28 de janeiro de 2014

Não sei quem me lançou no mundo, nem o que é o mundo, nem o que sou eu próprio. Vivo numa ignorância terrível acerca de todas as coisas. Não sei o que é o meu corpo, os meus sentidos, a minha alma, e até esta parte de mim que pensa o que digo, que reflecte sobre tudo e sobre ela mesma, e que não se conhece melhor do que ao resto.
Vejo estes espaços pavorosos do universo que me envolvem e vejo-me preso a um canto desta imensa vastidão, sem que saiba porque estou colocado neste lugar, e não noutro, nem porque razão este pouco tempo que me é dado viver me é atribuído neste momento, e não noutro ‘de toda a eternidade que me precedeu e de toda aquela que há-de vir‘ depois de mim. Vejo apenas infinitos de todos os lados, que me envolvem como a um átomo ou uma sombra, que dura apenas um instante, e não regressa mais.

Blaise Pascal, Pensées


Quando ouvi o poema do Herberto Helder pela primeira vez, soube exactamente o que ele queria dizer com uma essência de oficina. No rés-do-chão da casa ao lado daquela onde vivi os primeiros anos, trabalhava um cesteiro. As memórias do cesteiro são as minhas primeiras memórias e por isso aquelas cujos detalhes são os mais silenciosos. Foram estas as primeiras coisas que eu vi. As primeiras coisas que me inquietaram. São estas as primeiras imagens, que se colaram a mim, me embalaram o sono durante anos, e ainda resistem. Tenho a sensação que estas imagens hão-de resistir a tudo. A sua limpidez, a sua clareza e o seu mistério hão-de resistir até a mim.
Temo fracassar. Talvez não encontre forma de lhes fazer coincidir o que posso escrever sobre elas. Contudo, penso há anos como fazê-lo. E espero.
Eram portas de madeira verde escuro, do tamanho das portas de uma garagem, abertas em par para dentro. Havia cestos já feitos pendurados na porta, outras peças acabadas e incompletas espalhadas pela oficina. Eram belas. Eram a coisa mais bela que eu já tinha visto. Eram a coisa mais extraordinária que eu já tinha visto.
A minha mãe caminhava rapidamente. Eu era levada pela mão e por vezes pelo caminho procurava retardar-lhe o passo. Então ela dizia «Vamos para casa, vamos jantar».
Ele estava lá dentro, na penumbra. Raramente, e quando o fazia era de soslaio, olhava para nós. Parecia absolutamente concentrado no que estava a fazer, como se mais nada existisse. O pó do vime acumulava-se até à rua e evolava-se no ar. Pareciam estrelas, um firmamento de estrelas dentro da oficina do cesteiro. Ele estava sentado num pequeno banco, quase rente ao chão, e com os seus dedos grossos enfiava rapidamente fios de vime uns nos outros até formarem um objecto. Para mim, o cesteiro estava debruçado sobre um segredo. Era um alquimista. O firmamento dentro da oficina era um reflexo, ou a continuidade, do firmamento de onde ele sabia trazer coisas.
Só havia luz na entrada da oficina e ao fundo, que passava através de uma porta para as traseiras ligeiramente entreaberta e que me parecia estar sempre na mesma posição; não havia aquecimento e as grandes portas de madeira verde escuro estavam abertas todos os dias à excepção do Domingo. Ao Domingo eu nunca via o cesteiro, imaginava-o. Imaginava-o com um fato de Domingo a ir para a missa. Imaginava-o rodeado pela família à espera do almoço, cozinhado pelas mulheres, sentado com o seu fato, já desabotoado, depois de chegar da missa, num sofá grande com um napperon de renda nas costas. Não sei de onde vem esta imagem. Procuro nas minhas memórias mas não sei onde poderei ter visto napperons de renda em cima das costas dos sofás, ou pelo menos não me lembro de alguma vez os ter visto nas casas por onde passei. Não sei porque imaginava o napperon de renda mas sei porque fazia a associação: o cesteiro era pobre. A minha percepção do mundo já estava formada.
