29 de setembro de 2014

Junto à janela, pensava no medo. Pensava que talvez não fôssemos senão o abandono das coisas que podíamos ter sido. A mãe disse Fecha essa porta e voltou a ficar escuro. Não havia sinal de vida. Não havia nenhum sinal de que a vida pudesse trazer consigo alguma redenção. Sentia-se vacilar perante a ideia de resistir com o tempo e tornar-se independente. Tudo isso lhe parecia uma farsa e portanto hesitava. Os sapatos novos e o prato de comida que lhe mostram no final do dia confundem-se, tudo tem o mesmo rosto cansado. Gostaria de fechar a porta a esse trânsito interminável e concentrar-se no funcionamento silencioso da fábrica, como um médico que se fascina pelo que está vivo na ferida. Queria saber mais sobre esse movimento, de uma insaciabilidade imaculada. Mais ninguém parecia dar-lhe importância e isso continua a ser para ele um mistério. Também ninguém podia imaginar quanta desintegração já havia nele nesse dia, em que brincava com um carrinho junto à janela e sonhava com uma embarcação triunfante, às largas no vácuo. O que mais gostava de fazer era de olhar para ela. Não pertencia a ninguém. A madeira era intangível. Tinha fendas através das quais brilhava intensamente. Vogava com uma alegria delirante num horizonte indiviso. Sobre as velas, de veludo carmesim, a loucura pairava, anónima. Era uma embarcação real e inadequada, como a fome, que desprezava tudo à exceção do vento. Assim que, apenas por segui-la com o olhar, já estava embarcado sem saber. Mais tarde falaram-lhe pela primeira vez sobre o fundo do oceano e no mesmo dia mergulhou em direção a ele. Mas só quando muitos anos depois o alcançou pensou por instantes na veleidade daquele impulso. Revoltado e cego, acocorado numa escuridão terna, constatou que era ainda um animal, uma besta que se serve e se enche mas não pode tocar em nada.

27 de setembro de 2014

A incúria perante o sofrimento de outrem converte o amado em ridículo, que é enfim a natureza de todo o carrasco.

26 de setembro de 2014

24 de setembro de 2014

Estava há uns dias em convalescença em casa, depois de umas semanas num coma inesperado que, entre outras complicações, resultou numa paragem cardíaca da qual tinha sido difícil regressar. Andava de muletas, tinha um fémur partido, e pouco mais podia fazer senão esperar. Um dia, os meus amigos ligaram-me e disseram-me para estar pronta para sair no dia seguinte cedo. Avisei-os que mal podia andar, onde é que vamos, o que é que vamos fazer, olhem que eu não posso, não disseram. Na verdade eu não tinha vontade de sair de casa. Onde estava melhor era a olhar para nada e que me deixassem estar, sossegada. No dia seguinte vesti qualquer coisa a custo e à pressa, porque eles sempre apareceram. Íamos a qualquer lado de carro. 
Lembro-me que a minha primeira surpresa foi sentir que o meu silêncio não era desconfortável dentro do carro. As conversas entre eles eram as mesmas. A intimidade entre nós prevalecia apesar de eu já não saber muito bem onde estava nem quem era. A certa altura vi o mar no horizonte. Estacionaram junto da areia. Saí do carro e eles começaram a caminhar em direção à água. Mas olharam para trás. As dores e a inexperiência com as muletas não me deixavam avançar. Estava encalhada, a olhar para os pés e a preparar-me para me sentar por ali. Eles voltaram para trás, tiraram-me as muletas e dois deles levaram-me ao colo até à beira da água. Ficámos ali até o sol se por.
É tudo.
Ao que mais tarde me disseram, devo ter-me mantido excepcionalmente silencioso, e por isso deduziram que, ou morreria muito depressa ou, se sobrevivesse aos primeiros tempos críticos, seria muito apto para o adestramento. Sobrevivi a esses tempos. Soluçar surdamente; caçar pulgas até à dor; lamber com lassidão uma noz de coco; golpear a parede do caixote com o crânio e deitar a língua de fora a quem se aproximasse - tais eram as primeiras ocupações da minha nova vida. E no meio disso tudo uma só evidência: não há saída. É claro, hoje só com palavras de homem posso transmitir o que então sentia como macaco, e por isso mesmo o desvirtuo, mas mesmo não podendo já atingir a antiga verdade simiesca, que ela corresponde pelo menos ao quadro geral que tracei, não há quaisquer dúvidas. 

Franz Kafka, Relatório a uma academia, in Os Contos.

23 de setembro de 2014

A casa da minha avó tinha um portão branco que tinha um truque para ficar fechado e atrás dele, em frente à direita, uma escadaria que levava à casa dela e cada degrau da escadaria tinha um vaso com uma flor diferente. Ela estava sempre de volta das flores. Cortava, regava, transplantava, plantava, procurava bichos. Sabia de cor quando tinham sido plantadas, quando floresceriam, se era pé que pegasse, se deveriam ser transplantadas para o quintal. Até ao fim da vida, as suas flores desviaram-lhe a atenção da saudação ou da despedida às netas. Foi apenas à medida que a velhice se instalou que ela se foi deixando ficar ao cimo da escadaria sem mexer nas flores, a olhar para nós, com os seus olhos muito azuis. Isso sempre me causou espanto. E admiração.

Estou a subir a escada da rua de São Bento que vai dar à Assembleia da República concentrada no que vou ter de fazer dali a cinco minutos e um som estranho à paisagem perturba-me, forçando-me a abandonar os meus pensamentos. Mal acabo de a subir, tenho à minha esquerda um homem sentado no muro, voltado para a Assembleia. Camisa de xadrez, boné ribatejano, perna cruzada. Tem um pequeno rádio na mão, como esses usados para ouvir o relato da bola. É isso que me confunde e me parece estranho no som. Não é um relato. Apuro o ouvido, procuro isolar tudo o que não seja o som que sai do rádio e percebo que é um rancho. Um rancho a cantar canções tradicionais. Em milésimos de segundo, olhamo-nos. Ele mostra-se imperturbável. Há no seu olhar uma ferocidade que me provoca uma certa inveja. É demasiado tranquila. Como se fôssemos de países diferentes e ele mo afirmasse. Noutra língua. Que eu gostaria de saber falar.

