26 de junho de 2017

CORO DE MARIONETAS (tom ríspido e severo).
"Olha que a comida não fica aí!"
"Só te faz é bem!"
"És cá um mariquinhas!"
"Quanto eu tinha a tua idade é que tu havias de ver...!"
"Não me faças ir aí!"
"Queres ver que eu vou aí?"
"Vê lá se aprendes com o teu irmão!"
"Ficas aí sozinho a comer tudo até ao fim!"
"Estás cada vez pior!"
"Assim nunca vais ter amigos."
"Só mais uma garfada, não chores!"
"Não vais dormir enquanto não comeres tudo!"
"Não te volto a avisar!"

Como um quarto sem telhado (excerto).

25 de junho de 2017

muito ao longe, vi a contra-luz um perfil que se destacava na praia e fiquei hipnotizada por ele. uma mulher de grande estatura, vestido e chapéu, abraçava nitidamente apaixonada um homem, que lhe retribuía a atenção. duas crianças brincavam sentadas na areia aos seus pés, tranquilamente ignoradas. ao vulto da mulher, chamei imediatamente Virginia Woolf. era muito magra, o vestido comprido e o chapéu pareciam vindos de outro século, tinha um nariz proeminente e era extraordinariamente alta. ao longe, parecia uma marioneta a quem alguém ia imprimindo os movimentos. com aqueles membros esqueléticos, o nariz tão destacado, os pequenos tufos de cabelo saindo do chapéu, alta como uma torre e vestida apesar do calor intenso, era muito feia. fiquei a observá-la toda a tarde, imaginando divertida que uma das minhas escritoras preferidas tinha uma sósia viva. sonhei com os campos de onde vinham, o countryside inglês, onde ela usaria vestidos às flores e chapéus com fitas de cetim e levaria uma cesta para o mercado. como se estivessem numa ilha deserta, a ternura que manifestava através de abraços, segredos ao ouvido, beijos, contrastava enormemente com aquilo que se via na praia entre outros casais e, durante essa tarde, impressionou-me sobretudo a pouca atenção que ela dava às duas crianças. existia levemente, como se não tivesse uma preocupação no mundo senão a de amar. foi isso que me enfeitiçou.

24 de junho de 2017

«Em Lisboa nunca até hoje houve noites quentes como estas, saía-se sempre com um casaquinho», ouvi no outro dia a uma amiga. e que pena tive dos lisboetas! eu que recordo os longos estios em que a cidade toda saía à noite para passear no jardim e na avenida que o contorna, em mangas cavas e alças. comiam-se gelados, as crianças corriam escondendo-se nos arbustos, o café que tinha a esplanada debaixo de uma videira carregada de uvas brancas estava cheio. as velhas sentavam-se em bancos à porta de casa e ficavam a conversar até tarde. depois, a minha avó estendia colchões de praia para toda a família na varanda e aí dormíamos, embalados pelas cigarras e pelo som do vento no trigo. esse calor colou-se a todos os que o viveram e, com frequência, o recordamos em conversas triviais. o ar mole dessas noites que, ao contrário, desapareceram da cidade onde nasci, no interior do país, era a imagem da felicidade. hoje as noites são desertas. ninguém passeia, ninguém se encontra nos cafés, ninguém conversa até altas horas, as crianças ficam fechadas em casa a ver televisão ou a jogar tablet. como seria Lisboa há 40 anos? convenço-me, sem apelo nem agravo, que esta cidade nunca será minha. o meu coração, que tanto a deseja desde criança, sempre tendeu para amores impossíveis.

