26 de janeiro de 2014

Já dentro do autocarro, sentada logo à frente num banco baixo à janela, ao colocar a mala sobre os joelhos, percebeu que o dedo médio estava cheio de sangue. Ocorreu-lhe que estava menstruada e que o sangue só podia ser desse que estava a expelir, mesmo que não compreendesse como podia ter manchado o dedo daquela forma sem se ter dado conta. Em segundos, olhou discretamente para a frente onde não estava ninguém sentado, para confirmar que ninguém podia ter visto e pôs o dedo na boca, que começou a limpar vigorosamente com a ajuda da língua e da saliva. O sangue estava seco, custou a tirar, pois quando pensou que o dedo já estaria limpo e o tirou da boca, cerca de metade estava ainda por retirar, pelo que voltou a introduzi-lo rapidamente na boca. Pensou que era estranho este sangue não lhe saber a nada, quando o sangue tem normalmente um sabor metálico e o odor do sangue menstruado é tão forte. Continuou a pensar, enquanto limpava já distraidamente o dedo, que havia algo de prazer num corpo que expele coisas do seu interior e portanto, tal como acontece com os excrementos, havia um certo triunfo do corpo sobre o sangue libertado com os óvulos inúteis. Não estava satisfeita com a palavra prazer mas não conseguia encontrar a adequada. Parecia-lhe ainda mais desadequada agora, que lambia o sangue excrescido e sem sabor. Não teria nojo?
Quando o dedo ficou limpo descobriu um corte na raiz da unha. Surpreendeu-se então com a vergonha que tinha sentido minutos atrás, ao associar imediatamente o sangue no dedo à actividade do seu corpo. Voltou a olhar para o dedo para perceber se o sangue estava estancado. Pensou nessa actividade silenciosa, secreta, contudo de uma violência plutónica, que tinha acabado de associar a um prazer, prazer de um corpo que se liberta, prazer de se desprover de si próprio, de tudo o que o excede e aniquila. Manteve uma vez mais essa saborosa ilusão de que todos os seus gestos, todos os seus pensamentos, não eram senão terra, e que não havia entre eles espaço que os distinguisse, pois pertenciam a uma sequência orgânica, incessante e sem destino. E não tinha nojo.