31 de agosto de 2014

Obstinado e rude, o meu coração batia oscilando sem resistência rumo ao que não conseguia ainda compreender. Durante muito tempo a minha vida foi feita de um filão de acontecimentos como este: a camada de pó debaixo da fria luz matinal, a estupefação perante um corpo violado, a transcendência da solidão, cuja linguagem particular sustentava a minha nudez, esta porém exausta, como um gato que todo o dia dorme ao sol. Mesmo a repetição tinha um sabor improvável e a violência desiludia pela sua fragilidade. Que poder teria sido mais ambíguo para uma mulher?
Mentir poderá ter sido a minha ocupação mais estável e profundamente apreciada. A minha maneira de me dirigir ao infinito, ou de o desmascarar, talvez fosse melhor dizê-lo. Mas como em todos os jogos, a façanha era insuficiente, limitada. O magnetismo está ausente nas vítimas, nelas o seu simulacro é infalível. A não ser que se tenha fé. Havia que desistir e isso tornou-se mais importante que tudo. Nenhuma outra origem me era acessível. De um grande silêncio imóvel, sem intriga, o prazer surgia peremptoriamente com uma alegria sofrida, como um parto. Sempre estive entre a bizarria e a elegância, impossível dizer se por medo se por coragem. Essas coisas são insignificantes quando se sabe rir e nada há de gratuito no riso, pois a vulnerabilidade é precisamente o que excede o confronto da bizarria e da elegância. Estabeleci pactos íntimos e familiares porque não acredito no tempo que, tal como o espaço, ilude, transmitindo contornos às coisas. E as coisas são sem contornos, sobretudo um corpo violentado. Talvez isto não possa ser dito sem fatalmente adquirir um cunho feminista ou pior ainda, esotérico, o que em ambos os casos falha tanto o alvo como querer acender um cigarro debaixo de água. Seja como for, cedo ou tarde tudo me desilude à exceção das flores que tenho à minha frente. Seria preciso fazer nascer botões em cada texto para que não fossem eles também uma desilusão. Mas as únicas forças demiúrgicas que encontrei estão latentes na escrita, não em mim. Eu sou uma operária, preguiçosa por sinal. Desconfio até que tenha sido a preguiça a causa de a pouco e pouco me ter tornado indiferente a todas as lutas, ao ponto de passar dias sem me alimentar. O que se passa lá fora? A toalha balança no estendal ao sol. Uma poeira metálica turva o horizonte fechado pela serra da Arrábida, o céu está azul mas insuficientemente azul e sob ele os telhados é que contam. Qualquer coisa me dói, qualquer coisa me enfurece. Como uma língua.
Houve uma altura em que as pessoas poupavam papel. Por nenhuma razão ligada à ecologia mas porque o papel era um bem precioso, a cujo uso era dada soberania nas suas vidas. Se ter papel em casa era prestigiante, a sua ausência nas gavetas correspondia à confirmação da singeleza, esta tratada como um sacramento. Lembrava-se assim que, material frágil de entre os mais frágeis, perante um destino comum, sabedoria e ignorância equivalem-se e que, acima da sua soberania, prevalecia ainda o imperscrutável mistério do gesto e do olhar, que nem todo o papel do mundo chegaria para esclarecer. A sua manipulação extraordinariamente exigente manteve-se intacta, como um estilete invisível, mesmo quando o seu valor decaiu, por via do crescimento da sua produção e da democratização do seu uso, ou seja, da escolaridade obrigatória. Cuidar do papel que se possui tornou-se ao tempo, em si, um fator meritório mas o elitismo dos mais instruídos alimentava-se dos contornos poéticos que descobria num cartucho de castanhas a arder. Lembro-me ainda, e não tenho assim tantos cabelos brancos, de ser zombada por me ter cortado numa folha que tinha acabado de retirar de um maço de papel para impressora. E com a mesma vivacidade me lembro de ter vigiado o sangue a aparecer, ocultando ao mesmo tempo o desejo de que a pele ali guardasse uma pequena cicatriz.