O tempo passando, a minha atracção por aquele lugar crescia cada vez mais. Perguntei à minha mãe «o que é aquilo», para lhe dar a entender que queria parar ali. Ela não parava e eu continuei a perguntar. Espalhados pelo espaço da oficina, os bancos e cestos de todos os tamanhos e feitios mudavam com uma rapidez alucinante. Mudava o objecto nas mãos dele e mudavam os objectos nos seus lugares, um sendo substituído por outro, quase diariamente. Muitos deles eu nem tinha tempo de perceber para que serviam. Depois da penumbra onde a oficina estava mergulhada, único foco de luz para além da rua onde eu passava, a porta aberta para as traseiras atraía-me também cada vez mais. Como era estranho que nunca estivesse nem mais aberta nem mais fechada. As pessoas sempre tocavam nas portas quando passavam, será que ele nunca ia ao outro lado? Será que nunca se aproximava sequer, que não queria ver o que lá estava? Eu tinha apenas um desejo, com os anos cada vez mais intenso: entrar na penumbra, ver o que ela tinha e passar por essa porta pois, de tudo, o que mais me fascinava era o jogo de luz e de sombras dentro da oficina. Perante isso, até a existência do cesteiro era secundária.
Um dia, insisti com a minha mãe, puxei-lhe o braço e consegui parar mesmo à frente do cesteiro. Ele levantou ligeiramente o queixo, parou o que estava a fazer por breves instantes, para logo retomar o trabalho e voltar a concentrar-se nas mãos. A minha mãe não se moveu, como eu teria esperado que fizesse, porque era o que acontecia sempre que lhe mostrava interesse em alguma coisa. Estranhei essa imobilidade, não a percebia. Não conseguia ver nenhum perigo e no entanto havia ali uma resistência que como nenhuma outra me exigia esforços para a vencer. Voltei a puxar-lhe o braço e aproximei-me. Dirigi a palavra ao cesteiro: «o que é isto». Não me lembro da resposta apenas da conversa. Mostrou-me os ramos de vime pendurados à entrada, umas fitas longas presas em ramos de onde ele retirava o material para fazer as peças. Levantou-se e pegou num deles para me mostrar como se fazia. Após alguns minutos, dei mais um passo para a frente cheia de coragem, era agora, era agora que ia conseguir entrar. A minha mãe agradeceu rispidamente, pegou em mim e levou-me para casa. Num segundo, tudo se desmoronava em frente dos meus olhos, não tinha conseguido entrar e a conversa tinha sido interrompida sem que soubesse quando ou se voltaria a conseguir iniciá-la.
Não muito tempo depois disto, ao passar em frente da oficina num dia que era de semana, encontrei as portas fechadas. De um dia para o outro, fechadas. Perguntei à minha mãe, com um sentimento de absoluto desespero, se ela sabia o que tinha acontecido. «O cesteiro morreu». Era o meu primeiro confronto com o desaparecimento de uma pessoa. A primeira coisa que desapareceu com o cesteiro foram as suas mãos, de dedos grossos, ágeis e pele lisa. Morreu significava isso, que não tinha ido para lado nenhum, não estava em lado nenhum, nem mesmo sentado no sofá com o napperon nas costas à espera do almoço. Morreu significava que nunca ia conseguir falar com ele e que o firmamento tinha morrido também.
Perante essa frustração senti uma enorme culpa por nunca ter falado com ele, por não ter sido mais insistente, mais perseverante, e enfim, eficaz. Esta culpa devorou-me durante anos, muito depois de ter entrado na idade adulta e penso que, sobretudo sempre que alguém próximo me morreu, voltava a pensar na decisão que não tinha tomado. Nos anos que ali vivi depois disso, passava à porta da oficina para me certificar que pelo menos as portas ainda estavam lá. Que eram as mesmas portas, que havia ainda uma ínfima possibilidade do interior estar intacto. Tinha vontade de as fazer arrombar, imaginava formas de o fazer. Procurei os familiares, nunca descobri ninguém. Hoje, quando volto ao lugar onde nasci, evito essa rua, não quero sequer ver se as portas da oficina ainda lá estão. Para mim estão.
Antes de escrever esta história, perguntei à minha mãe se se lembrava do cesteiro e pedi-lhe, por e-mail, para me contar o que se lembra. Ela respondeu:

"Não me lembro de nada em especial. Era já muito velho quando fui morar para aquela casa e que era muito antipático, vendia no mercado os seus produtos e passava os seus dias ali com o seu rádio."