22 de setembro de 2014

Ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão da época faz para nós. No Universo em expansão, o espaço que nos separa das galáxias mais distantes está crescendo a tal velocidade que a luz de suas estrelas nunca poderia chegar até nós. Perceber, em meio à escuridão, esta luz que tenta nos atingir, mas não pode – isso é o que significa ser contemporâneo. O presente é a coisa mais difícil para vivermos. Porque uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um turbilhão, de acordo com a imagem muito fina de Benjamin, um abismo no presente. E somos atraídos para este abismo. É por isso que o presente é, por excelência, a única coisa que resta não vivida.

Giorgio Agamben


Tenho memórias vagas desse dia e contudo é uma das memórias mais pungentes que frequentemente me assaltam. Eu tinha uns sapatos novos. Eram azuis escuros, de pele rija, encaixavam na perfeição apertando no tornozelo. Foi um presente. Já os tinha estreado numa ocasião especial anterior a este dia, hoje era dia de escola. Sabia que não podia usá-los e mesmo assim pedi à minha mãe para os levar para o colégio. Insisti duas vezes apenas e ela cedeu. Sim, teria todo o cuidado. Retirei os sapatos velhos dos pés, calcei os novos e fui. Não sei porque regressei sozinha a casa nesse dia. Poderia eu ter apenas seis anos? Aproximava-se uma tempestade, as freiras estavam a reter as crianças que não tivessem os pais à porta para aguardarem abrigadas. Não sei porque assim quis, lembro-me do meu coração bater tanto que quase doía, consegui escapulir-me sozinha e seguir para casa através do Largo do Rossio. O deserto. A escuridão abateu-se, era tremenda. O vento e a água eram mais fortes do que poderia ter imaginado. O meu corpo ia sendo empurrado, dava pequenos saltos involuntários, nem sempre em frente. A água inundou tudo em segundos. A lama, poças de água que eram piscinas. O chapéu de chuva ser arrancado da minha mão e voar. A bata e o meu vestido de lã por baixo ficaram encharcados. Pensei nos meus livros, havia que protegê-los. Quando finalmente cheguei a casa não tinha um sapato.
A minha mãe estava furiosa. Porque não tinha esperado. Subitamente olha para os meus pés. Eu olhei também. Tinha umas meias brancas. Fiquei quieta, muda.
Onde está o sapato?
Não sabia responder.
Naturalmente a minha mãe não acreditou. Porém eu dizia a verdade: quando a minha mãe me perguntou pelo sapato foi como se começasse a regressar de muito longe. Fiquei a olhar para os meus pés, o esquerdo calçado, o direito descalço, atónita, emudecida. Constatei que não me lembrava de parte do caminho. Pensei que tinha passado muito tempo, milénios, Eras. Senti necessidade de olhar para o espelho. Mas os meus pés pareciam-me inalterados e para além da ausência do sapato a minha mãe não tinha notado nenhuma diferença. Fiquei muda. Sabia que ela nunca acreditaria em mim mas não tinha outra explicação a oferecer para além da incógnita. Eu própria queria saber o que tinha acontecido ao sapato. O meu belo sapato azul escuro novo em folha.
Sempre quis escrever sobre esta recordação. Mas não sei como. Algo me constrange a tentar desvendar o que aconteceu naquele tempo branco e me impede de o substituir através da ficção. A estranha angústia do enigma gravou-se em mim no momento em que a minha mãe me perguntou Onde está o sapato. Acreditei que tivesse acontecido algo de sobrenatural. E essas eram as coisas de que não se falava. Mas como, se eu própria não me lembrava quer do mensageiro quer da mensagem? Um recorte de tempo tinha-me sido retirado, era tudo. E portanto a espera instala-se: um dia vou perceber, um dia vou-me lembrar. Anos mais tarde, a propósito de um acidente de carro que tive, descobri que os acidentados perdem sempre um dos sapatos. Cheguei a investigar sobre isso, vi fotografias dos pés das vítimas a que de facto faltava sempre um sapato. Como temos sempre teorias para tudo, também havia uma teoria qualquer para explicar isso, que não me trouxe contentamento. Procurei refazer o caminho até à exaustão, nada. A última coisa de que me lembro, é de estar debaixo de um fabuloso céu negro a ser empurrada, o chapéu voar, proteger a pasta. Mas isto foi ainda no início do largo. Depois toquei à campainha.
o teu filho
há-de conhecer
a subtileza da noite
no seu corpo
desvendar-se-á a ciência da solidão
e a terra
apesar de bela
manterá silêncio
quando ele lhe fizer apelo
Quando fiz o Jacarandá com o Jonas Lopes, queria falar sobre a fragilidade. Estávamos os dois integrados num curso que a companhia Clara Andermatt promoveu em 2013 e para meu grande gáudio e surpresa, o Jonas declarou subitamente querer trabalhar comigo. Depois de lhe explicar o que tinha em mente fazer, o Jonas disse: «deixa cair tudo o que é acessório.» Foi nesse momento que comecei a trabalhar. 
Escrevi a alguns amigos pedindo que me enviassem «os seus silêncios». Explicava que a palavra silêncio não deveria ser entendida de maneira literal pois referia-se aqui aos momentos em que nós próprios ficamos suspensos, em silêncio, perante o tempo e o espaço particulares a essa suspensão. Podia ser um momento em que decidissem agora vou-me sentar aqui 5 minutos a não fazer nada ou quando deparassem com alguma coisa que os remetesse a esse estado, enfim, seriam possíveis vários exemplos, como esse de sair à rua e descobrir que os jacarandás floriram durante a noite.
Mostrei cinco silêncios: da Vânia Rovisco, do Pietro Romani, da Andrea Brandão, do Gonçalo Alegria e da Vanda Medeiros. Conhecia todas as histórias por detrás destes silêncios, ou imaginei-as mas referi ao público apenas o lugar e a hora a que tinham sido gravados. A Vânia estava a passear na praça Tahir, em Istambul, poucos dias após a ocupação ter começado. O Pietro gravou o seu silêncio no jardim de Torres Novas, a poucos metros do lugar onde nasci. No silêncio da Andrea, o som da respiração e do coração dela ecoaram pela sala. O Gonçalo gravou o silêncio noturno da última casa onde viveu com a sua gata, dias antes de sair. A Vanda enviou-me o som do coração do filho dela, a bater no meio das suas águas, e nessa altura prestes a nascer. Entre as gravações contei uma história, explicando porque é que aos 10 anos comecei a interessar-me pela questão do silêncio. No processo, tudo isto era muito claro.
Um dia, estávamos ainda a ensaiar, a propósito de uma dificuldade que eu tinha de resolver, o Jonas interrompeu-me e perguntou-me: «o que é que tu queres mesmo fazer.» Tive um bocadinho de medo daquilo, mas respondi logo: «quero mostrar a minha mão a tremer. Porque nesse dia vou estar a tremer.» O Jonas respondeu «feito». No desenho de luz anotámos APAGAR TODAS AS LUZES e pacientemente o Jonas iluminou a minha mão com uma pequena lanterna. No entanto, quando mostrámos isto a primeira vez, recebi muitas hesitações em relação a este momento. Uma mão a tremer, isso não se mostra, disfarça-se. Havia que criar um movimento qualquer, uma diversão, beleza. Tentei aprender a fazer isso (como gostaria de saber dançar mesmo que fosse só com as mãos...). Mas qualquer coisa em mim se obstinava em limpar tudo em torno daquela mão e deixá-la tremer. Fosse como fosse, para o público bastariam os silêncios para a peça ser insuportável e o que eu queria fazer era demasiado depurado para uma primeira experiência. E o movimento para a mão foi estudado e ensaiado. Mas, embora tremesse muito menos do que tinha esperado (e neste caso, desejado), no dia da estreia deixei a mão praticamente imóvel sob a luz.
Para mim continua a ser o momento alto da peça. Não estou a falar de silêncio, estou a mostrar, a todos, o meu silêncio.

