25 de fevereiro de 2014

Adormeço no sofá embalada pelo som de um filme onde praticamente ninguém fala, mas fico retida pelas vozes de uma festa no andar de cima num lugar onde contudo o corpo mergulha e desaparece pesadamente. Perco-o na obscuridade sem me separar dele e cedo ao prazer das imagens de coisas que me angustiam na vigília. Ou não sei para onde foi a angústia e porque sinto prazer quando as imagens que aguardo receber com sobressalto surgem agora como lençóis de água onde o meu rosto se enterra em deleite e vão sucedendo umas às outras, numa repetição sem monotonia, porque quando é a mesma que surge, é já como outra que surge, e dou por mim a pensar que a monotonia e o sofrimento não estão forçosamente ligados.
Acordo trazendo no corpo a pressão daquilo que caiu. Não me consigo levantar e um formigueiro quente converge intensamente, como se sonhasse ainda. Cada membro regressa de longe aos poucos e pergunta, sem interesse pela resposta, se ainda há tempo até que chegue a morte.

23 de fevereiro de 2014

Demasiado espanto com o pensamento de outrem oblitera o mérito do próprio. Qualquer fascínio excessivamente violento perante o exterior constrange a intimidade ao silêncio. A voz tem origem no combate e na desilusão.

19 de fevereiro de 2014

Pouco tempo antes de fazer quatro anos, uma dor que bloqueava e fazia inchar os membros ocupou-me o corpo. Primeiro de baixo para cima, depois inadvertidamente, surgindo em locais muito precisos, ficou a alastrar e a fazer ninho. Queixei-me embaraçada com dores nas pernas quando uns círculos vermelhos começaram a aparecer nas articulações.
Quando os meus pais chamaram um táxi penso que já não conseguia falar. Lembro-me de fazer a viagem ao colo da minha mãe a sentir-me esvaziar, sem peso. A febre era um vulto colossal que me possuía e ao mundo, de uma violência inexplicavelmente doce.
Não me lembro de ter chegado ao Hospital, onde fiquei internada e acordei já noite com um tubo preso ao braço, para logo ter de me despedir da minha mãe. Lembro-me dessa separação como se fosse hoje, implorei que não me deixasse sozinha. O Hospital era grande, a noite não me deixava ver o que se passava à minha volta, fiquei quieta, chorei ainda durante muito tempo e eventualmente adormeci. Sei que passaram uns dias de que não tenho memória. Quando comecei a acordar vi que tinha visitas durante o dia. Na sua primeira visita, os meus pais traziam nas mãos uma boneca de pano e cabeça de barro, cabelo ruivo de fibra, a quem chamei assim que a vi «A Boneca Palhaça» e me fez sentir muito amada, em toda a minha fragilidade, porque não era Natal nem dia de aniversário. Quis ver a minha irmã que, muito pequena, não podia entrar, mas me disseram estar à minha espera para brincar.
Um dia, já estava quase curada, uma enfermeira que tinha conquistado a minha confiança levou-me a passear pelo Hospital. Ao colo dela eu vi onde estava, os velhos nos corredores mal iluminados deitados em macas abandonadas, pessoas em cadeiras de rodas, algumas empurradas, outras paradas. Na grande maioria as pessoas mantinham a cabeça baixa e os olhos fechados e eu descobri que se o vulto era o mesmo então nós éramos o mesmo. Chegámos a um quarto com muito mais luz do que todas as outras salas onde tínhamos estado. Nas camas estavam crianças e havia uma sala ao lado, separada por um vidro, com mesas baixas coloridas cheias de papéis e lápis de cor. Atravessámos o quarto e uma das crianças chamou-me a atenção. Não tinha traços.
Perguntei o que se tinha passado com ela. Disseram-me que era um menino em cima de quem tinham despejado sem querer uma panela de água a ferver. Portanto o que eu via e não conseguia perceber, era uma cicatriz mas o corpo como cicatriz. Ele brincava em cima da cama. Era difícil olhar, entre o asco e o horror, não podia imaginar como era antes. Surpreendeu-me que olhássemos um para o outro e a familiaridade que senti. Voltámos a sair do quarto sem que tivesse tido sequer a possibilidade de brincar com os lápis de cor.
Poucos dias depois vieram buscar-me para sair. Explicaram-me que tinha tido uma doença muito grave e que teria de regressar todas as semanas para levar injeções de penicilina, até ser adulta. Foi só nesse momento que percebi que podemos desaparecer de repente, sem nos apercebermos, sem termos tempo para fazer coisas e nos despedirmos. Que o negro doce do meu vulto era uma armadilha com um encanto sem escapatória.
À porta do Hospital havia (há) uma rampa muito íngreme para as ambulâncias saírem que a minha mãe começou a descer vigiando que eu a seguia. Quando avanço nela dois ou três passos, eis que a rampa começa a mexer.
O chão oscilava, eu ia cair. Apoiei-me no muro do lado direito e comecei a gritar, pensando que a minha mãe também estaria com medo. Mas a minha mãe permaneceu imóvel. Ficou a olhar para mim, de olhar incrédulo, dizendo que não, era mentira, o chão não estava a mexer, eu podia avançar sem problema. Contudo, mesmo enquanto ela pronunciava essas palavras, o chão oscilava e tremia cada vez mais. Eu estava num navio e a tempestade abatia-se com violência, a qualquer momento eu poderia ser engolida pela terra. A terra mexia, todas as árvores se agitavam, o mundo estava a chegar ao fim, eu gritava e, o pior de tudo, ninguém acreditava em mim. Nisto a minha mãe subiu o pouco da ladeira que tinha descido, pegou-me ao colo e pediu-me que me acalmasse. Perguntou-me se podíamos descer a ladeira desde que ela me levasse ao colo ao que respondi naturalmente que não. Não era uma possibilidade sequer ponderável, era como estarem a perguntar-me se não me importava de ser lançada ao mar revolto desde que fôssemos abraçadas. Para meu alívio ela acedeu sem grande esforço e assim que voltou costas à ladeira vi com grande espanto que o chão do lado oposto não oscilava. Caminhámos tranquilamente, podia ser domingo, talvez fosse. Percebi que só eu é que tinha visto a borrasca e o perigo, que nada do que dissesse poderia descrever e tornar credível. À medida que nos afastámos do Hospital fui ganhando plena consciência de me ter tornado presa da febre que agora ninguém senão eu via.