29 de agosto de 2014

Sob os plátanos, grupos de adolescentes sobem e descem a avenida que vai dar ao mar. Quatro rapazes, três negros e um branco, aproximam-se pela minha esquerda. Como uma mola, o meu olhar é atraído para o rapaz branco, louro, de olhos azuis, com a pele queimada, os ombros direitos e o peito a descoberto no limite de um corpo bem desenhado. Lembra-me o deus grego da praia da Nazaré, e sinto-me abençoada por poder ver aquilo que é único repetir-se. Quando nos cruzamos, ouço-o falar crioulo. «Noutro tempo», concluo no meu choque, «teria causado a minha destruição».
Estou há muito tempo parada à beira-mar quando subitamente, como se fossem algas, dois rapazes são trazidos pela água, um a cada lado dos meus pés. O mar recua e eles, deitados de barriga para baixo na areia, olham um para o outro, riem e num salto correm novamente para o mar, mergulhando de chapa numa onda. Creio que nem viram os meus pés no meio das suas cabeças.
Como são admiráveis estes rapazes! Quanto arriscam.
Tenho pena de há muito ter desistido de viver embora também haja privilégio em ter conhecido o íntimo terror da sombra. Voltar a ter um glossário é pois para mim um gesto da mais pura afirmação, todo feito de alegria e certeza. Falhei em tudo e já não tenho vergonha em declarar que amo o que o mundo despreza.

28 de agosto de 2014

27 de agosto de 2014

Quando ainda vivia soterrada, rapei o cabelo porque era a única coisa que podia fazer para afirmar que não pertencia àquele lugar. Tinha uma longa cabeleira loira carregada de caracóis pelo meio das costas e tive de ir a três cabeleireiros para conseguir livrar-me dela. Tinha 17 anos. Perguntaram-me se não queria guardar um caracol para recordação. Coisas assim desesperavam-me. No entanto era delicada, recusei agradecendo. Espantava-me nessa altura, e por vezes ainda me espanto, ao deparar-me com a diferença abissal entre a idade do meu corpo e a minha idade real. Talvez todas as mulheres nasçam velhas e por isso se espantem ao passar diante do seu próprio reflexo. E talvez por isso desejem os filhos. A quem mais passar essa sabedoria, que só se revela na solidão e àquele que se encontra em silêncio?

25 de agosto de 2014

Uma pessoa ofereceu-me um quadro com a imagem que tenho de mim própria. É o perfil de uma mulher sentada que olha para o vazio. Não se vê o seu olhar, não se sabe para onde é dirigido. Está sentada numa cadeira. Ao fundo está um móvel com algumas louças em cima e à direita dele um cortinado. É possível que ela olhe para o espaço para lá de uma janela ou para o espaço que medeia entre si e a janela. Vemos o seu cabelo louro cair sobre os ombros, um vestido azul claro antiquado.

Não tenho outro significado para o amor.

Que perigo maior do que ver o múltiplo unificar-se? O sentido dos nossos gestos escapa-nos. No limite talvez nem exista. Aquilo que defendemos é tenazmente obscuro. Acredito nessa obscuridade, para lá de tudo, uma obscuridade lodosa, inegligenciável, que nos racha como um talhante. O que acontece é precisamente o silêncio. Sou eu esta mulher sentada a olhar para o vazio ou para o espaço além da janela, à espera. Por vezes sorri mas ninguém a vê sorrir. Nunca fala. Ninguém a vê fazer nada senão esperar. O seu mistério é inacessível e abominável, sólido mas aviltante. Se pronunciasse uma palavra, seria para mostrar que não tem vergonha nem orgulho em ser observada. Ela vive onde o cabelo cresce, lento e silencioso território, intocado.