20 de setembro de 2014

Truth is stranger than fiction, but it is because fiction is obliged to stick to possibilities. Truth isn't.

Mark Twain
Sur quoi pleurez vous?
Je vous aime.
Jusqu'à ne plus voir.
Ne plus entendre.
Mourir.

18 de setembro de 2014

A minha mãe diz que o dia em que eu nasci era feio de assustar, com uma tempestade violenta a fazer abanar o céu, a crosta terrestre e o que há pelo meio. Depois diz que eu era tão bonita que foi como ver nascer o sol, que todos na maternidade quiseram ver.
Quando contava isto olhávamos sempre uma para a outra a sorrir, como quem reconhece que alguma coisa neste mundo deve estar certo: eu tinha encarnado alguma coisa desse contraste.

16 de setembro de 2014

Lembro-me duma passagem em que o protagonista pensa ter matado o seu perseguidor. E logo pensa: se o matei, não resolvi coisa alguma porque o mal é mais profundo.

(...).

Também é por isso que os meus leitores se afeiçoam a mim; temos em comum o desprezo pelas ideias fixas. Mas reconheço que uma tal personalidade, que envolve na tolerância tanto os erros menores como os pequenos vícios, acaba por desculpar até os crimes.


Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da angústia.
Ando pela cidade a resolver pendentes com lassidão, como se estivesse a fazer recados à mãe e houvesse no dever certa chave para a liberdade. Ameaça chover mas não chove, ameaça fazer sol mas o sol só timidamente aparece. O meu leque persegue-me, cada vez mais perto do corpo. Na última casa onde entro, portando já a centelha de melancolia dos fins (que não é melancolia, uma vez li uma palavra que definia isso muito melhor e que infelizmente não recordo agora), encosto-me ao balcão de madeira enquanto espero. A empregada regressa e ao ver o leque negro sair do bolso diz «Isto está impossível» ao que vou para responder que «É verdade, mesmo nas casas com...» mas ela interrompe-me completando de imediato a frase de forma tão eloquente que me deixa sem reação por uns segundos. «Com ar condicionado, sim» e continua. Fala como se adivinhasse os meus pensamentos mas sem a hesitação que me caracteriza. Não diz apenas que está um calor húmido, depois de o descrever faz-lhe corresponder os efeitos que lhe provoca no corpo e no espírito, diz entre as frases esta frase: «Parece que o tempo parou.» Estou maravilhada. Tenho os olhos abertos para ela, sorrio. Puxo mais pelo assunto e ela faz-me a vontade, fala sobre as condições meteorológicas como se falasse de um tratado de paixões da alma ou de Dante. Qualquer coisa assim, qualquer coisa que preenche os espaços e soa virtuosamente. Ouvir a sua voz, foi a coisa mais importante que me aconteceu hoje.

