12 de agosto de 2014

Emília serviu a bebida com o ar de uma pessoa obrigada a viver entre animais de índole inferior. De olhos postos no balcão, satisfeito por ver algumas gotas transbordarem o copo, Carlos levou-o à boca e disse, enfático e sem a menor hesitação:

- Apparuit iam beatitudo vestra.*

Reinava o silêncio. Para lá da porta da taberna, aglomerados dispersos de árvores, vistas bruscas e irregulares de caminhos sinuosos e uma odiosa e desolada imensidão de terra branca e seca, repleta de bestas e de homens selvagens. Emília esforça-se para que ninguém veja os seus olhos humedecerem. O contraste e a irregularidade da frase fazem-na corar e procura esconder rapidamente o seu choque. Para onde foi levada naquele instante, que tão fugaz e fulgurante passou e que faz agora por esquecer? Como se nela houvesse um dispositivo que acionado a abalasse, dela desconhecido e sobre o qual não tem poder. Que arrogância ter entrado naquela aventura. Tinha pretendido ser pioneira para vir a descobrir que os corpos e a sua lei são tiranos incompassíveis, que nunca oferecem nem paz nem justiça. Considerava-se uma pessoa emocionalmente reservada, distanciada das aflições que consumiam as mulheres com quem conversava no mercado. A verdade é que nem ao cão que com frequência por ali aparecia à procura de comida e a quem os clientes tinham dado nome, se tinha afeiçoado, o que não lhe causava surpresa ou pena. Dentro da sua caixa, via os dias passar perdida em clarividências proféticas que nunca se realizavam e em sonhar com os detalhes sumptuosos de uma casa que, um dia, haveria de ser a sua: a toalha de renda branca, a colcha de lã vermelha, o vaso de cerâmica para ramos de flores que uma vez murchas seriam ainda mais sedutoras, a mesa de madeira com migalhas de um bolo acabado de cozer. Esses detalhes e essas profecias, funcionavam como uma linguagem nova, obscura o suficiente para que pudesse sentir-se protegida por ela. E sempre que Carlos aparecia, parecia ler-lhe os pensamentos.
Carlos era como as miragens: carregava a sua própria atmosfera particular. Havia nele a frieza das altas latitudes, a sofisticação de quem sobreviveu à ruína e ninguém sabe a que mais infortúnios tortuosos. Com uma avassaladora tranquilidade, dirigia-se aos objetos com o mesmo tratamento natural e a mesma perícia com que se dirigia às pessoas, o que lhe dava a reputação de ser estranho. A mistura destes fatores e o facto de nunca variar as suas roupas de viagem, tornavam-no senhor de poucos amigos. No entanto, quando falava, Emília sentia um ardor ainda mais forte do que quando ia à igreja, ao ponto de frequentemente a fazer ruborescer e mesmo, como agora inadmissivelmente acontecia, lacrimejar. Embora verbais e não visuais, os seus discursos despertavam nela uma certa expetativa crítica, como a que experimentava ao ouvir os sermões, com a diferença que o padre seguia sempre uma linha narrativa lúcida, isenta de ambiguidades, da qual era possível retirar uma moral. Se os sermões eram didáticos, os discursos de Carlos eram corrosivos, importunos, e traziam-lhe à tona uma dilaceração espontânea, cuja abrangência era insuportável. Quando não eram os próprios discursos, pois nem sempre os podia compreender, era o tom da sua voz, intensa e fina, a causar-lhe o transtorno de que, à noite, ao regressar a casa, se confessava feliz por não poder escapar.


*Dante Alighieri, La Vita Nuova, II.