Não me lembrava do rádio, um pequeno rádio pousado no chão ligeiramente afastado do banco onde ele trabalhava, mas o perigo que me impediu a aproximação foi desvendado. Quando li a resposta, voltei a sentir-me intimamente persuadida de que entre mim e o cesteiro houve uma ligação que se perdeu irrecuperavelmente e não me consigo conformar com o extravio do que poderia ter sido. O que acabo de escrever ainda é uma tentativa de a manter viva.

26 de janeiro de 2014

Já dentro do autocarro, sentada logo à frente num banco baixo à janela, ao colocar a mala sobre os joelhos, percebeu que o dedo médio estava cheio de sangue. Ocorreu-lhe que estava menstruada e que o sangue só podia ser desse que estava a expelir, mesmo que não compreendesse como podia ter manchado o dedo daquela forma sem se ter dado conta. Em segundos, olhou discretamente para a frente onde não estava ninguém sentado, para confirmar que ninguém podia ter visto e pôs o dedo na boca, que começou a limpar vigorosamente com a ajuda da língua e da saliva. O sangue estava seco, custou a tirar, pois quando pensou que o dedo já estaria limpo e o tirou da boca, cerca de metade estava ainda por retirar, pelo que voltou a introduzi-lo rapidamente na boca. Pensou que era estranho este sangue não lhe saber a nada, quando o sangue tem normalmente um sabor metálico e o odor do sangue menstruado é tão forte. Continuou a pensar, enquanto limpava já distraidamente o dedo, que havia algo de prazer num corpo que expele coisas do seu interior e portanto, tal como acontece com os excrementos, havia um certo triunfo do corpo sobre o sangue libertado com os óvulos inúteis. Não estava satisfeita com a palavra prazer mas não conseguia encontrar a adequada. Parecia-lhe ainda mais desadequada agora, que lambia o sangue excrescido e sem sabor. Não teria nojo?
Quando o dedo ficou limpo descobriu um corte na raiz da unha. Surpreendeu-se então com a vergonha que tinha sentido minutos atrás, ao associar imediatamente o sangue no dedo à actividade do seu corpo. Voltou a olhar para o dedo para perceber se o sangue estava estancado. Pensou nessa actividade silenciosa, secreta, contudo de uma violência plutónica, que tinha acabado de associar a um prazer, prazer de um corpo que se liberta, prazer de se desprover de si próprio, de tudo o que o excede e aniquila. Manteve uma vez mais essa saborosa ilusão de que todos os seus gestos, todos os seus pensamentos, não eram senão terra, e que não havia entre eles espaço que os distinguisse, pois pertenciam a uma sequência orgânica, incessante e sem destino. E não tinha nojo.

23 de janeiro de 2014

o rapaz pensou:

- é assim que eu gosto de amar.

e sentiu a planta dos pés pousar na calçada como peixes assomando à tona da água.

21 de janeiro de 2014

Como as coisas (em princípio) duram mais do que nós, sabem mais do que nós sabemos delas; são portadoras das experiências que tiveram connosco e são — efectivamente — o livro da nossa história aberto diante de nós.

