Como as coisas (em princípio) duram mais do que nós, sabem mais do
que nós sabemos delas; são portadoras das experiências que tiveram
connosco e são — efectivamente — o livro da nossa história aberto diante de nós.
W. G. Sebald, O Caminhante Solitário
Vinte de Abril de 1980, quatro anos após o meu nascimento obstétrico, numa tarde de terça-feira de muita chuva.
Os
preparativos para a festa duraram semanas. A minha mãe fez-me o
vestido, pela mão dela, azul, com laços iguais para o cabelo. Fizemos
juntas a lista dos convidados e eu fiz pessoalmente o convite na escola.
Escolhemos o bolo, com fios de ovos. Na véspera não dormi e no dia
estava mais nervosa do que uma noiva. A expectativa de que não
aparecesse ninguém devorava-me.
Veio a família, os amigos da
escola, alguns vizinhos com quem costumava brincar e todos me traziam
presentes. Eu ia recebê-los à porta, agradecia a presença e os
presentes, sorria. Nada podia falhar. Eu pensava: «Estas pessoas estão
todas aqui por minha causa. Porquê?» Não conseguia perceber porque é que
alguém, para além dos meus pais e da minha irmã, poderia querer
celebrar o meu nascimento. As pessoas não tinham sempre o que fazer?
Porque é que isso lhes interessava? E essa celebração, seria genuína ou
apenas mais um artifício entre os outros que estava habituada a ver?
Tinha sido obrigada a convidar alguns amigos que não queria convidar e
receber tantos presentes parecia-me exagerado. Era a ferros que eu me
esforçava por aceitar e entrar num modelo que não reconhecia, de que não
gostava: não era nada daquilo que eu queria fazer. Mas o que queria eu
fazer para festejar? E porque tinha de festejar?
À medida que os
convidados começavam a chegar, o silêncio extinguia-se. Toda a quietude
ficava abruptamente refém do movimento imprevisto e constante das
pessoas cuja intimidade, à excepção de alguns membros da minha família,
eu não partilhava. Então, eu começava a emudecer.
A princípio,
tentava disfarçar rapidamente a ausência da fala com sorrisos e depois
com as fórmulas aprendidas «Obrigada», «Que lindo», «Sim». Mas pensava
que era transparente, e que todos podiam ver a minha incapacidade. Por
isso a decadência da linguagem transformava-se rapidamente numa espiral
onde eu era levada, como água a sair por um ralo de banheira.
Neste
dia, a certa altura, parei no corredor, mais escuro que as outras
divisões da casa, para poder responder às solicitações interiores que me
agitavam. Não sabia de onde vinham, era apenas um chamamento intenso,
insistente, de uma intensidade crescente. Senti-me confusa mas parar a
meio do corredor foi como aceitar o convite que constantemente me era
lançado para outra dimensão. E essa escolha era uma afirmação: «Eu estou
aqui e este tempo, ínfimo que seja, é meu. É isto que eu quero fazer
para festejar.» Nessa dimensão, justamente, o tempo não era cronológico.
Difusa, a consciência que tinha de mim própria transformou-se numa
imagem de muitos Eus, cuja grande maioria eu reconhecia e desconhecia ao
mesmo tempo. Como uma prótese, o meu olhar vagueava entre eles. Todos
me falavam. Todos habitavam espaços onde me esperavam. Alguns traziam
avisos de perigo. Diziam «Lembra-te» e mostravam-me cores, objectos,
indicadores dos caminhos que deveria acautelar ou evitar. Outros,
lugares preenchidos pela felicidade. Podia distinguir um som ao longe,
porventura uma música que, como um instrumento, eu poderia, se quisesse,
aprender a tocar mas que estava ainda por inventar. O meu coração batia
tão forte e tão rápido que pensei estar doente. Pensei também que se
falasse, haveria de ter uma voz grave, quase tanto como a de um homem,
mas não ousei emitir qualquer som. Sabia que era um monstro, não queria
assustar ninguém. Atrás de mim estava o quarto onde as crianças
brincavam, à minha frente a cozinha, onde estavam a mesa de doces e o
bolo de aniversário, ainda intacto, à minha direita as escadas em
mármore, sem barreira, que numa curva nos levavam ao rés-do-chão e que
me contavam eu ter descido uma noite sonâmbula sem cair. A luz mais
forte vinha do quarto, onde havia uma varanda voltada para a face da
casa. A luz da cozinha passava através da porta para o quintal onde
depois dos muros altos havia céu. E a luz das escadas no fim do corredor
era amarelada, ténue, cruzada por sombras ágeis, como que a confirmar a
minha rêverie ou a minha enfermidade. Sei que me custou
regressar. Quis correr para a cozinha, furtar-me a ferros àquele rapto
oferecido, mas alguém falou comigo antes de me decidir a dar o primeiro
passo. Não me esforcei para responder, apesar de ter tido plena noção
que a seriedade que o meu rosto revelava, o transformava por completo
num sentido enigmático. Voltei costas e avancei, o medo começava também a
regressar. Mas assim que cheguei à cozinha vi o bolo, símbolo do
momento em que eu tinha nascido, o símbolo que tinha trazido todas
aquelas pessoas a nossa casa, e tive de sair novamente. No quarto as
crianças importunavam-me mas pelo menos a minha irmã estava lá.
Na
altura de apagar as velas, todos se reuniam à minha volta. A minha irmã
ficava ao meu lado, seria a segunda a apagar as velas e a ouvir cantar
os parabéns, antes de cortar o bolo (era uma casa muito democrática, até
nos dias de nascimento). Mas enquanto as pessoas cantavam, a olhar para
mim, batendo palmas e sorrindo, eu começava a chorar. Isto acontecia
todos os anos, no dia do meu aniversário, enquanto me cantavam os
parabéns. Quando neste dia vinte de Abril de 1980 me perguntaram porque é
que eu chorava, respondi: «Porque assim eu vejo que vocês gostam de
mim.»
Depois fiquei muito melancólica. Perguntaram-me se eu
queria brincar, respondi que não. Fui para cima da cama, com alguns
presentes, e fiquei debruçada sobre o vazio que a alegria me tinha
deixado. E sobre a colcha das flores.
Obrigada ao Bruno Béu pela ajuda que me deu a explicar o que lembro.