffic lights.
Get through it and be done
with the party preparations and marketing analyses
for it’s too late,
it’s far too late,
be done with it and come home
to the silence afterwards
that meets you like a hot spurt of blood against your forehead
and like the thunder on the way
and the chimes of mighty bells
that make your eardrums quiver
for words are no more,
there are no more words,
from now on everything will speak
with the voices of stones and trees.

The silence that lives in the grass
on the underside of each blade
and in the blue intervals between the stones.
The silence
that follows after the shots and the bird-song.
The silence
that lays a blanket over the one who is dead
and that waits on the stairs until everyone is gone.
The silence
that nestles like a fledgling between your hands,
your only friend.

Rolf Jacobsen
CONTAM DE CLARICE LISPECTOR

Um dia, Clarice Lispector
intercambiava com amigos
dez mil anedotas de morte,
e do que tem de sério e circo.

Nisso, chegam outros amigos,
vindos do último futebol,
comentando o jogo, recontando-o,
refazendo-o, de gol a gol.

Quando o futebol esmorece,
abre a boca um silêncio enorme
e ouve-se a voz de Clarice:
Vamos voltar a falar na morte?

João Cabral de Melo Neto
Let’s suppose you were able, every night, to dream any dream you wanted to dream. Naturally, as you began on this adventure of dreams, you would fulfill all of your wishes. You would have every kind of pleasure during your sleep. And after several nights you would say, ‘Well, that was pretty great, but now let’s have a surprise. Let’s have a dream that isn’t under control, where something is going to happen to me and I don’t know what that something will be.’ Then you would get more and more adventurous and you would make further and further gambles on what you would dream. And finally, you would dream where you are now.

Alan Watts, The Dream Of Life.
Ninguém se mata pelo amor de uma mulher. Matamo-nos porque um amor, não importa qual, nos revela a nós mesmos na nossa nudez, na nossa miséria, no nosso estado inerme, no nosso nada.

Cesare Pavese
Certainly I am poor and up to this day have never lacked in failure, but life without success can also be beautiful.

Robert Walser, Girlfriends, Ghosts, and Other Stories.
Ninguém tem o direito de se comportar comigo como se me conhecesse.

Robert Walser

11 de novembro de 2019

Fazem-me falta
todos os cigarros
que deixei de fumar
desde que deixei de fumar.

Enquanto não os fumo
lembro o gesto, o sabor, o odor,
— a suma passividade
de quem vê ruir o mundo
sem se comprometer.

7 de novembro de 2019

If we walk in the country
On a Winter sunny day
We feel happy to be alive
Especially if it rained
The night before.
A bright and sunny day in the Winter
And not a rain cloud in the sky
There is a joy that comes to light
When sunny days appear
A bold sense of warmth
Each time the skies are wide open
A moment’s peace, a sacred calm
And stillness, all day through.