31 de agosto de 2014

Houve uma altura em que as pessoas poupavam papel. Por nenhuma razão ligada à ecologia mas porque o papel era um bem precioso, a cujo uso era dada soberania nas suas vidas. Se ter papel em casa era prestigiante, a sua ausência nas gavetas correspondia à confirmação da singeleza, esta tratada como um sacramento. Lembrava-se assim que, material frágil de entre os mais frágeis, perante um destino comum, sabedoria e ignorância equivalem-se e que, acima da sua soberania, prevalecia ainda o imperscrutável mistério do gesto e do olhar, que nem todo o papel do mundo chegaria para esclarecer. A sua manipulação extraordinariamente exigente manteve-se intacta, como um estilete invisível, mesmo quando o seu valor decaiu, por via do crescimento da sua produção e da democratização do seu uso, ou seja, da escolaridade obrigatória. Cuidar do papel que se possui tornou-se ao tempo, em si, um fator meritório mas o elitismo dos mais instruídos alimentava-se dos contornos poéticos que descobria num cartucho de castanhas a arder. Lembro-me ainda, e não tenho assim tantos cabelos brancos, de ser zombada por me ter cortado numa folha que tinha acabado de retirar de um maço de papel para impressora. E com a mesma vivacidade me lembro de ter vigiado o sangue a aparecer, ocultando ao mesmo tempo o desejo de que a pele ali guardasse uma pequena cicatriz.