No regresso a casa recordo-me subitamente de Strangers talk only about the weather. Desconheço maior talento que o de fazer repercutir nos outros diálogos de onde nos ausentámos.
o meu destino é desiludir
fado absoluto
apurado
de imperativo secreto
que se estende em latitude e longitude
e se aplica ao mais comum
porém com confusão e risco
como um plural indiviso.
por definição admiráveis
a simplicidade, a clareza e a graça
não podem desiludir
e o seu contrário é forma de estilo
para que a delicadeza desiluda
é preciso criá-la com malogro
que tolha a prévia reputação
só temos a certeza de ter desiludido quando somos deixados a sós
quando eu escrever um livro hei-de desiludir primeiro aqueles que amo
e logo depois aqueles que admiro
e especialmente aqueles que invejo
hei-de ser tão pobre que nada se aproveite
vou por cá fora um nado-morto
e se nascer vivo mato-o mal venha à luz
darei a experimentar o sabor da vergonha inesperada
subjugada à minha melancolia pusilânime.
é falível estratégia saber que não se é ineludível
eu que não sou mestre de nada
serei desiludida
por ter amado
e em resposta à exigência do meu
maciço
intento
a desilusão há-de abater-se de forma implacável
lenta.
imperfeita, tosca, ridícula
condeno-me à invisibilidade selvagem
a minha língua
provocará repulsa
e medo por portar sezão
morrerei frágil e indefesa como uma criança
inofensiva
cabalmente ignorada
nem o meu nome será impuro
porque não portará prodígio
pois a sua matéria é a depravação
que tem inveterada indecência
e fede.

15 de setembro de 2014

na insónia tudo regressa à infância
que infinita e rigorosa
a nada regressa
Até que me reste apenas a memória de uma dentadura, nego-me a pagar pela minha liberdade.

14 de setembro de 2014

La fille aux cheveux de lin.

13 de setembro de 2014

afinal
as flores eram rubras
tantas
que não falaste 
até ao dia seguinte
quando acordando de um sonho
me explicavas uma receita
com volúpia
e pavor
como se fosse inconfessável
já não estares a sonhar

Da mesma maneira que uma pessoa não nasce com o corpo que escolheu, também não escreve sobre o que quer. Bem posso passar a vida à procura de uma ideia para uma novela, a mão há-de sempre fugir-me para outro lado, com um desejo próprio, que me supera. Foge para ali disposta a desintegrar-se e daí parece não querer sair. Toda a minha aprendizagem serve no fundo para lhe dar ouvidos, me tornar submissa. Sempre fui demasiado rebelde. A insatisfação devora-me e se tivesse de confessar algum pecado teria certamente de ser o da impaciência.
Porque nos lembramos do que nos lembramos? Porque nos escolhem esses movimentos, cujas imagens se apoderam de qualquer coisa em nós, preenchendo-o na perfeição? Queria lembrar tantas outras coisas, irresgatáveis, e contudo lembro-me apenas do dia em que, saindo do anexo no quintal dos meus bisavós, me deixei ficar sozinha para trás e olhei para a escuridão no interior a partir da soleira da porta. Sabia que não voltaria ali muitas vezes, suponho que isto acontece depois da morte da minha bisavó. Não percebia porquê, os meus bisavós estavam a secar, como as flores. Eu olhava para este anexo como se fosse a minha casa, pensando que um dia esta seria a minha casa. Ao fundo, no canto do lado direito, sobre uma pequena mesa feita da própria parede, estava sempre um púcaro onde o meu bisavô fazia a cevada. As brasas estavam apagadas naquele dia mas a cal das duas paredes que faziam o canto era negra há muito. Isto era belo. Todo o anexo guardava o cheiro do fogo apagado. A única luz que havia era natural, entrava pela porta e através de uma minúscula janela nem um metro depois da porta na parede do lado esquerdo, cujos vidros estavam muito sujos e ao lado da qual estava um pequeno móvel antigo de casa de banho, branco, onde eu e a minha irmã guardávamos brinquedos. Tudo estava muito sujo dentro do anexo, tudo tinha muito pó, guardavam-se aqui coisas onde não se mexia há muito mais tempo do que o tempo que eu tinha, era o que eu pensava, e protegiam-se outras da chuva no inverno, como a cadeira de lona e a bicicleta do bisavô, homem por demais silencioso, que me intrigava, que gostava de fumar cigarros de milho a olhar para o nada, usava uma bengala que diziam ter sido esculpida por ele e nunca despia a samarra. Portanto para além do cheiro da cinza havia também o cheiro da humidade do pó e uma escuridão admirável que me deixava numa espécie de êxtase, como acontece com as promessas. Por vezes no inverno sentávamo-nos ali os quatro, os meus bisavós e a minha irmã, no canto. O meu bisavô ia acrescentando galhos para que o fogo, que nos aquecia e iluminava, não se apagasse. Houve momentos em que gostaria de ter expulso o meu bisavô deste canto, para que fosse eu a colocar os galhos, a ajeitar o púcaro e a servir a cevada nas canecas. Neste dia deixei-me ficar para trás porque tinha percebido que as promessas são coisas que não se cumprem e que aquela nunca seria a minha casa: iria deixar de ver o seu interior e deixaria de brincar no quintal dos bisavós, onde a minha irmã escavava pequenos buracos, misturava a terra com água e pedras, e depois me oferecia dizendo que era um bolo. Um quintal cheio de vasos de flores, muros antigos, relva, uma oliveira, uma tangerineira, roseiras de Santa Teresa, um poço, uma hera.

Escrevi isto há uma semana e zangada não terminei. Ontem escrevi à minha irmã:

Preciso de memórias, para escrever. Tu tens mais. De que é que te lembras assim de repente?