24 de agosto de 2014

no interior de todos os fogos
vigia-nos 
um ígneo jardim negro
cujas artérias
amplamente secretas
tocam o fôlego
que assusta as mãos

tudo dorme
um sono múltiplo
onde o verbo desemboca na morte
que toca a boca

e a luz sobe
como uma mulher madura
parada e insondável
treva de som

23 de agosto de 2014

«Venha cá dona! São artigos de luxo a 5€ para usar no baile de logo à noite, nem uma sardinha assada consegue comprar a este preço!», era a cantoria de uma cigana no mercado. Quando voltei para baixo, os artigos de luxo já estavam a 3,5€. As entradas no baile é que devem ser caras. Turista na minha própria terra, esquecida dos costumes e das regras silenciosas (as mais sólidas), meti-me com ela, para elogiar a sua alegria contagiante, mas só uma mulher muito velha a seu lado, provavelmente a mãe, me respondeu. Da bela jovem cigana vestida de negro só recebi um olhar fulminante, que me acertou em cheio num nervo e me matou.

22 de agosto de 2014

Uma cidade de província é mais imprevisível do que Londres e Paris, sempre postas em juízo pela informação dos seus escritores e dos seus visitantes.

Agustina Bessa-Luís, O Princípio da Incerteza - Jóia de Família
I have no memory for things I have learned, nor things I have read, nor things experienced or heard, neither for people nor events; I feel that I have experienced nothing, learned nothing, that I actually know less than the average schoolboy, and that what I do know is superficial, and that every second question is beyond me. I am incapable of thinking deliberately; my thoughts run into a wall. I can grasp the essence of things in isolation, but I am quite incapable of coherent, unbroken thinking. I can’t even tell a story properly; in fact, I can scarcely talk.

Franz Kafka

20 de agosto de 2014

Estive a ver na televisão um concurso com danças de salão e senti-me como se estivesse dentro da Matrix, vendo tudo passar-se diante dos meus olhos com uma lentidão extraordinária, mas sem perceber se o que estava errado era o mundo ou eu.

19 de agosto de 2014

Por vezes surge um ou outro projeto que seria sensato - inteligente - concretizar. Penso neles, por vezes menciono-os a amigos. Tenho através disso a fantasia de estar a produzir um engenhoso e espesso desvio, uma espécie de labirinto onde as sombras mais tenebrosas me colocarão ao abrigo de toda a mediação humana e, com esta fantasia, pareço pretender proteger os meus verdadeiros desígnios. Significa isto que, enquanto penso ou falo neles, não me podia estar mais nas tintas.
Vejo-me nesses momentos como um ser resistente à mudança, misantropo, vil. Não sou uma mulher, não sou um homem. À exceção dos jardins, não quero ir a lado nenhum, nem sequer ao mercado ou ao café. Se sou um animal, sou certamente um dos mais abjetos, se sou louca, os traços da obsessão e do vício fazem parte de mim como sórdidas crostas leprosas. As únicas condições que me interessa criar, têm de me permitir escrever. O resto é areia na boca.

18 de agosto de 2014

Quatro elementos cósmicos: ar, terra, água, fogo.
Quatro imperativos mágicos: saber, querer, ousar, calar.

17 de agosto de 2014

1995

O meu reino por agosto em Lisboa.
Há que ser bem cortês, sem cortesia.

Vinicius de Moraes

12 de agosto de 2014

Emília serviu a bebida com o ar de uma pessoa obrigada a viver entre animais de índole inferior. De olhos postos no balcão, satisfeito por ver algumas gotas transbordarem o copo, Carlos levou-o à boca e disse, enfático e sem a menor hesitação:

- Apparuit iam beatitudo vestra.*

Reinava o silêncio. Para lá da porta da taberna, aglomerados dispersos de árvores, vistas bruscas e irregulares de caminhos sinuosos e uma odiosa e desolada imensidão de terra branca e seca, repleta de bestas e de homens selvagens. Emília esforça-se para que ninguém veja os seus olhos humedecerem. O contraste e a irregularidade da frase fazem-na corar e procura esconder rapidamente o seu choque. Para onde foi levada naquele instante, que tão fugaz e fulgurante passou e que faz agora por esquecer? Como se nela houvesse um dispositivo que acionado a abalasse, dela desconhecido e sobre o qual não tem poder. Que arrogância ter entrado naquela aventura. Tinha pretendido ser pioneira para vir a descobrir que os corpos e a sua lei são tiranos incompassíveis, que nunca oferecem nem paz nem justiça. Considerava-se uma pessoa emocionalmente reservada, distanciada das aflições que consumiam as mulheres com quem conversava no mercado. A verdade é que nem ao cão que com frequência por ali aparecia à procura de comida e a quem os clientes tinham dado nome, se tinha afeiçoado, o que não lhe causava surpresa ou pena. Dentro da sua caixa, via os dias passar perdida em clarividências proféticas que nunca se realizavam e em sonhar com os detalhes sumptuosos de uma casa que, um dia, haveria de ser a sua: a toalha de renda branca, a colcha de lã vermelha, o vaso de cerâmica para ramos de flores que uma vez murchas seriam ainda mais sedutoras, a mesa de madeira com migalhas de um bolo acabado de cozer. Esses detalhes e essas profecias, funcionavam como uma linguagem nova, obscura o suficiente para que pudesse sentir-se protegida por ela. E sempre que Carlos aparecia, parecia ler-lhe os pensamentos.
Carlos era como as miragens: carregava a sua própria atmosfera particular. Havia nele a frieza das altas latitudes, a sofisticação de quem sobreviveu à ruína e ninguém sabe a que mais infortúnios tortuosos. Com uma avassaladora tranquilidade, dirigia-se aos objetos com o mesmo tratamento natural e a mesma perícia com que se dirigia às pessoas, o que lhe dava a reputação de ser estranho. A mistura destes fatores e o facto de nunca variar as suas roupas de viagem, tornavam-no senhor de poucos amigos. No entanto, quando falava, Emília sentia um ardor ainda mais forte do que quando ia à igreja, ao ponto de frequentemente a fazer ruborescer e mesmo, como agora inadmissivelmente acontecia, lacrimejar. Embora verbais e não visuais, os seus discursos despertavam nela uma certa expetativa crítica, como a que experimentava ao ouvir os sermões, com a diferença que o padre seguia sempre uma linha narrativa lúcida, isenta de ambiguidades, da qual era possível retirar uma moral. Se os sermões eram didáticos, os discursos de Carlos eram corrosivos, importunos, e traziam-lhe à tona uma dilaceração espontânea, cuja abrangência era insuportável. Quando não eram os próprios discursos, pois nem sempre os podia compreender, era o tom da sua voz, intensa e fina, a causar-lhe o transtorno de que, à noite, ao regressar a casa, se confessava feliz por não poder escapar.


*Dante Alighieri, La Vita Nuova, II.

11 de agosto de 2014

Mas é esta a regra dos jogos do imaginário: perde-se neles aquilo que ao mesmo tempo
se conquista.

Nicole Loraux, in Maneiras Trágicas de Matar uma Mulher

10 de agosto de 2014

A voz dela continua a ressoar em mim com mais veemência do que a maioria dos acontecimentos mais importantes da minha vida. Dizia coisas que me faziam sempre olhar por cima do ombro e me deixavam perplexa quando, por fim, constatava que o destinatário era eu. Recordo com ternura as nossas conversas e continuo a ter pudor em reproduzir essas frases onde me encontrei num espelho mais belo do que eu, pois para mim a beleza era ela. Só muito mais tarde percebi que qualquer coisa em mim sustentava o seu amor de uma impassível fidelidade e que também eu era única para ela.
Não a vejo há muitos anos e, ao contrário do que pensei que sucederia, não sinto a sua falta. O que me dizia viaja comigo para onde vou, a par do silêncio que se instalou e de tudo o que aprendi com ela. A viver, creio.
Costumava pedir-me que lhe desenhasse e um dia senti uma irresistível vontade de a desenhar a ela. Desenhei um busto preenchido com flores a nascer continuamente, uma profusa confusão de flores ocultadas pelos traços delicados do seu rosto. Quando ela desenrolou o desenho fez-me o elogio mais terrível que alguém pode receber e no dia seguinte encontrei-o emoldurado, no meio das obras dos pintores que eu admirava nas paredes de sua casa. Com ela o inimaginável estava sempre a acontecer, como quando me deixou um cartão dos Simpsons em cima da cama onde o Homer dizia «surpreendes-me», quando me disse que «a questão não é essa mas sim que tu, não percebo como, continuas pura», que «hoje também foi importante para mim» e que «devias dedicar-te à escrita e a mais nada». Ou como quando a fazia chegar às lágrimas, ela que raramente ria.
Talvez tenha sido esse mesmo o caminho que nos levaria a assumir o silêncio como a única possibilidade. Há amores que só sobrevivem desatando os nós.
Sei que o meu corpo ainda recorda o esforço que tive de fazer para suportar o sufoco dos primeiros anos quando, ao ver a caravela dourada em cima dos postes de eletricidade, tudo em mim saúda Lisboa.

