30 de novembro de 2016

que bom é ter notícias do que escrevo através daqueles dois ou três amigos que me lêem. que sentem falta, que ainda bem que voltei, quando fico temporadas mais longas sem escrever. por vezes custa-me acreditar nessas vozes tão generosas e afáveis, mas no final acredito neles. tal como a traição, que se ultrapassa no amor mas não na amizade, há um certo tipo de conforto que só os amigos trazem. ponho-me a pensar, para quem escrevo? trabalho muito pouco tempo; posso apenas dizer que se trata de uma prática constante ao longo da minha vida. primeiro apenas em diários, um ou outro artigo num jornal de província, trabalhos de faculdade, cartas, houve muitas e era das coisas que mais gostava de escrever — e de receber —, depois os blogues, as redes sociais, uma peça de teatro. em todos os registos, no entanto, mantenho quase sempre um tom pessoal, íntimo, de confidência. mesmo na ficção, há sempre uma parte inventada, ou seja, de certo modo exterior, e outra que vem da minha vida, nem que seja da minha vida mental. «escrevo só para mim», dizia no outro dia a um dos amigos que costuma ler este blogue. «é por isso que só escreves sobre ti», respondeu ele com a propriedade que lhe é característica. mas o que eu disse não era verdade. na realidade, escrevo para eles, para os dois ou três amigos que me perguntam, um pouco a medo, porque não tenho escrito. a pergunta assoma do fundo das suas vidas e tem tanto de dito como de não dito. se gostaram ou não, de repente parece tão pouco. dá-me que pensar no escreveram eles, enquanto liam.

29 de novembro de 2016

há qualquer coisa de miraculoso no amor e, no entanto, acontece a todos. as histórias do amor são todas únicas — por isso todos querem contar a sua — e ao mesmo tempo são todas a mesma história.

28 de novembro de 2016

insuficiência renal. no início pensei que fosse por me masturbar tanto. nem sabia de onde vinha a dor. hospital, médicos, perfurações, a paz. acordei de noite, sem saber localizar-me, com um gemido contínuo ao fundo da sala. talvez tivesse chegado a minha hora. não deixava nada, a minha passagem pela terra era como um fantasma cuja existência nunca se consegue provar. tanto melhor. não havia razão para ter nascido porque haveriam razões para não morrer? o cabelo caiu-me, a pele caiu-me, a vontade caiu-me e agora, na sua obscuridade, os órgãos caíam também e não havia nada que médicos, hospitais e perfurações pudessem fazer quanto a isso. a um órgão seguir-se-ia outro órgão e depois outro, até nada restar senão uma carcaça podre, também ela destinada a secar e a desfazer-se. a vida, como a morte, acontece e esse acontecimento está livre da nossa intervenção. por isso recordo hoje com mais veemência — e regularidade — o dia solarengo em que saí da escola descendo a ladeira, do que o nascimento da minha primeira filha, ou da segunda de resto. achava eu nesse dia que tudo estava a começar e que a vida seria uma sucessão de maravilhosas conquistas. não havia qualquer razão. não foi senão muito depois disso que a S. me deu a mão a caminho da aula e que o professor de matemática me distinguiu com um prémio por ter tido a nota máxima no teste. esse dia não teve nada digno de memória e, no entanto, eu recordo. o sol, a ladeira, a solidão. terá sido esse o dia mais bem vivido?

24 de novembro de 2016

foi a muito custo que me tornei melhor ouvinte e melhor observadora do que participante. o silêncio é de ouro, bem se diz, e agora, na grande maioria das vezes, é ele que me defende de me tornar uma aberração aos olhos daqueles que verdadeiramente o são.

