29 de setembro de 2014

Junto à janela, pensava no medo. Pensava que talvez não fôssemos senão o abandono das coisas que podíamos ter sido. A mãe disse Fecha essa porta e voltou a ficar escuro. Não havia sinal de vida. Não havia nenhum sinal de que a vida pudesse trazer consigo alguma redenção. Sentia-se vacilar perante a ideia de resistir com o tempo e tornar-se independente. Tudo isso lhe parecia uma farsa e portanto hesitava. Os sapatos novos e o prato de comida que lhe mostram no final do dia confundem-se, tudo tem o mesmo rosto cansado. Gostaria de fechar a porta a esse trânsito interminável e concentrar-se no funcionamento silencioso da fábrica, como um médico que se fascina pelo que está vivo na ferida. Queria saber mais sobre esse movimento, de uma insaciabilidade imaculada. Mais ninguém parecia dar-lhe importância e isso continua a ser para ele um mistério. Também ninguém podia imaginar quanta desintegração já havia nele nesse dia, em que brincava com um carrinho junto à janela e sonhava com uma embarcação triunfante, às largas no vácuo. O que mais gostava de fazer era de olhar para ela. Não pertencia a ninguém. A madeira era intangível. Tinha fendas através das quais brilhava intensamente. Vogava com uma alegria delirante num horizonte indiviso. Sobre as velas, de veludo carmesim, a loucura pairava, anónima. Era uma embarcação real e inadequada, como a fome, que desprezava tudo à exceção do vento. Assim que, apenas por segui-la com o olhar, já estava embarcado sem saber. Mais tarde falaram-lhe pela primeira vez sobre o fundo do oceano e no mesmo dia mergulhou em direção a ele. Mas só quando muitos anos depois o alcançou pensou por instantes na veleidade daquele impulso. Revoltado e cego, acocorado numa escuridão terna, constatou que era ainda um animal, uma besta que se serve e se enche mas não pode tocar em nada.