Quando me perguntam se gostei de viver em Paris, costumo dar a resposta mais complicada: que não. Naturalmente que gostei de coisas em Paris. Da luz cinzenta, dos boulevards, de Clunny, dos jardins onde se deixa de ouvir o trânsito, dos passeios à beira do Sena, das livrarias, do preço dos livros, dos cinemas que passam sempre o mesmo filme, dos museus e sobretudo de uma sensação extrema de possibilidade por parte da minha sombra que, frequentemente deixada de parte, parecia agora regozijar-se por se sentir integrada. O melhor de Paris não era que tudo era possível, era que tudo estava a acontecer. A diferença não podia ser mais abissal. Ainda assim, aquilo de que abdiquei não chegava a ter o peso de uma pena perante aquilo que recuperei ao regressar a Portugal.
Costumo contar uma história depois de responder à curiosidade, para que as pessoas possam ter algum indicador do que é estar efetivamente a viver em França. Conto sempre a mesma história e começo sempre por oferecer primeiro um dado, ao mencionar que o que vou relatar de seguida me aconteceu precisamente dez vezes ao longo dos quatro anos que lá vivi. Não tenho dúvidas de que uma história, por real que seja, e mesmo quando é contada na primeira pessoa, não passa de uma ficção para os outros, portanto não me surpreende que a tendência dos meus ouvintes seja para desdramatizar o conteúdo. «De certeza que não é assim tão mau», respondem frequentemente, evitando já olhar-me nos olhos, pois concerteza estarei a inventar ou a sobrevalorizar o que não merece destaque. Na altura em que isto me aconteceu, fiz questão de me lembrar para contar. Como a memória é traiçoeira e nela não me fio, percebi que podia escolher esta situação a partir do momento em que ela se reproduziu uma segunda vez, num local e tempo completamente distintos da primeira, esta que me fez entrar num choque profundo, cuja vergonha, de uma profunda indecência, nunca vou esquecer.
Portanto os franceses gostam de fazer jantares. Entre o frio e o individualismo não sei qual é a motivação mais forte, mas o certo é que é hábito generalizado organizarem-se grandes jantares em casa onde o ambiente a maior das vezes comedido, não chega para dissimular a avidez por extravagância. Para mim, que oiço mal, tanto melhor. Não tinha de passar a noite toda a fingir que tinha percebido o que me tentavam dizer no meio de um ruído absurdo. Chegada há pouco, eu era sempre uma estranha para a maioria dos convidados, despertando atenções ferozes e gerando um murmúrio animado. Até que finalmente alguém se aproximava e começava a falar.
Como te chamas?
Marta.
O que fazes?
Estudo Filosofia.
Ah bom? Onde estás a estudar?
Na Sorbonne.
(Neste momento os olhos do interrogador brilhavam mais intensamente, que ganhava impulso para mais perguntas).
E tens bolsa? Ou estás a trabalhar?
Tenho uma pequena bolsa mas também trabalho, numa Mediateca.
(Descontraído). És de cá?
(A pergunta era motivada pela minha falta de sotaque e pretendia descobrir se tinha nascido em Paris ou noutra região francesa).
Não. Sou portuguesa.
Ah, és de origem portuguesa. Mas nasceste em Paris?
Não. Sou portuguesa de origem africana. O meu pai é português, a minha mãe é angolana e eu nasci em Portugal. Estou cá há pouco tempo.
E com esta frase, os meus interlocutores voltavam costas. Quando não havia nojo no olhar deles, havia uma terrível incapacidade de simplesmente continuar a conversa: não podiam pensar. Voltavam costas balbuciando com os seus botões que era impossível. Impossível que uma pessoa loira de olhos azuis tivesse origens africanas. Impossível que uma portuguesa falasse a sua língua sem sotaque. E sobretudo, impossível que esta pessoa estivesse a estudar na Sorbonne e a trabalhar.
Situações como esta eram vividas quotidianamente por quem não podia disfarçar a sua condição de emigrado, ao ponto de uma senhora de bengala empurrar de um banco na paragem do autocarro uma mulher com burka para o chão, uma das últimas alucinações que vi. Ao ponto também dos mais conceituados intelectuais, entre outros destacados membros da alta sociedade parisiense, fazerem correr tinta nos jornais ao longo de praticamente um ano, porque havia miúdos a usar peças da marca Lacoste. Miúdos, leia-se, filhos de emigrantes. La racaille. Uma tão prestigiada marca não podia ser democratizada, tinha de permanecer ao uso das elites, pelo que se estudava o aumento de preços ou mesmo a retirada do mercado de certas peças. A forma como estes miúdos falavam (como se abrasileirassem o francês, introduzindo expressões novas, modificando a pronúncia de algumas palavras e resgatando o calão), bastava para o justificar: era a própria língua francesa que estava perdida se não se tomassem as devidas precauções. No ano em que regressei, protegendo-me de dar mais explicações com a minha tendência para a provocação, quando me perguntavam se tinha gostado de lá estar a viver, respondia simplesmente «Num nada as ruas de Paris vão estar a arder.», o que num nada aconteceu, nas banlieues. Para mim era evidente que os franceses possuem uma espécie de ressentimento com origem na segunda guerra. Há neles um desejo de vingarem a história através da sua confirmação, pois um francês não pode deixar de ter razão: e os franceses foram delatores. A arrogância de um francês é a última a morrer, era a moral da história de uma anedota corsa que costumava ouvir. O silêncio e a paz da ocupação Nazi tornaram-se infecciosos com o final da guerra. E só há um destino para uma infeção: espalhar-se.
Parece haver contradições nesta história, quase posso ouvir-vos pensar. Afinal eu estava a trabalhar, a estudar e sobre isso não menciono quaisquer problemas, pelo contrário. As leis em vigor para a comunidade europeia, que estabelecem a livre circulação de bens e de pessoas, estavam implementadas há muito. Estudar num país da comunidade europeia é em princípio tão simples quanto pedir a transferência de um processo de uma faculdade para outra e passar com uma nota suficiente o exame da língua na faculdade escolhida. Conseguir trabalhar pode ser mais difícil, há que perseverar nas buscas, o que leva tempo, e esperar por um golpe de sorte, mas isso é assim por definição. Foi o que fiz e a certa altura fiz até outra coisa: casei com um francês. Santifiquei-me aos olhos das instituições. Com uma carta de séjour nas mãos, ninguém tinha poder para me vedar o acesso a nada. E tive prazer na minha mesquinhez, ao ser capaz de deixar os franceses enxovalhados por frequentemente conhecer melhor do que eles a língua que tanto dizem amar.
Em conversa recente com um amigo, fiquei a saber que uma amiga em comum considera regressar a Portugal, após cerca de 16 anos de vida em Paris. Confessava-lhe ela que o bloqueio nunca tinha sido quebrado e que assim que abre a boca, denunciando o seu sotaque, as pessoas deixam de a ouvir. Parece que em 16 anos não mudou grande coisa. Mas que belos são os boulevards.