22 de junho de 2017

fui para o jardim com um livro debaixo do braço e uns calções de ganga mal amanhados, cortados por mim, uma t-shirt demasiado larga e a depilação por fazer. precisava da brisa de fim de tarde e da visão das árvores para afastar a fadiga do dia. ao chegar, encontro um antigo colega de trabalho no quiosque, uma daquelas pessoas que só veste calças beijes e camisa branca ou azul, casado, com dois filhos, apesar de ser muito mais novo do que eu, que tem uma mulher loira e trabalha numa leiloeira de arte. percebi imediatamente que teria preferido não me ver mas não percebi logo porquê. ao aproximar-me, resigna-se a olhar na minha direção, e a sorrir, mas não pôde evitar olhar com horror para a minha t-shirt e para os calções. dirigi-me a ele, também por obrigação, porque não me apetecia ver ninguém. estava com um carrinho de bebé onde a sua filha recém-nascida dormia e falou dela. depois explicou-me que ia haver ali um jantar de trabalho. reparei então em duas mulheres vestidas de igual, quase nuas à exceção das pernas, plantadas com as mãos atrás das costas perto de um expositor de gin e numa mesa comprida com uma toalha vermelha, copos de pé alto e pratos bonitos. foi nesse momento que percebi o seu pouco à-vontade comigo. não estava à altura da ocasião e era com certeza muito incómodo demonstrar perante os colegas que conhecia pessoas da ralé. afastei-me com o meu livro para debaixo da copa das árvores e, enquanto caminhava, reparei que colocava os pés à frente um do outro como uma menina, como me ensinaram a fazer no colégio. foram apenas três ou quatro passos mas bastaram para que não saiba qual de nós foi o mais ignorante.

20 de junho de 2017

oiço na minha casa a vizinha gritar com o cão que ladra, a que se segue um chorrilho de palavrões. todos os dias é assim, às vezes várias vezes por dia. passa-se o mesmo com as crianças. não só ela mas vários adultos que vivem no bairro falam a gritar e não se coíbem de dirigir os palavrões mais escabrosos a crianças muito pequenas. e é ainda muito pequenas que estas crianças os devolvem ao adulto que grita e que, mais tarde, sentadas em escadas à entrada das suas casas ou enquanto caminham pelo bairro, os usam nas conversas com os amigos. apesar do que acabo de descrever, o bairro onde vivo é calmo, em minha casa ouço o restolhar das árvores, sobretudo à noite quando o vento se levanta e, de manhã, ouço tantos pássaros que os seus bandos me parecem ser em número superior à presença humana na cidade. de resto, o silêncio. quase não passam carros e não se ouve barulho de obras. quando estes gritos rompem o espaço é por isso inútil esperar que o sossego seja reposto rapidamente. muito depois da minha vizinha se calar ou depois de um adulto ameaçar uma criança com dois ou três palavrões que me arrepiam a espinha, fica uma tristeza no ar. dela e da violência me protejo saindo pouco de casa. sou estranha a quem quer apontar o dedo e a quem se defende, estranha ainda a quem persiste na defesa da verdade, que não passa de uma ficção insípida. estes gritos a um cão que ladra parecem-me também eles latidos indiscerníveis e estridentes que percorrem a rua e depois as casas, deixando nelas um lastro de fealdade.

19 de junho de 2017

uma anomalia no fluxo de pensamentos fê-lo levantar-se. era tarde, a lua brilhava sobre o soalho. caminhou até à soleira da porta, o silêncio próspero da noite trouxe-lhe o alívio de que precisava para esquecer o pavor que o tinha impedido de adormecer e avançou pelos corredores da casa às escuras, onde todos os quartos estavam vazios. olhando para a sua mão esquerda, viu como prolongava o pulso. era escura, avermelhada, azul e negra, sobretudo negra. levantou a cabeça e as pálpebras em direção à cama. fosse o que fosse em que pensava há momentos, parecia ter-se tornado impenetrável. no entanto, precisava de saber a verdade. voltou a deitar-se e fechou os olhos, crendo que isso o ajudaria a lembrar. os pensamentos, confusos, eram trémulos como uma boca, incertos como a orla de uma labareda, informulados como um lento apelo; as palavras vinham em fragmentos, como marcas num deserto ventoso. cosendo uns e outros, chegou à conclusão que uma dinâmica subtil lhe tinha revelado a alegria divina. era uma montanha em movimento num hiato vazio, a força que a percorria era tal que se mostrava indizível. desejou regressar à sua inércia e à sua lucidez, mas a visão vibrava incessantemente. era uma fonte de vertigem atravessada por sinais da vida, ao mesmo tempo banal e inexpugnável. como transpô-la? reparou no horizonte cerrado da montanha, nas suas cores avermelhadas, azuis e negras. com uma respiração infantil, o seu corpo tinha chegado ao lugar mais limpo da noite, como se fosse preciso adormecer onde o olvido e o segredo quase dizem um nome.