9 de agosto de 2014

Uma pessoa só ganha efetivamente consciência do seu grau de emotividade a ouvir ópera italiana.

Eu estava apaixonada por um rapaz que não valia um xaveco e a aperceber-me disso. Antes de desaparecer escrevi-lhe uma carta que de tão pura me fez hesitar entregar-lha. Lembro-me especialmente da última frase, que falava de animais selvagens à entrada da noite. Mas fosse como fosse, já tinha percebido que tinha queda para o abismo e a carta era efetivamente para ele. Decidi assim enviar-lhe a carta mais perfeita que conseguisse escrever. Demorei vários dias e quando ficou pronta mostrei a uma amiga para que ela, que conhecia a história, me dissesse se estaria a ser demasiado dura. Vi o rosto dela mudar enquanto lia a carta. Quando acabou devolveu-a às minhas mãos e disse muito grave: «Ele não vai perceber nada. Mas entrega-a. Pelo menos fica a saber quem tu és.»
http://martarema.tumblr.com/post/95379682580
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8 de agosto de 2014

Parte-se sempre no momento certo quando não se deixa nada para trás e se sabe que não se regressa. Cansaço de ter curvado o corpo sobre a terra, felicidade de não ter nada, nem mesmo um horizonte para a viagem. Partir sem horizonte, partir de si próprio, sem comoção nem esperança. Nem canto nem ardo como a Fénix, apenas me dispo e mergulho em águas demasiado antigas, que a tudo renovam e me conhecem.
No meu sonho da noite passada o amor era novamente relacionado a uma máquina. Eu era já muito velha quando ele finalmente a completou e, pondo um fim à minha espera, a acionou pela primeira vez, fazendo soar uma música que chegando às mais altas esferas, trouxe o meu sorriso à vigília. Impressionou-me - perturbou-me - a força desse sorriso, que não encontrou em mim resistência ainda que no meu corpo fossem visíveis as marcas do sofrimento, de todas a mais cruel sendo a do tempo que passou. Impressionou-me menos que tivesse esperado, apesar de em todo esse tempo não haver quaisquer sinais que indicassem que um dia o amor chegaria. No fundo, o sorriso que o meu rosto trazia quando acordei vinha desde aí, primeiro secreto, depois a preencher o universo, concedendo-lhe a razão que o excedia. Era bom sorrir esse sorriso, um pouco como dizer: «Agora não me chateies mais e sê finalmente o chão que és para eu dançar». Mas nem ele, perfeito que era, apagou a revolta que estes sonhos me trazem por invadirem o meu sono quando me esvaziei deles. E acordo sentindo-me violada não sei por que força que contra a minha vontade me faz continuar a sonhar.

4 de agosto de 2014

Dizem que na floresta a Fénix era ignorada pelos outros animais. Ave silenciosa, pequena, muito velha, passava o seu tempo a observar tudo o que a rodeava.
No dia em que decide morrer, a Fénix atravessa a floresta e canta pela primeira vez. Atraídos por esse som singular, todos os animais a seguem através da floresta, ficam a ouvi-la e observam-na construir a pira onde arderá minutos mais tarde.
No centro da pira a Fénix volta-se para o sol e abre as asas para terminar a sua canção, mostrando todas as suas cores. Reconhecendo que o seu tempo chegou ao fim, incendeia-se perante os seus pares, assombrados pela canção que não voltarão a ouvir.
Renasce nove dias depois para voltar a envelhecer silenciosa.
Coisas sobre o loop:

- os dias não passam.

