20 de fevereiro de 2018

com a chegada desta Primavera precoce, tenho subitamente a sensação — que me devora — de ser jovem e de tudo se mostrar afável à minha passagem. contudo, à promessa de um novo início oponho uma madura desconfiança e entrego-me ao que faço. penso nos meus amigos. daqui a pouco desapareceremos um a um sem deixar rasto e ainda assim, basta para isso um pouco de saúde, hoje é a esperança que nos invade. tem um duplo deleite ser-se jovem quando se começa a envelhecer. como num romance em fogo lento, a vida tem uma excessiva, imponderável evidência.

2 de fevereiro de 2018

ela conseguia descascar uma clementina sem sujar as mãos, lavar os dentes sem deixar escorrer a pasta, nunca tomava decisões durante o período do síndrome pré-menstrual, vestisse o que vestisse, incluíndo as peças mais simples, engelhadas e largas, parecia sempre elegante e delicada. se me vestisse assim, como já havia tentado, parecia um mendigo ou uma puta e a minha organização era aleatória. era alta, tinha o nariz fino, os cabelos louros compridos e os lábios grossos cor de rosa, eu tinha começado a envelhecer. os meus cabelos, encaracolados e crespos, ficaram todos brancos e lisos, umas olheiras começavam a escavar-se, pequenos pelos apareciam em zonas inesperadas do corpo, a pele perdeu brilho e ganhei peso. curiosamente, foi nessa altura que comecei a pensar menos no tempo. ficou como que suspenso, atravessado pelo corredor da morte, um espaço vazio imprudentemente atravessado pelo sonho de alguém. a biologia escapava ao precário conceito de duração e instalava-se num tempo cíclico e no entanto contínuo, aparentemente sem fim. a vida, expectante e singular, tinha agora um valor imediato, vibrante e autónomo, mas nem por isso menos interior e completamente oposto à rapidez e à superficialidade: a falta de tempo era epidérmica e deixou de ser possível usar exemplos do passado para falar do futuro. submersa pela entropia da mentalidade obcecada em não esquecer nada para não ser surpreendida, a minha perceção da beleza não era uma alternativa a nada, mas parecia ser a única resposta para tudo. entre mim e esta bela mulher que não sujava as mãos, instalava-se uma despretensiosa vontade de, com alguma ingenuidade, redesignar uma exuberância que questionava a expressão do poder.