Perguntou-me de que altura e pedi-lhe para me dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça. Respondeu:

Lembro-me de brincarmos às descobertas da casa. Quando a mamã saía... Víamos as gavetas todas. Lembro-me da avó me ter batido porque te cortei com um canivete, no quintal da avó velhota. Dos buracos com terra e água. Da barraca do avô velhote e ele sempre a fumar e a ver o fogo. Do chá dentro de uma caneca verde do bordalo e pão com marmelada, chamuscada. De ter comido uma malagueta do quintal. De «amarfanhar» as rosas de Santa Teresinha na mão e levar dentro do bolso da bata para o colégio. De ter medo das galinhas da avó. E dela a matar os coelhos... À paulada. Dela dizer Vamos à deita que o sono está à espreita. Queijo não o como nem o vejo. Dela cantar o tenho dois amores do Marco Paulo enquanto fazia o almoço. E de assobiar. Estava sempre a cantar. De fazermos tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. Eu nunca conseguia fazer nada, mas adorava. Na casa dos avós velhotes andávamos mais no quintal. Eram só coisas velhas dentro do anexo. Havia um móvel branco preso na parede que tinha coisas nossas.

Perguntei-lhe:

Como é que se chamava a bisavó?

Não sei.

Também não.

Nem ele.

Nem eu.

Mas a titi sabe.

Pois. Não faz mal. Só quero trabalhar com o que recordamos.

12 de setembro de 2014


Heinrich Kühn, Violetas, autocromo de 1908 encontrado no Ponteiros Parados.





11 de setembro de 2014

Hoje no jardim do Príncipe Real, entre as barracas montadas com roupa à venda, debaixo da samaúma ao lado dos quiosques, estavam dois holofotes mecânicos a apontar para o céu. A música, eletrónica, também soava como numa discoteca, mas as pessoas pareciam nem a ouvir, sentadas nas esplanadas, descontraídas, a conversar. É a segunda vez que encontro um jardim assim recentemente. Na Estrela, há algumas semanas, a música estava tão alta que para meu pasmo o som da vibração do metal que contorna o jardim se misturava ao ritmo alucinante. Nesse dia, não consegui sequer perceber que tipo de música era. Creio que soavam várias ao mesmo tempo ou pelo menos assim pareceu.
Tenho medo. Sinto-me muito velha mas talvez esteja apenas muito louca. Gosto do rumor da cidade, de distinguir os seus ruídos, são uma grande companhia. Mas o desaparecimento do silêncio entre eles é um terror tremendo que não esperei ter de enfrentar. Quem são estas pessoas que se consomem, quem sou eu cada vez mais confinada à minha casa? Hoje no Príncipe Real fui abordada por várias raparigas enfeitadas e apesar da ameaça de chuva meio despidas, que com sorrisos histriónicos ofereciam papéis. Cheirava a perfumes como se estivessem a fabricar uma bomba, havia aparelhagens com colunas gigantescas no meio do jardim, um mar de gente a comprar coisas e a fazer fila para restaurantes, quando atravessava a passadeira fui insultada por um automobilista que achou que eu andava devagar e eu que tenho sempre resposta na ponta da língua, quanto mais não seja para devolver a injúria, demorei a perceber que se dirigia a mim. Depois aconteceu entrar no Jardim Botânico, àquela hora já fechado e fiquei aos portões a olhar para o interior arrumado, paralisada por uma comoção ingrata como se nem casa tivesse para regressar. Lembrei-me então que não tenho filhos que me ajudem a compreender o mundo novo. Ainda bem. Se tivesse haveria de querer mostrar-lhes o que desapareceu.
Chove mas a roupa sobre o corpo é ligeira, a janela está aberta em par para um céu branco. O outono chega com o seu esplendor taciturno e não há em mim outra vontade para além da de lhe obedecer, como se obedece a um segredo. Quem poderia ter antes sabido que a felicidade é o contrário do desespero e que toda a vida foi desespero? Sigo pela escuridão desprezando o mundo e a minha alegria nasce de me abandonar a mim própria. Sou uma resposta a um chamamento mais ténue que estas nuvens, que estão no céu para dar a impressão de nada lá estar. Sou um ouvido que escuta um som e se deixa conduzir por ele e todavia tudo é silêncio e quietude. Não tenho deuses. Não estou no espaço nem no tempo, desconheço a dúvida e a interjeição, nenhum sonhar me atormenta. Apenas entendo o que é ignoto e nisto reconheço grande fragilidade, pois enquanto aprendo a respirar delicadamente descubro que a delicadeza tem poder. Para diante nada, tudo branco, nenhum contorno. Não há escolta neste som, em tudo improvável. Prossigo independente, certamente direção a nenhures, mas quem esculpiu a minha embarcação atribuiu-lhe a vontade indivisível de ceder a apenas um vento.

10 de setembro de 2014

Quando me perguntam se gostei de viver em Paris, costumo dar a resposta mais complicada: que não. Naturalmente que gostei de coisas em Paris. Da luz cinzenta, dos boulevards, de Clunny, dos jardins onde se deixa de ouvir o trânsito, dos passeios à beira do Sena, das livrarias, do preço dos livros, dos cinemas que passam sempre o mesmo filme, dos museus e sobretudo de uma sensação extrema de possibilidade por parte da minha sombra que, frequentemente deixada de parte, parecia agora regozijar-se por se sentir integrada. O melhor de Paris não era que tudo era possível, era que tudo estava a acontecer. A diferença não podia ser mais abissal. Ainda assim, aquilo de que abdiquei não chegava a ter o peso de uma pena perante aquilo que recuperei ao regressar a Portugal.
Costumo contar uma história depois de responder à curiosidade, para que as pessoas possam ter algum indicador do que é estar efetivamente a viver em França. Conto sempre a mesma história e começo sempre por oferecer primeiro um dado, ao mencionar que o que vou relatar de seguida me aconteceu precisamente dez vezes ao longo dos quatro anos que lá vivi. Não tenho dúvidas de que uma história, por real que seja, e mesmo quando é contada na primeira pessoa, não passa de uma ficção para os outros, portanto não me surpreende que a tendência dos meus ouvintes seja para desdramatizar o conteúdo. «De certeza que não é assim tão mau», respondem frequentemente, evitando já olhar-me nos olhos, pois concerteza estarei a inventar ou a sobrevalorizar o que não merece destaque. Na altura em que isto me aconteceu, fiz questão de me lembrar para contar. Como a memória é traiçoeira e nela não me fio, percebi que podia escolher esta situação a partir do momento em que ela se reproduziu uma segunda vez, num local e tempo completamente distintos da primeira, esta que me fez entrar num choque profundo, cuja vergonha, de uma profunda indecência, nunca vou esquecer.
Portanto os franceses gostam de fazer jantares. Entre o frio e o individualismo não sei qual é a motivação mais forte, mas o certo é que é hábito generalizado organizarem-se grandes jantares em casa onde o ambiente a maior das vezes comedido, não chega para dissimular a avidez por extravagância. Para mim, que oiço mal, tanto melhor. Não tinha de passar a noite toda a fingir que tinha percebido o que me tentavam dizer no meio de um ruído absurdo. Chegada há pouco, eu era sempre uma estranha para a maioria dos convidados, despertando atenções ferozes e gerando um murmúrio animado. Até que finalmente alguém se aproximava e começava a falar.