18 de junho de 2017

quando alguém dançava com ela ficava excitado. eu sabia e tinha guardado o segredo até que fizemos uma festa. olhei para ela na pista de dança, sorrindo subtilmente enquanto dançava com M.. as suas pernas enrolavam-se nas dele, os seus braços, leves e finos, pousavam-lhe delicadamente nos ombros. depois de dançar com ela, M. veio sentar-se à minha beira e disse-me: «fico sempre um pouco constrangido em dançar com a V. porque fico logo excitado». a declaração irritou-me. eu tinha tido uma relação sofrida com M., da qual V. conhecia os detalhes. oficialmente as coisas entre nós ainda não estavam resolvidas e senti ciúmes, não queria que ela dançasse com ele assim nem com mais ninguém, queria ser única. nisto, começa a ouvir-se o These Arms Of Mine do Otis Redding e ela avança para mim, puxando-me pelo braço para me levantar e dançar com ela. o meu nervosismo assomou, tremeram-me as pernas, corei imediatamente. sem hesitações, enlaçou-me, dançámos languidamente, os corpos colados um no outro. lembro-me do cheiro do cabelo dela, da cintura fina abaixo de um peito generoso, de como era alta e magra, da saia comprida, da penumbra que nos rodeava. esqueci tudo o resto, só ela existia abraçada a mim. no final da música, surpreendeu-me que o seu sorriso se tivesse apagado um pouco e, sobretudo, de também ela ruborizar, afastando-se de mim com uma certa resignação. não demorei muito a perceber que também ela tinha ficado excitada. quis convidá-la para dançar mais uma música mas com isso denunciaria às claras o desejo entre nós, até aí camuflado. olhei para ela que se afastava em direção ao fundo do salão até deixar de a ver. não dançou com mais ninguém.

17 de junho de 2017

os dias passaram sem sinais no horizonte. nesse tempo costumava levantar-me e recolher-me cedo, a minha vida pertencia-me sem contemplações. era raro aparecer alguém e apenas os gatos que iam e vinham me faziam por vezes companhia. por isso, desde o momento em que recebi o telefonema, a impaciência instalou-se. dei em percorrer as estantes da cozinha onde tinha armazenado víveres que já tinha esquecido, vasculhei armários até ao fundo defrontado-me com textos que não queria ter voltado a ler, fui de encontro ao espaço silencioso da casa, há muito enterrado entre os meus afazeres. «Na semana que vem vou aí Vítor», a frase soou como um espasmo confuso e constrangido. deixei de conseguir trabalhar, as horas das refeições sucediam-se sem que desse por elas, quando encontrei o meu cachimbo voltei a fumar. nem era que pensasse muito nela, mas a ansiedade devorava-me mesmo assim. não apareceu nessa semana, mas na seguinte. o tempo estava húmido, o céu cinzento, havia um vento gélido, muito fino. fui encontrá-la no patamar, desajeitada a sair do carro com embrulhos e um chapéu. sorri-lhe, ela não me sorriu de volta, não sei se por estar tão aflita com tantas coisas entre as mãos. desci, abracei-a colocando os braços à volta dela e das coisas, ela pousou a cabeça no meu peito sem largar nada. peguei nos embrulhos e contornámos a casa pelo piso de baixo, para que ela pudesse ver o mar. deixei-a aí e entrei para me livrar do que tinha nas mãos, voltando logo em seguida. ela estava na mesma posição e com o mesmo semblante, impassível. tinha a pele muito branca, fresca, um pouco descaída pelas rugas, e o cabelo curto castanho escuro, não sei se pintado, mas que lhe ficava bem, talvez ainda melhor do que quando o tinha comprido e usava trança. apesar de usar um casaco de lã, o vestido negro florido, de um tecido muito leve, parecia não ser suficientemente quente para o dia que se estava a por, mas ela não tremia. olhava em frente para a massa azul escura agitada e permanecia quieta e calada. avancei para ficar de pé ao lado dela. sem nunca olhar para mim, voltou a aninhar-se no meu peito e chorou como uma criança. levei-a para dentro e deixei-a sentada na sala. enquanto fazia o almoço, as memórias irrompiam às golfadas e eu sentia-me afogar. «O que tens escrito?», ouvi-a perguntar subitamente à porta da cozinha.
«Por acaso, estou a terminar um livro.»
«Sobre quê?»
«A altura em que nos separámos com outras histórias à mistura.»
«Falas dela?»
«Falo.»
«Se calhar devia vir para aqui contigo.»
«Não te adaptarias ao clima e ao desterro.»
«Nunca mais li nada teu, sabes.»
«Não sabia. Mas ainda escrevo para ti.»
«Isso são coisas que tu dizes. Foste tu que te foste embora, lembro-te.»
«Não me esqueci.»
«Não tens nenhuma fotografia em casa.»
«Para quê?»
«Não tens saudades dela?»
«Não.»
«E minhas?»
«Ana, na verdade, também não.»
«Sempre foste um egoísta, o desterro fica-te bem.»
não respondi. servi o almoço em cima de uma toalha de linho branco, a única que tinha, sabendo que ela iria gostar e, depois de duas garrafas de vinho, o nervosismo passou. receei que ela começasse a falar do passado, o que não aconteceu e, portanto, convidei-a a passar a noite. senti-me feliz pela primeira vez em muito tempo quando, em resposta, olhou para mim semicerrando os olhos. não voltei a vê-la desde então. o que parecia sujo, passou a estar revestido de uma neutralidade pacificadora, envelheci, as mulheres deixaram de me visitar. a expressão possível da claridade ou da verdade tornou-se tão obscura que já não escrevo para ninguém. sou um cego que escreve hieróglifos diante do oceano. não se pode refazer aquilo que a noite desfaz sem cessar.

