17 de junho de 2017

os dias passaram sem sinais no horizonte. nesse tempo costumava levantar-me e recolher-me cedo, a minha vida pertencia-me sem contemplações. era raro aparecer alguém e apenas os gatos que iam e vinham me faziam por vezes companhia. por isso, desde o momento em que recebi o telefonema, a impaciência instalou-se. dei em percorrer as estantes da cozinha onde tinha armazenado víveres que já tinha esquecido, vasculhei armários até ao fundo defrontado-me com textos que não queria ter voltado a ler, fui de encontro ao espaço silencioso da casa, há muito enterrado entre os meus afazeres. «Na semana que vem vou aí Vítor», a frase soou como um espasmo confuso e constrangido. deixei de conseguir trabalhar, as horas das refeições sucediam-se sem que desse por elas, quando encontrei o meu cachimbo voltei a fumar. nem era que pensasse muito nela, mas a ansiedade devorava-me mesmo assim. não apareceu nessa semana, mas na seguinte. o tempo estava húmido, o céu cinzento, havia um vento gélido, muito fino. fui encontrá-la no patamar, desajeitada a sair do carro com embrulhos e um chapéu. sorri-lhe, ela não me sorriu de volta, não sei se por estar tão aflita com tantas coisas entre as mãos. desci, abracei-a colocando os braços à volta dela e das coisas, ela pousou a cabeça no meu peito sem largar nada. peguei nos embrulhos e contornámos a casa pelo piso de baixo, para que ela pudesse ver o mar. deixei-a aí e entrei para me livrar do que tinha nas mãos, voltando logo em seguida. ela estava na mesma posição e com o mesmo semblante, impassível. tinha a pele muito branca, fresca, um pouco descaída pelas rugas, e o cabelo curto castanho escuro, não sei se pintado, mas que lhe ficava bem, talvez ainda melhor do que quando o tinha comprido e usava trança. apesar de usar um casaco de lã, o vestido negro florido, de um tecido muito leve, parecia não ser suficientemente quente para o dia que se estava a por, mas ela não tremia. olhava em frente para a massa azul escura agitada e permanecia quieta e calada. avancei para ficar de pé ao lado dela. sem nunca olhar para mim, voltou a aninhar-se no meu peito e chorou como uma criança. levei-a para dentro e deixei-a sentada na sala. enquanto fazia o almoço, as memórias irrompiam às golfadas e eu sentia-me afogar. «O que tens escrito?», ouvi-a perguntar subitamente à porta da cozinha.
«Por acaso, estou a terminar um livro.»
«Sobre quê?»
«A altura em que nos separámos com outras histórias à mistura.»
«Falas dela?»
«Falo.»
«Se calhar devia vir para aqui contigo.»
«Não te adaptarias ao clima e ao desterro.»
«Nunca mais li nada teu, sabes.»
«Não sabia. Mas ainda escrevo para ti.»
«Isso são coisas que tu dizes. Foste tu que te foste embora, lembro-te.»
«Não me esqueci.»
«Não tens nenhuma fotografia em casa.»
«Para quê?»
«Não tens saudades dela?»
«Não.»
«E minhas?»
«Ana, na verdade, também não.»
«Sempre foste um egoísta, o desterro fica-te bem.»
não respondi. servi o almoço em cima de uma toalha de linho branco, a única que tinha, sabendo que ela iria gostar e, depois de duas garrafas de vinho, o nervosismo passou. receei que ela começasse a falar do passado, o que não aconteceu e, portanto, convidei-a a passar a noite. senti-me feliz pela primeira vez em muito tempo quando, em resposta, olhou para mim semicerrando os olhos. não voltei a vê-la desde então. o que parecia sujo, passou a estar revestido de uma neutralidade pacificadora, envelheci, as mulheres deixaram de me visitar. a expressão possível da claridade ou da verdade tornou-se tão obscura que já não escrevo para ninguém. sou um cego que escreve hieróglifos diante do oceano. não se pode refazer aquilo que a noite desfaz sem cessar.