Como te chamas?
Marta.
O que fazes?
Estudo Filosofia.
Ah bom? Onde estás a estudar?
Na Sorbonne.
(Neste momento os olhos do interrogador brilhavam mais intensamente, que ganhava impulso para mais perguntas).
E tens bolsa? Ou estás a trabalhar?
Tenho uma pequena bolsa mas também trabalho, numa Mediateca.
(Descontraído). És de cá?
(A pergunta era motivada pela minha falta de sotaque e pretendia descobrir se tinha nascido em Paris ou noutra região francesa).
Não. Sou portuguesa.
Ah, és de origem portuguesa. Mas nasceste em Paris?
Não. Sou portuguesa de origem africana. O meu pai é português, a minha mãe é angolana e eu nasci em Portugal. Estou cá há pouco tempo.

E com esta frase, os meus interlocutores voltavam costas. Quando não havia nojo no olhar deles, havia uma terrível incapacidade de simplesmente continuar a conversa: não podiam pensar. Voltavam costas balbuciando com os seus botões que era impossível. Impossível que uma pessoa loira de olhos azuis tivesse origens africanas. Impossível que uma portuguesa falasse a sua língua sem sotaque. E sobretudo, impossível que esta pessoa estivesse a estudar na Sorbonne e a trabalhar.
Situações como esta eram vividas quotidianamente por quem não podia disfarçar a sua condição de emigrado, ao ponto de uma senhora de bengala empurrar de um banco na paragem do autocarro uma mulher com burka para o chão, uma das últimas alucinações que vi. Ao ponto também dos mais conceituados intelectuais, entre outros destacados membros da alta sociedade parisiense, fazerem correr tinta nos jornais ao longo de praticamente um ano, porque havia miúdos a usar peças da marca Lacoste. Miúdos, leia-se, filhos de emigrantes. La racaille. Uma tão prestigiada marca não podia ser democratizada, tinha de permanecer ao uso das elites, pelo que se estudava o aumento de preços ou mesmo a retirada do mercado de certas peças. A forma como estes miúdos falavam (como se abrasileirassem o francês, introduzindo expressões novas, modificando a pronúncia de algumas palavras e resgatando o calão), bastava para o justificar: era a própria língua francesa que estava perdida se não se tomassem as devidas precauções. No ano em que regressei, protegendo-me de dar mais explicações com a minha tendência para a provocação, quando me perguntavam se tinha gostado de lá estar a viver, respondia simplesmente «Num nada as ruas de Paris vão estar a arder.», o que num nada aconteceu, nas banlieues. Para mim era evidente que os franceses possuem uma espécie de ressentimento com origem na segunda guerra. Há neles um desejo de vingarem a história através da sua confirmação, pois um francês não pode deixar de ter razão: e os franceses foram delatores. A arrogância de um francês é a última a morrer, era a moral da história de uma anedota corsa que costumava ouvir. O silêncio e a paz da ocupação Nazi tornaram-se infecciosos com o final da guerra. E só há um destino para uma infeção: espalhar-se.
Parece haver contradições nesta história, quase posso ouvir-vos pensar. Afinal eu estava a trabalhar, a estudar e sobre isso não menciono quaisquer problemas, pelo contrário. As leis em vigor para a comunidade europeia, que estabelecem a livre circulação de bens e de pessoas, estavam implementadas há muito. Estudar num país da comunidade europeia é em princípio tão simples quanto pedir a transferência de um processo de uma faculdade para outra e passar com uma nota suficiente o exame da língua na faculdade escolhida. Conseguir trabalhar pode ser mais difícil, há que perseverar nas buscas, o que leva tempo, e esperar por um golpe de sorte, mas isso é assim por definição. Foi o que fiz e a certa altura fiz até outra coisa: casei com um francês. Santifiquei-me aos olhos das instituições. Com uma carta de séjour nas mãos, ninguém tinha poder para me vedar o acesso a nada. E tive prazer na minha mesquinhez, ao ser capaz de deixar os franceses enxovalhados por frequentemente conhecer melhor do que eles a língua que tanto dizem amar.
Em conversa recente com um amigo, fiquei a saber que uma amiga em comum considera regressar a Portugal, após cerca de 16 anos de vida em Paris. Confessava-lhe ela que o bloqueio nunca tinha sido quebrado e que assim que abre a boca, denunciando o seu sotaque, as pessoas deixam de a ouvir. Parece que em 16 anos não mudou grande coisa. Mas que belos são os boulevards.