15 de junho de 2017

reparámos no cão ferido ao mesmo tempo e, sem interromper a conversa, abrandámos o passo. nenhum de nós sabia o que fazer. se fossemos a conduzir parávamos o carro?, ocorreu-me. ela baixou-se para observar melhor o estado do animal que respirava com dificuldade. depois voltou a levantar-se, constatando que nada havia a fazer para o salvar. «ligamos a um veterinário?», «sim, ligamos a alguém», respondi com uma certa displicência, pois, sendo feriado, ambos sabíamos que não ia ser fácil encontrar alguém disposto a vir por termo ao sofrimento do animal. foi por isso com surpresa que, à primeira chamada, ouvimos um sim. no tempo que tivemos de esperar fomos deixando de ter assunto, os silêncios tornaram-se cada vez mais longos e mais incómodos. o cão continuava vivo em cima da poça de sangue e, ainda que desconhecêssemos os benefícios de ter um animal de companhia, a sua dor foi-se entranhando em nós. despedimo-nos com uma espécie de nojo em tocar um no outro, o que costumávamos fazer naturalmente e até disso tirando proveito. pelo caminho, já sozinho, pensava que não sabia porque não se faz o mesmo aos humanos. nunca voltámos a falar disso mas a lembrança do cão moribundo ficou sempre entre nós, como um vulto ou uma sombra funesta e grosseira. creio que foi isso que acabou por impedir que a nossa proximidade se aprofundasse.