12 de fevereiro de 2014

A vontade de registar os sonhos surgiu pela primeira vez quando acordei no limiar deles. Quando, embora de olhos abertos, não podia ainda distinguir claramente os objetos e os corpos da vigília mas já me arrancava do peso do sono. Ontem, por duas vezes, fiz a passagem através da minha voz, ou dito de outra maneira, fui acordada pela minha voz do sonho.
O que nesses primeiros instantes de olhos abertos foi irreconhecível, foi a voz da vigília. Não podia usá-la, não me pertencia. A esforço aceitei - acreditei - que poderia ser eu esse outro, esse estranho, que me olhava, me esperava, sem perguntas.
Durante o dia voltei a ser surpreendida por essa voz, a minha, que se mostrava apesar de mim num gemido, sabendo eu imediatamente que mostrando-se é a mim que me mostra. Mas como, se não fui eu quem gemeu? Fui eu?
O fim do dia trouxe o ruído da cidade, do trânsito intenso, das pessoas na rua, do vento na copa das árvores, dos cães a latir no jardim, dos meus próprios passos na calçada. Senti entre nós uma grande distância, como se todo o ruído se transformasse num murmúrio e eu o atravessasse, munida do meu próprio murmúrio, este porém, demasiado fino para querer mostrar-se.

5 de fevereiro de 2014

Na verdade, tornou‑se‑me cada vez mais difícil, mesmo insensato, escrever num inglês normal. E cada vez mais a minha linguagem me aparece como um véu que tem de ser arrancado para se aceder às coisas (ou ao Nada) por detrás dele. Gramática e estilo. A mim parece‑me que se tornaram tão irrelevantes como um fato de banho vitoriano ou a imperturbabilidade de um verdadeiro cavalheiro. Uma máscara. Tenhamos a esperança de que virá o tempo, que graças a Deus já chegou em alguns círculos, em que a linguagem é mais eficientemente usada quando mal usada. […] Cavar nela um buraco atrás do outro, até que aquilo que está à espreita por detrás – seja isso alguma coisa ou nada – comece a emergir. Não consigo imaginar hoje um objetivo mais elevado para um escritor.

Carta de Samuel Beckett a Alex Kaun, 1937.