9 de setembro de 2014

Quando a primavera começava, a minha irmã e eu demorávamos mais tempo a chegar a casa da minha avó para almoçar. Pelo caminho estávamos atentas às flores que podíamos comer e que pendiam dos arbustos nos quintais ou nasciam em bermas de estrada. Comê-las era o resultado de uma aprendizagem que agora podíamos continuar a desenvolver. Ou seja, por vezes comíamos o que não devíamos. As primeiras a aparecer eram amarelas e cresciam por toda a parte mal despontavam os primeiros raios de sol. Arrancávamo-las sem raiz e mascávamos o caule ácido deixando a flor. As preferidas eram cor de laranja mas tínhamos de esperar o início do verão para as começar a ver. Em forma de trompete, nasciam em cachos numa trepadeira que caía dos muros. Dentro guardavam uma espécie de mel, tão doce que tínhamos de afastar as formigas antes de o sorver. Cuidando de não estragar as pétalas, que continham o licor, soprávamos para as expulsar e sorríamos uma para a outra num silêncio cúmplice, antes de dar destino às que estavam coladas. Bebíamos como de um copo e porque o prazer era curto arrancávamos outra de seguida.
Sei que alguma criança, porventura numa aldeia portuguesa, continua a saber comer flores. Mas os adultos que as ensinam são quem admiro profundamente. São eles que enfrentam a comunhão, palavra imunda, como a natureza.
Kafka não tem imaginação; é um cérebro privilegiado capaz de esgotar um assunto desde que ele lhe seja sugerido. Problemas como a educação, a liberdade, a servidão e o amor, são-lhe oferecidos por Walser numa obra curta e original.

Agustina Bessa-Luís, Um Presépio Aberto in Contemplação carinhosa da angústia.

8 de setembro de 2014

A sua admiração já se tinha denunciado em encontros anteriores mas até dele eu a mantinha em segredo, para que nada, como poderiam a sua vergonha ou medo, viesse corromper o que é puro. Tinha certo contentamento nela, que me fez compreender que a paixão ignora convenções e decretos. Isso não me assustava ou impacientava, pois o tempo ainda era tido por um mar seguro, onde as tempestades se atravessam e nunca fazem naufragar. Reconheci no entanto imediatamente nesse contentamento uma forma de correspondência espontânea a uma admiração que eu não tinha escolhido. E isso era novo. A consciência dos olhares dos homens adultos sobre mim era terrível, um conjunto de ameaças de que tinha de me desviar em permanência. O dele não. Naturalmente que por ser uma criança o seu desejo não transportava qualquer ameaça. Ele iria crescer e esquecer, pensava eu, e não havia qualquer razão para reprimir o que era tão belo.
Quando naquele dia o vi chegar à festa, estranhei que viesse tão bem vestido, com um fato azul e uma pequena gravata impossível de compor, o cabelo muito penteado com gel. Foi mais tarde que percebi a escolha, depois de já termos estado a falar e a repicar da mesa juntos. Eu estava sentada e do outro lado da pista de dança improvisada, o pai e o irmão falavam-lhe ao ouvido enquanto ele olhava para mim a sorrir. Depois a sua agilidade em desviar-se das pessoas que dançavam para chegar perto de mim, a mão estendida, o rosto vermelho, e um convite para dançar. Dancei a noite toda com ele e não queria ter dançado com mais ninguém. Não o conduzi, nem quando demos a mão para ir comer. Havia no meu sorriso uma felicidade submissa e ele sabia-o. Imponderavelmente, o meu contentamento estava a nu e a sua correspondência fez de mim a mulher mais feliz naquela sala.

6 de setembro de 2014

Os momentos que estabelecem connosco uma modéstia infinita são o que vida tem de inegociável. É sobre eles que quero escrever, embora saiba que há nisto certa veleidade, pois são da natureza do irrecuperável, como as coisas mutiladas.

4 de setembro de 2014

A cultura mediterrânica não é uma cultura trágica. A sabedoria não substitui a ciência como fim supremo e, quando nós encaramos a obra de Dante como expressão do trágico, é porque a grande cultura tem sempre qualquer coisa em comum: a grande dor, que faz o homem descer às últimas profundezas e despojar-se da sua confiança. O acto criador é um acto a que falta confiança. 

Agustina Bessa-Luís, Contemplação carinhosa da angústia.

2 de setembro de 2014

sem começo
ou resultado
a fábrica pondera

1 de setembro de 2014

A sensação dominante em quem tem asco dos animais é a do medo de ser reconhecido por eles quando se lhes toca. Aquilo que, no mais fundo de nós, nos horroriza, é a consciência obscura de que em nós alguma coisa vive, tão pouco estranha ao animal que nos causa asco que ele a poderia reconhecer. Todo o nojo é originalmente nojo do contacto.

