21 de janeiro de 2014

Como as coisas (em princípio) duram mais do que nós, sabem mais do que nós sabemos delas; são portadoras das experiências que tiveram connosco e são — efectivamente — o livro da nossa história aberto diante de nós.

W. G. Sebald, O Caminhante Solitário


Vinte de Abril de 1980, quatro anos após o meu nascimento obstétrico, numa tarde de terça-feira de muita chuva.
Os preparativos para a festa duraram semanas. A minha mãe fez-me o vestido, pela mão dela, azul, com laços iguais para o cabelo. Fizemos juntas a lista dos convidados e eu fiz pessoalmente o convite na escola. Escolhemos o bolo, com fios de ovos. Na véspera não dormi e no dia estava mais nervosa do que uma noiva. A expectativa de que não aparecesse ninguém devorava-me.
Veio a família, os amigos da escola, alguns vizinhos com quem costumava brincar e todos me traziam presentes. Eu ia recebê-los à porta, agradecia a presença e os presentes, sorria. Nada podia falhar. Eu pensava: «Estas pessoas estão todas aqui por minha causa. Porquê?» Não conseguia perceber porque é que alguém, para além dos meus pais e da minha irmã, poderia querer celebrar o meu nascimento. As pessoas não tinham sempre o que fazer? Porque é que isso lhes interessava? E essa celebração, seria genuína ou apenas mais um artifício entre os outros que estava habituada a ver? Tinha sido obrigada a convidar alguns amigos que não queria convidar e receber tantos presentes parecia-me exagerado. Era a ferros que eu me esforçava por aceitar e entrar num modelo que não reconhecia, de que não gostava: não era nada daquilo que eu queria fazer. Mas o que queria eu fazer para festejar? E porque tinha de festejar?
À medida que os convidados começavam a chegar, o silêncio extinguia-se. Toda a quietude ficava abruptamente refém do movimento imprevisto e constante das pessoas cuja intimidade, à excepção de alguns membros da minha família, eu não partilhava. Então, eu começava a emudecer.
A princípio, tentava disfarçar rapidamente a ausência da fala com sorrisos e depois com as fórmulas aprendidas «Obrigada», «Que lindo», «Sim». Mas pensava que era transparente, e que todos podiam ver a minha incapacidade. Por isso a decadência da linguagem transformava-se rapidamente numa espiral onde eu era levada, como água a sair por um ralo de banheira.
Neste dia, a certa altura, parei no corredor, mais escuro que as outras divisões da casa, para poder responder às solicitações interiores que me agitavam. Não sabia de onde vinham, era apenas um chamamento intenso, insistente, de uma intensidade crescente. Senti-me confusa mas parar a meio do corredor foi como aceitar o convite que constantemente me era lançado para outra dimensão. E essa escolha era uma afirmação: «Eu estou aqui e este tempo, ínfimo que seja, é meu. É isto que eu quero fazer para festejar.» Nessa dimensão, justamente, o tempo não era cronológico. Difusa, a consciência que tinha de mim própria transformou-se numa imagem de muitos Eus, cuja grande maioria eu reconhecia e desconhecia ao mesmo tempo. Como uma prótese, o meu olhar vagueava entre eles. Todos me falavam. Todos habitavam espaços onde me esperavam. Alguns traziam avisos de perigo. Diziam «Lembra-te» e mostravam-me cores, objectos, indicadores dos caminhos que deveria acautelar ou evitar. Outros, lugares preenchidos pela felicidade. Podia distinguir um som ao longe, porventura uma música que, como um instrumento, eu poderia, se quisesse, aprender a tocar mas que estava ainda por inventar. O meu coração batia tão forte e tão rápido que pensei estar doente. Pensei também que se falasse, haveria de ter uma voz grave, quase tanto como a de um homem, mas não ousei emitir qualquer som. Sabia que era um monstro, não queria assustar ninguém. Atrás de mim estava o quarto onde as crianças brincavam, à minha frente a cozinha, onde estavam a mesa de doces e o bolo de aniversário, ainda intacto, à minha direita as escadas em mármore, sem barreira, que numa curva nos levavam ao rés-do-chão e que me contavam eu ter descido uma noite sonâmbula sem cair. A luz mais forte vinha do quarto, onde havia uma varanda voltada para a face da casa. A luz da cozinha passava através da porta para o quintal onde depois dos muros altos havia céu. E a luz das escadas no fim do corredor era amarelada, ténue, cruzada por sombras ágeis, como que a confirmar a minha rêverie ou a minha enfermidade. Sei que me custou regressar. Quis correr para a cozinha, furtar-me a ferros àquele rapto oferecido, mas alguém falou comigo antes de me decidir a dar o primeiro passo. Não me esforcei para responder, apesar de ter tido plena noção que a seriedade que o meu rosto revelava, o transformava por completo num sentido enigmático. Voltei costas e avancei, o medo começava também a regressar. Mas assim que cheguei à cozinha vi o bolo, símbolo do momento em que eu tinha nascido, o símbolo que tinha trazido todas aquelas pessoas a nossa casa, e tive de sair novamente. No quarto as crianças importunavam-me mas pelo menos a minha irmã estava lá.
Na altura de apagar as velas, todos se reuniam à minha volta. A minha irmã ficava ao meu lado, seria a segunda a apagar as velas e a ouvir cantar os parabéns, antes de cortar o bolo (era uma casa muito democrática, até nos dias de nascimento). Mas enquanto as pessoas cantavam, a olhar para mim, batendo palmas e sorrindo, eu começava a chorar. Isto acontecia todos os anos, no dia do meu aniversário, enquanto me cantavam os parabéns. Quando neste dia vinte de Abril de 1980 me perguntaram porque é que eu chorava, respondi: «Porque assim eu vejo que vocês gostam de mim.»
Depois fiquei muito melancólica. Perguntaram-me se eu queria brincar, respondi que não. Fui para cima da cama, com alguns presentes, e fiquei debruçada sobre o vazio que a alegria me tinha deixado. E sobre a colcha das flores.



Obrigada ao Bruno Béu pela ajuda que me deu a explicar o que lembro.