23 de novembro de 2016

nunca fui ao cemitério visitar a campa de alguém, nem no dia de finados nem noutro qualquer. visitar ossadas tornadas anónimas é um ato esvaziado de significado para mim e assim os meus mortos sobrevivem na memória que guardo deles, em pequenos gestos e expressões que por vezes irrompem ao longo de um dia, como vultos. em contrapartida, a romaria de quem visita os cemitérios fascina-me. as suas campas, jazigos e ciprestes, possuem para mim, que desconheço a razão de se cunhar a morte com uma vida além dela, e por pretenderem insistir na individuação, um mistério inabalável. na verdade, na minha perspetiva, uma vala comum faria mais sentido. sem dúvida por isso, as capelas mortuárias que se enchem de pessoas nos velórios ansiosas por saberem da vida uns dos outros, as flores frescas deixadas nas campas, as orações e as conversas à beira delas recordando o morto, os epitáfios pouco ou mais elogiosos, impressionam-me tanto quanto a mais rara das obras-primas.

22 de novembro de 2016

I usually solve problems by letting them devour me.

Franz Kafka

11 de novembro de 2016

9 de novembro de 2016

Dar um passo não é sinal de ter chegado à meta, é sinal de querer percorrer a estrada.

6 de novembro de 2016

visto anos depois, incompreensível e assustador, o desenho parecia-lhe o resultado de um espírito demente. lembrava-se de o ter feito, depois de uma sesta num fim de tarde de primavera, mas nada mais. quis acreditar que não fora ele realmente a fazer aquilo e não podia. com repulsa, quis deitá-lo fora imediatamente e no entanto hesitava. aliás, não conseguia deixar de o observar. qualquer coisa, porventura o que nele havia de obsessivo e enigmático, deflagrava aos seus olhos como algo obscuramente belo. procurou recordar-se. tinha-o encontrado por acaso entre papéis desarrumados e sabia que era o desenho do que tinha visto num sonho. sabia que o tinha feito, a carvão, mal tinha acordado. mas não se lembrava do sonho e rever os seus elementos transpostos para o papel não o ajudava a lembrar-se. e teria isso ajudado a convencê-lo de que não era louco? a evidência, parecia-lhe, estava diante dos seus olhos, e não podia negá-lo. não sabia, de facto. com fita-cola, afixou o desenho na parede. seria o único assim? a ideia alarmou-o. mais alguém poderia ter visto um desenho daquela época e até tê-lo guardado. podia estar intacto, algures. porém, como a sua inquietação era inconfessável, nunca iria descobrir. nos dias seguintes, o desenho e as suas formas não lhe saíram da cabeça. uma enorme sombra projetava-se de um monólito no centro, sobre o qual estava um espelho com um corredor e uma porta. diversos animais rodeavam a peça central, como que em movimento, e uma mão saía de um deles. apesar de desenhada toscamente, não sabia porquê, essa mão parecia-lhe real, como se pudesse tocá-lo, e era nela que mais refletia. que espécie de loucura teria produzido aquela mão para que fulgurasse no canto de uma folha de papel, olhando-o? que espécie de loucura, enfim, a via olhá-lo? havia muito que a suspeita de que encontrava doente tinha surgido e agora não podia mais recalcar essa dúvida. permanecia secreta, contudo, a doença que o corroía e que, por vezes a muito custo, conseguia ainda esconder. eram sobretudo os pequenos detalhes que mais lhe causavam esforço. havia de chegar o dia em que deixaria de conseguir esconder-se e a doença tomaria por fim lugar. nos últimos anos tinha adquirido asco pelos espelhos e pensava agora se isso se devia a esse sonho antigo. a imagem que lhe devolviam era demasiado nítida para que pudesse suportá-la. fosse como fosse, dizia-se vários dias depois, mais do que a demência, era a beleza que se manifestava. seria louco talvez, mas entre as ranhuras do mundo ela surgia, pequena, sem valia nem propósito. e ele via.
Assassine os seus entes queridos.

Stephen King, Escrever.

3 de novembro de 2016

Espinosa, segundo Alain, mestre da alegria, mostra que «não é porque me aqueço que estou contente, mas é porque estou contente que me aqueço», isto é, só há uma maneira de resistir ao frio, é ficar contente que ele venha (como parece extravagante uma tal compreensão numa época em que tudo o que ventos, marés, temperaturas nos trazem é submetido às mós dos pequenos sistemas de finalidades).

Maria Filomena Molder, in Sobre a Alegria.