Walter Benjamin, Imagens de Pensamento


Quando era criança, tinha tanto medo de cães que bastavam uns segundos diante de um para que o animal reagisse, invariavelmente, atacando. Se alguns ataques seguidos me fizeram começar a receá-los e mesmo a conseguir antecipar a investida no olhar do animal, outros não deixaram de me surpreender, como no dia em que descia uma ladeira de bicicleta e um pequeno cão preto sentado no passeio saltou do seu sossego para vir enfiar os dentes na minha perna, que já não largou apesar de pedalar energicamente, fazendo-me desistir do meu equilíbrio para me defender. Guardo portanto pequenas marcas de várias mordidas, nenhuma suficientemente grave que tivesse convencido o meu pai a desistir de me transformar numa amante do melhor amigo do homem.
O meu pai sempre teve uma paixão por animais, especialmente por cães. Conheci-lhe vários em diferentes fases da vida, uns rafeiros outros de raça, uns comprados outros oferecidos por amigos, uns pequenos outros grandes. Era frequentador de concursos e exposições de canicultura, onde eu também era chamada a ir. Entrava no parque de diversões mais aterrador do mundo forçada a controlar o meu pavor, para que não se tornasse em pavor do meu próprio pai: de o desiludir e de, em consequência, ver a sua fúria abater-se. A pressão era tanta que tenho agora a sensação de mal respirar.
Em minha casa sempre houve cães. Na maioria das vezes ficavam presos na cozinha ou no quintal, mesmo quando eram considerados meigos. Mas essas trelas nunca eram suficientemente curtas e muitos desses dóceis animais tiveram de sair de casa por me atacarem constantemente. Houve alturas em que o meu medo ameaçava atingir proporções incontroláveis e eu não dormia pensando que no dia seguinte teria de passar novamente a meros centímetros do bicho para entrar na cozinha e tomar o pequeno almoço. Os dias eram preenchidos por provas constantes, como esta. Talvez conseguisse passar, talvez não. Talvez conseguisse fazer uma festa se me obrigassem, talvez não. Talvez o animal me ignorasse, talvez me rosnasse. Numa coisa, no entanto, nunca acreditei: que iria deixar de ter medo. Apesar de todas as tentativas do meu pai e dos anos que passavam, tudo o que conseguia era tentar fingir o mais possível e o melhor possível. Mas esse medo, sentia-o definitivo. E de que tinha eu medo?
A pergunta angustiou-me anos a fio. De que tinha eu, afinal, medo? Ter medo de um grande Retriever de Labrador negro pode até, se puderem usar da vossa benevolência, ser compreensível. Mas que medo se pode ter de um cão de pequeno porte cujos latidos não chegam a acordar as moscas? Mesmo quando ganhava coragem para falar nisso, as minhas explicações, francas e cuidadosas, não eram compreensíveis, ou pelo menos não surtiam consequências. Os cães foram aparecendo e ficando, até que finalmente um deles me mordeu tantas vezes que a minha mãe ganhou coragem para formular a frase inteira diante do meu pai: «Não podemos ter o animal aqui em casa.» E eu tinha pena do animal ter de sair, um cão rafeiro de porte médio a quem chamámos Bolinhas, cujo dono anterior tinha maltratado. O meu pai explicava-me que era para se defenderem que atacavam. Explicava-me que era por pressentirem o meu medo que reagiam e que se eu não demonstrasse medo, nada acontecia. Mas eu tinha medo na mesma e não percebia. O meu medo não tinha tido origem numa mordida de cão. Era anterior. Não acontecer nada não fazia sentido, pois o meu medo original não era medo do ataque. Na minha inocência, eu pensava: «Se eles o pressentem, bem posso pretender demonstrar que não o tenho.» O que o meu pai me queria fazer perceber, concluía então, era que podia transformar o meu medo, podia erradicá-lo. Erradicar o meu medo definitivo. Creio que poderei ter considerado ser essa a mais incontestável prova de amor, que é a mais excelente de todas as coisas. E havia que prová-lo. Só podia ser essa a razão para que, depois do Bolinhas, tivéssemos continuado a ter cães e não um gato, como eu tanto pedia ao meu pai. «Um dia trago um gato!», dizia a rir-se e fazendo-me rir, aumentando a minha expetativa, mas voltava sempre com um cão.
À entrada do inferno está um cão com três cabeças que sofre de enxaquecas contínuas. Não sei onde a li mas nunca mais esqueci a frase. Quando pensava no meu medo começava por pensar nisto, existe um cão à porta do inferno cujo olhar múltiplo está cego pela dor. Tinha esperança de poder desvendar certo segredo a partir dela, pois me parecia ser idêntico àquilo que o meu pai me tentava explicar. Tinha também um certo fascínio por este animal mitológico, cuja dor, que eu bem sabia ser terrível, era exponencial e ininterrupta. Quem me negaria que todos os cães pudessem sofrer do mesmo mal? E que o inferno não seria a origem ou o destino de todos eles? Sem dúvida, pelo visto, era o lugar.
Continuei a tentar modificar o medo muito depois da separação dos meus pais. Assisti a inúmeros programas televisivos sobre cães, li livros sobre treino de cães, ouvi atentamente os donos falarem sobre a sua personalidade. Mas os truques não funcionavam comigo e os cães continuavam a pressentir o medo, desatando a latir ou atacando. Já crescida, cheguei a decidir que simplesmente não voltaria a ser mordida nem nenhum cão me faria atravessar a estrada para fugir dele: se algum me atacasse, sofreria de volta o meu ataque impiedoso. Afinal, agora eu era maior que eles, pensamento que funcionou até me encontrar num pequeno apartamento ao lado de um Grand Noir, que felizmente era o cão mais pachorrento do mundo e se estava nas tintas para se eu tinha medo dele ou não: com medo ou sem medo, ninguém naquela casa tinha dúvidas sobre quem tinha mais poder e pese muito embora essa realidade, quando o vi a primeira vez ele dormia ao lado do berço de um recém-nascido. Não fiz qualquer confissão sobre o meu horror pois percebi, não sem alguma incredulidade, que ele ainda me dominava. O último cão que tivemos, uma cadela Teckel de pelo curto chamada Boneca, conseguiu contudo estabelecer comigo uma amizade admirável. Nunca me atacou, pelo contrário, defendia-me dos outros cães. Mas rosnou-nos uma vez, quando teve filhos, e respeitando o aviso a minha mãe disse-nos que não podíamos entrar onde ela estava. Quando morreu, atropelada por um bêbado ao volante, sofri como se tivesse sido uma pessoa a morrer. Nem ter tomado a decisão nem a Boneca, erradicaram o medo ou o tornaram mais compreensível. Continuo a saber que posso voltar a ser atacada a qualquer momento e a pensar nisso de tempos a tempos. Aprendi contudo a controlar a angústia mas não sei até que ponto essa terá sido uma aprendizagem positiva. Viver sem angústia é viver cautelarmente, e a excessiva cautela com a vida é uma patética fraude da inteligência. Quando há um ano atrás vi a frase do Benjamin, percebi que tinha encontrado a resposta para o meu medo justamente porque ela deu lugar a uma angústia nova.