3 de agosto de 2014

A maior história de sempre é a da Bela Adormecida. Questões de natureza, como as que são levantadas na história do escorpião e do sapo, não me mantinham acordada quando a minha mãe enfim se levantava e saía do quarto. O choque da compreensão de todos os porquês causava-me uma certa alegria, ainda que por vezes uma alegria ansiosa do futuro, ansiosa pelo momento em que pudesse ver todas essas coisas manifestarem-se aos meus olhos: o mundo tal como ele é fascinava-me. Na história da Bela Adormecida havia contudo algo que era acrescentado ao mundo. E esses símbolos intrigavam-me.
O primeiro momento está logo no início: os dons das fadas. Dons que se oferecem, poderes a que a as nossas decisões se subordinassem. Não conseguia perceber a sua origem e o seu fim e contudo toda a história estava já contada neles, apenas não acontecida. O que significava então acontecer?
O momento posterior são os 100 anos do sono em que a princesa e o seu reinado mergulham e a floresta de espinhos que os envolve. Apenas aqueles que não fazem parte desse mundo permanecem acordados e apesar de serem vários os intrépidos aventureiros, há um cuja aproximação basta para desfazer os espinhos. Isto parecia-me injusto e deixava-me com vontade de resgatar os mortos: se nem sequer teve de enfrentar espinhos, que raio de força era a desse príncipe?
Restava enfim esse país de sono, vedado, interdito, secreto, e o que haveria nele, sonhos ou pesadelos, de que não era possível acordar.
Conheci uma mulher que assim que encontrava alguém pegava-lhe nas mãos. Enquanto cumprimentava a pessoa, pegava em ambas as mãos com ambas as mãos, acariciava-as e apertava-as, como se procurasse conhecer as suas formas apenas através do tato. Tudo o que fazia com as mãos fazia como se fosse cega e, também como os cegos, nunca chegava a olhar para elas.
Durante anos fugi dela. Desde cedo, tinha ganho o hábito de esconder as mãos; muitas vezes ouvi quem o estranhasse. Geralmente tapava-as com as mangas do casaco ou da camisa mas às vezes também as enfiava nos bolsos. Quando - o que, por me trazer uma enorme angústia, era raro - vestia alguma coisa que não me dava hipótese de as esconder, cerrava os punhos e escondia os dedos, hábito que por vezes ainda me surpreende quando, apesar de mim, assim as encontro. Da mesma maneira, sonhava e continuo a sonhar frequentemente com mãos e sobretudo com as minhas mãos. No último que me lembro, estavam a cobrir-se de uma rede de pele morta e seca, palavras demasiado marcantes a contrastar com a sensação de profundo conforto que essa transformação me proporcionava.
Na altura em que andava a esconder-me dela na rua, não as arranjava. Achava-as feias e inúteis, portanto inútil também dedicar-lhes tempo. Quando a preocupação com elas se tornou excessiva ao ponto de me fazer ficar em casa para que ninguém as visse, comecei a tentar aceitá-las: uma delas, a esquerda, feminina, com dedos finos e pele macia, leve; e a direita, a que escreve, com um calo no dedo, dedos grossos e curtos, masculina, pesada. A manutenção dessa aversão por mim própria ressoava sobretudo quando encontrava esta mulher. Ambas eram inescapáveis e assustadoramente reais, precisamente como se se tratasse de um sonho.
Agora que ela faz parte da minha família, cada encontro é um teste. Há que viver a vida com algum desinteresse.
http://martarema.tumblr.com/post/95380293315/carl-theodor-dreyer-gertrud-1964 
Edvard Munch
Two people, the lonely ones
Gravura, ponta seca, roleta e placa de tinta preto-castanho, 26,67x42,86 cm, 1894

1 de agosto de 2014

Há uma semana atrás, chorei pela primeira vez por uma dor que ignorei durante 23 anos. A redenção tem uma morte lenta, como os astros.