W. G. Sebald, O Caminhante Solitário


Vinte de Abril de 1980, quatro anos após o meu nascimento obstétrico, numa tarde de terça-feira de muita chuva.
Os preparativos para a festa duraram semanas. A minha mãe fez-me o vestido, pela mão dela, azul, com laços iguais para o cabelo. Fizemos juntas a lista dos convidados e eu fiz pessoalmente o convite na escola. Escolhemos o bolo, com fios de ovos. Na véspera não dormi e no dia estava mais nervosa do que uma noiva. A expectativa de que não aparecesse ninguém devorava-me.
Veio a família, os amigos da escola, alguns vizinhos com quem costumava brincar e todos me traziam presentes. Eu ia recebê-los à porta, agradecia a presença e os presentes, sorria. Nada podia falhar. Eu pensava: «Estas pessoas estão todas aqui por minha causa. Porquê?» Não conseguia perceber porque é que alguém, para além dos meus pais e da minha irmã, poderia querer celebrar o meu nascimento. As pessoas não tinham sempre o que fazer? Porque é que isso lhes interessava? E essa celebração, seria genuína ou apenas mais um artifício entre os outros que estava habituada a ver? Tinha sido obrigada a convidar alguns amigos que não queria convidar e receber tantos presentes parecia-me exagerado. Era a ferros que eu me esforçava por aceitar e entrar num modelo que não reconhecia, de que não gostava: não era nada daquilo que eu queria fazer. Mas o que queria eu fazer para festejar? E porque tinha de festejar?
À medida que os convidados começavam a chegar, o silêncio extinguia-se. Toda a quietude ficava abruptamente refém do movimento imprevisto e constante das pessoas cuja intimidade, à excepção de alguns membros da minha família, eu não partilhava. Então, eu começava a emudecer.
A princípio, tentava disfarçar rapidamente a ausência da fala com sorrisos e depois com as fórmulas aprendidas «Obrigada», «Que lindo», «Sim». Mas pensava que era transparente, e que todos podiam ver a minha incapacidade. Por isso a decadência da linguagem transformava-se rapidamente numa espiral onde eu era levada, como água a sair por um ralo de banheira.
Neste dia, a certa altura, parei no corredor, mais escuro que as outras divisões da casa, para poder responder às solicitações interiores que me agitavam. Não sabia de onde vinham, era apenas um chamamento intenso, insistente, de uma intensidade crescente. Senti-me confusa mas parar a meio do corredor foi como aceitar o convite que constantemente me era lançado para outra dimensão. E essa escolha era uma afirmação: «Eu estou aqui e este tempo, ínfimo que seja, é meu. É isto que eu quero fazer para festejar.» Nessa dimensão, justamente, o tempo não era cronológico. Difusa, a consciência que tinha de mim própria transformou-se numa imagem de muitos Eus, cuja grande maioria eu reconhecia e desconhecia ao mesmo tempo. Como uma prótese, o meu olhar vagueava entre eles. Todos me falavam. Todos habitavam espaços onde me esperavam. Alguns traziam avisos de perigo. Diziam «Lembra-te» e mostravam-me cores, objectos, indicadores dos caminhos que deveria acautelar ou evitar. Outros, lugares preenchidos pela felicidade. Podia distinguir um som ao longe, porventura uma música que, como um instrumento, eu poderia, se quisesse, aprender a tocar mas que estava ainda por inventar. O meu coração batia tão forte e tão rápido que pensei estar doente. Pensei também que se falasse, haveria de ter uma voz grave, quase tanto como a de um homem, mas não ousei emitir qualquer som. Sabia que era um monstro, não queria assustar ninguém. Atrás de mim estava o quarto onde as crianças brincavam, à minha frente a cozinha, onde estavam a mesa de doces e o bolo de aniversário, ainda intacto, à minha direita as escadas em mármore, sem barreira, que numa curva nos levavam ao rés-do-chão e que me contavam eu ter descido uma noite sonâmbula sem cair. A luz mais forte vinha do quarto, onde havia uma varanda voltada para a face da casa. A luz da cozinha passava através da porta para o quintal onde depois dos muros altos havia céu. E a luz das escadas no fim do corredor era amarelada, ténue, cruzada por sombras ágeis, como que a confirmar a minha rêverie ou a minha enfermidade. Sei que me custou regressar. Quis correr para a cozinha, furtar-me a ferros àquele rapto oferecido, mas alguém falou comigo antes de me decidir a dar o primeiro passo. Não me esforcei para responder, apesar de ter tido plena noção que a seriedade que o meu rosto revelava, o transformava por completo num sentido enigmático. Voltei costas e avancei, o medo começava também a regressar. Mas assim que cheguei à cozinha vi o bolo, símbolo do momento em que eu tinha nascido, o símbolo que tinha trazido todas aquelas pessoas a nossa casa, e tive de sair novamente. No quarto as crianças importunavam-me mas pelo menos a minha irmã estava lá.
Na altura de apagar as velas, todos se reuniam à minha volta. A minha irmã ficava ao meu lado, seria a segunda a apagar as velas e a ouvir cantar os parabéns, antes de cortar o bolo (era uma casa muito democrática, até nos dias de nascimento). Mas enquanto as pessoas cantavam, a olhar para mim, batendo palmas e sorrindo, eu começava a chorar. Isto acontecia todos os anos, no dia do meu aniversário, enquanto me cantavam os parabéns. Quando neste dia vinte de Abril de 1980 me perguntaram porque é que eu chorava, respondi: «Porque assim eu vejo que vocês gostam de mim.»
Depois fiquei muito melancólica. Perguntaram-me se eu queria brincar, respondi que não. Fui para cima da cama, com alguns presentes, e fiquei debruçada sobre o vazio que a alegria me tinha deixado. E sobre a colcha das flores.



