15 de outubro de 2018

Em agosto de 1937, os fragmentos de um Kouros de mármore foram transportados em três caixas para o Museu Arqueológico Nacional de Atenas, em Paris, onde agentes da polícia gregos o receberam da parte do marchand M. Roussos, que residiu na cidade durante algum tempo. Não foi senão mais tarde que o contrabando da estátua foi confirmado, tendo saído de Anavissos, perto de Lavrion, uma cidade na parte sudeste da Ática, na Grécia, por mar, um distrito escassamente povoado cuja costa foi durante anos palco de um sistemático tráfico em antiguidades. Do grego κοῦρος, que significa jovem ou rapaz, um Kouros designa um tipo de estátua da Grécia Antiga representando um jovem do sexo masculino. De pé, nu, com longos cabelos encaracolados e com o chamado sorriso arcaico, típico da escultura grega deste período (50 a.C. a 500 a.C.), o nome tanto era associado a imagens de jovens homens nus como a um jovem adolescente imberbe, tendo ainda sido utilizado por Homero para se referir a jovens soldados. Podendo atingir três vezes a estatura humana, têm a cabeça erguida e os olhos direcionados para o ponto de vista do observador. Estas estátuas surgem em templos como oferendas votivas, ou em cemitérios, em túmulos de cidadãos importantes, embora nunca representem pessoas reais: com a rigidez da representação formal, os seus rostos não são retratos. Esculpidos em mármore, apenas os mais abastados podiam pagar a escultores por obras deste valor e assim, os Kouros tornaram-se o símbolo da riqueza e do poder da classe aristocrática grega. Provavelmente tendo sido desenterrado de um túmulo, o Kouros de Anavissos tem 1,94 de altura e possui a seguinte inscrição: Στηθι και οικτιρον: κροισο παρα σημα θανοντοσ: ον ποτ’ ενι προμαχοισ: ωλεσε θουροσ: αρησ (Detém-te e lamenta junto a este monumento pelo defunto Kroisos, que ao guerrear na vanguarda foi morto pelo violento Ares).
Em 1983, Joël-Peter Witkin, um artista nova-iorquino cujas fotografias encenadas e construídas retratam cenas macabras, muitas vezes grotescas, fotografou Lisa Lyon, uma famosa halterofilista e modelo, como o Kouros de Anavissos, completo, com um pedestal de dois níveis. Lisa Lyon é considerada uma pioneira do halterofilismo feminino. Depois de se interessar pelo kendo, a arte japonesa da esgrima, e tendo entendido que lhe faltava força na parte superior do corpo, Lyon começou a treinar com pesos e, em junho de 1979, vence aquela que foi a única competição da sua carreira, o Campeonato Mundial de Halterofilismo Feminino. Em 1980, Mapplethorpe começou a documentar o seu corpo, mas Lisa foi também modelo para Helmut Newton e Marcus Leatherdale. À data em que conhece Witkin, já apareceu em filmes, em muitas revistas, incluindo a Playboy, e em programas de televisão, promovendo o culturismo para mulheres. Assemelhando-se a uma escultura congelada na argamassa cinza de uma impressão de gelatina prateada, nesta fotografia está de pé, com os punhos fechados pendidos de cada lado e uma das pernas ligeiramente avançada e fletida para indicar um passo à frente, tal como a estátua original — para os gregos, só pensa quem caminha. Facilmente a mais intimidadora dos dois guardas, como que para intensificar a ambiguidade e evidenciar as características masculinas, ao contrário do Kouros de Anavissos o seu sexo permanece na sombra e o seu rosto volúvel deixa de pertencer a este mundo.

Joël-Peter Witkin, Lisa Lyon as the Anavyssos Kouros, 1983.

14 de outubro de 2018

a solidão que ele procurava alcançar através do sexo estava misturada com essa disponibilidade, ligeira e despreocupada, da decisão viril. um culto a um certo tráfico parecia inspirá-lo por momentos — uma subtil variante da pressão. como no ato criativo, desejava libertar-se de si próprio e do seu nó de angústias que não são compensadas por nada. depois, nos locais do vício o silêncio voltava, frondoso e sem precedentes.

11 de outubro de 2018

A meditar, justificava o seu desejo de solidão
a solidão não é mais do que a salvaguarda da escrita quando o desejo se apresenta.
A solidão é a defesa do texto.

Maria Gabriela Llansol, O livro das comunidades.

6 de outubro de 2018

podia-se pensar que a minha mãe teria escrito poesia apenas antes de casar, vir para Portugal e ter duas filhas, mas isso não é verdade. de facto, a minha mãe escreveu durante toda a vida: em pequenos cadernos e blocos de notas anotava memórias do seu dia, frases que tinha lido ou ouvido, sítios que queria visitar e até mesmo piadas. alguns dos textos mais tocantes são sobre os netos, a sua principal fonte de alegria, mas sempre me comoveu a maneira como procurou descobrir formas de encarar a vida mais positivas, mais otimistas, o que a fez anotar também preceitos de sabedorias milenares ou populares. valores como a tolerância, a generosidade, a paciência, o humor, a brincadeira, todos eles raros, eram seu apanágio. tenho o privilégio de ter lido alguns dos poemas que escreveu em adolescente, ainda em Angola. são sobre a descoberta do amor, sobre como ela mergulhou no amor: absolutamente.

In memoriam 8 de setembro de 2018.
numa cidade operária oblíqua sobre a colina, desenrolam-se vários acontecimentos interrompidos e contaminados por objetos falsos. o ambiente é insolitamente animado: miúdos e graúdos discutem febrilmente, o sol penetra nas coisas, todas as manobras são ao mesmo tempo ingénuas e sonoras, como se sonhadas. lívido, quase abjeto, o cintilar da luz mistura-se com a emanação profana de Alexandre no horizonte. o seu riso manhoso e os seus cabelos louros, os seus gestos, as suas palavras, o seu ir e vir, são insustentavelmente modernos. calculando a ânsia pura e os desafios do pudor, cada um dos habitantes da cidade é íntimo com ele, ou seja, é observado, e, sem se conterem, deixam transbordar os seus dilemas. o vazio é assim preenchido e não há nisso nada de especial.