14 de junho de 2017

ela serviu o chá em silêncio, as cortinas ondulavam com o vento que passava através das portas abertas para o quintal. um cão latia ao longe, as cigarras cantavam. enquanto dávamos os primeiros goles, desviámos o olhar para dentro, para nenhures. perguntei de onde vinha o chá, elogiei-o. ela respondeu que era marroquino, que a irmã lhe tinha oferecido há pouco tempo, depois de uma viagem. «é realmente muito bom», disse-lhe. sem saber como chegar ao assunto, perguntei imediatamente a seguir: «quanto tempo tens?». «cerca de um mês», respondeu-me, sem balbuciar nem mostrar surpresa. «tens dores?», «não». levantou-se. dirigiu-se ao quintal, como se tivesse esquecido o chá e eu próprio. levantei-me também e prendi-lhe o cabelo atrás da nuca. fizemos amor e, contra as minhas expetativas, não encontrei feridas no corpo dela inchado pelo calor, apenas alguns sinais do tempo que me excitaram ainda mais. na verdade, era ainda uma mulher jovem, os anos passaram mais entre nós do que sobre ela. fumámos os dois o mesmo cigarro e rimos. «apetece-me ficar quieto ao pé de ti, aqui em tua casa, muitas horas.» olhou para mim sem saber o que dizer, como se receasse que eu não compreendesse a lógica que se tinha imposto. desviei o olhar. bebemos e voltámos a fazer amor, agora com menos pudor ainda. tomámos banho juntos, rimos. o sexo prolongou-se noite dentro, divertidos, uma ternura antiga abria-se entre nós. no dia seguinte, depois de tomarmos o pequeno almoço, vesti-me, peguei na chave, disse-lhe «até já», beijei-a. ela acenou levemente e de repente disse «espera», desaparecendo dentro da casa. voltou trazendo na mão uma caixa de madeira. «o que é?», «depois vês em casa». mal entrei no carro abri-a. tinha cartas com mais de vinte anos que nunca tinha chegado a receber, fotografias, um diário. arranquei, a manhã de neblina oferecia-me espaço para pensar. uma pergunta afligia-me o espírito: porque é que não nos aproximámos antes?

13 de junho de 2017

festas, segredos, ameaças, um júbilo desconcertante, alimentam os meus sonhos. acordar deles é ao mesmo tempo um alívio e um esforço, e nunca sei o que é real, se a vigília se aquilo com que sonhei. seja como for, num caso como no outro, estou sempre à procura de algo que não encontro e, assim, não é tão significativa a diferença que os separa: é o que obscura a divisão que me intriga, como se nela houvesse um terceiro mundo em que ambos se juntam, que porventura fosse o mais real de todos. dizem que quando pintava, Salvador Dalí se deixava adormecer em frente à tela com uma colher na mão pousada no joelho. por baixo colocava um balde de água e, quando a colher caía na água, pintava o que tinha visto durante a impercetível transição entre o estado desperto e o sono. poderíamos pensar que coisas como esta talvez só tivessem lugar no âmbito do surrealismo, que não é feito de sentidos imediatos e privilegia as intrusões na psique, mas também cientistas e filósofos têm trazido revelações estruturantes dos seus sonhos. tudo se passa como se de facto a lucidez não pudesse passar-se deles. e contudo, o que sabemos deles? desde logo, a consciência — de nós próprios mas também do ambiente em que nos encontramos — parece ser impreterivelmente mais aguda, mais preenchida. se permanecem enigmáticos, mesmo quando pensamos ter aprendido a sua língua, talvez seja porque a imaginação não se encerra na descrição da vida ou da morte, que define o nosso tempo e o nosso espaço. a relação ambígua que mantemos com eles demonstra que somos meros rumores das nossas ficções.
durante anos deixei de o ver. não o procurei e creio que ele também não me procurou, a acreditar naquilo que deveras não sei. nesse tempo, fomos estranhos um para o outro mesmo quando pensámos um no outro. o pouco que dele recordei foram pequenos olhares sem importância, palavras ocasionais, um rosto antigo onde nada se lia. hoje vi-o. não o chamei. vi-o passar do outro lado da rua, caminhava rapidamente, sozinho, com um olhar assertivo e compenetrado, vestia umas calças de ganga e um casaco azuis. ocorreu-me imediatamente que pode bem ter sido a última vez que o vi e um prazer súbito mas incompreensível assomou ao meu espírito. não pensei em mais nada até que desaparecesse ao fundo da rua contornando uma esquina, mas agora que estou a salvo interrogo-me: o que fez o meu coração disparar? que fragilidade insuperável se instalou sem o envolver? pouco mais somos que fogos involuntários cuja existência só é revelada quando tudo ardeu.
Porque precisa de tempo, o amor destrói-se a si próprio.

Nicklas Luhmann

2 de junho de 2017

E penso
A face fraca do poema / a metade na página
Partida
Mas calo a face dura
Flor apagada no sonho
Eu penso
A dor visível do poema / a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície negra
Pânico iminente do nada.

Ana Cristina César