Obrigada ao Bruno Béu pela ajuda que me deu a explicar o que lembro.

18 de janeiro de 2014

10 de janeiro de 2014

Alors, je peux déjà raccrocher quelque chose de la schizophrénie. Je peux dire : Bien oui, essayons de voir en quoi précisément le schizophrène éprouve l’impression lui-même de voyager, avec tout ce que ça implique. Chacun, chaque fois qu’on considère ou chaque fois qu’on s’occupe de quelque chose, on privilégie certains aspects. Moi, forcément, quand on rencontrait la schizophrénie, nous, qu’est-ce qu’on était amené à privilégier (?) les mille déclarations finalement des schizophrènes, où leur problème, "ça n’est pas celui de la personne", leur problème "ce n’est pas celui d’une structure". Leur problème, c’est celui d’un problème, mais... qu’est-ce qui m’emporte, et ça m’emporte aussi ? Qu’est-ce qui m’emporte et ça m’emporte où ça ? - ben oui c’est... Bien. Or à cet égard, moi ce qui me fascine, c’est la manière dont les schizophrènes, ils ont affaire à quoi (?) vous comprenez, ils passent leur temps.
C’est ça qui faisait une de nos réactions contre les éternelles coordonnées de famille de la psychanalyse. C’est que moi je n’ai jamais vu un schizophrène qui ait vraiment des problèmes familiaux, c’est même tout à fait autre chose. Enfin c’est trop facile ce que je dis parce qu’on peut toujours dire : Il y a des problèmes familiaux, mais en tout cas, au moins qu’on m’accorde qu’il ne les énonce pas et ne les vit pas comme des problème familiaux. Comment il les vit ?
Une des choses fortes il me semble, vraiment là, c’est presque ce qui maintenant me plaît le plus quand je repense à "L’anti-Œdipe", une des choses fortes de "L’anti-Œdipe", à mon avis et ça, ça devrait pouvoir rester, c’est l’idée que le délire est immédiatement investissement d’un champ social historique. Je dis ça devrait pouvoir rester parce que c’est le type d’une idée simple, c’est pas compliqué de dire : ben vous savez hein, qu’est-ce que vous délirez finalement, vous délirez l’histoire et la société, c’est pas votre famille ! Votre famille, je repense toujours au mot si satisfaisant de Charlus, dans la "Recherche du temps perdu", quand Charlus arrive, pince l’oreille du narrateur et lui dit : "hein ta petite grand-mère tu t’en fous, tu t’en fous canaille ?". D’une certaine manière on en est tous là. Ça ne veut pas dire qu’on ne les aime pas nos grand-mères, nos pères, nos mères, bien sûr on les aime. Mais la question c’est de savoir sous quelle forme et en tant que quoi.

9 de janeiro de 2014

Ontem li o seguinte, escrito a 19 de Julho de 2007:

"Durante a noite tive um sonho indicador.
Sonhei que estava num piquenique, já tinha composto o meu prato e estava a dirigir-me para uma mesa de madeira no parque e a conversar com as pessoas muito animada e satisfeita. Nisto, encontro a minha irmã que me começa a por mais comida no prato. Poe imensas coisas, coisas de que eu até gostava mas não me apetecia, coisas que eu não gostava de todo também, até que o prato ficou muito cheio, a abarrotar. 
Não quis dizer nada por medo de a magoar ou ofender. Quando ela acabou, toda contente por me ter enchido o prato, fui-me sentar na mesa de madeira a olhar para aquela pilha de comida com asco.
Acordei aflita e imediatamente surgiu esta frase na minha cabeça: «Não ponhas no teu prato mais do que és capaz de comer.»".

Podia ter sido ontem à noite.

8 de janeiro de 2014

Se há textos que me aparecem noutras línguas que não a minha, quantas coisas oiço em línguas que desconheço?

6 de janeiro de 2014

No dia em que finalmente convenci a minha mãe que já podia ser eu a escolher a minha roupa, ela disse:

- Está bem. Então fazemos uma experiência, vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e quando tiveres tomado banho conversamos.

Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um 'statement'. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava sobretudo que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa.
Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Tive a tentação de me esconder. Não o fiz. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos, face à realidade com que me confrontava, que era peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:

- Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.

Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.