1 de setembro de 2014

A sensação dominante em quem tem asco dos animais é a do medo de ser reconhecido por eles quando se lhes toca. Aquilo que, no mais fundo de nós, nos horroriza, é a consciência obscura de que em nós alguma coisa vive, tão pouco estranha ao animal que nos causa asco que ele a poderia reconhecer. Todo o nojo é originalmente nojo do contacto.

Walter Benjamin, Imagens de Pensamento


Quando era criança, tinha tanto medo de cães que bastavam uns segundos diante de um para que o animal reagisse, invariavelmente, atacando. Se alguns ataques seguidos me fizeram começar a receá-los e mesmo a conseguir antecipar a investida no olhar do animal, outros não deixaram de me surpreender, como no dia em que descia uma ladeira de bicicleta e um pequeno cão preto sentado no passeio saltou do seu sossego para vir enfiar os dentes na minha perna, que já não largou apesar de pedalar energicamente, fazendo-me desistir do meu equilíbrio para me defender. Guardo portanto pequenas marcas de várias mordidas, nenhuma suficientemente grave que tivesse convencido o meu pai a desistir de me transformar numa amante do melhor amigo do homem.
O meu pai sempre teve uma paixão por animais, especialmente por cães. Conheci-lhe vários em diferentes fases da vida, uns rafeiros outros de raça, uns comprados outros oferecidos por amigos, uns pequenos outros grandes. Era frequentador de concursos e exposições de canicultura, onde eu também era chamada a ir. Entrava no parque de diversões mais aterrador do mundo forçada a controlar o meu pavor, para que não se tornasse em pavor do meu próprio pai: de o desiludir e de, em consequência, ver a sua fúria abater-se. A pressão era tanta que tenho agora a sensação de mal respirar.
Em minha casa sempre houve cães. Na maioria das vezes ficavam presos na cozinha ou no quintal, mesmo quando eram considerados meigos. Mas essas trelas nunca eram suficientemente curtas e muitos desses dóceis animais tiveram de sair de casa por me atacarem constantemente. Houve alturas em que o meu medo ameaçava atingir proporções incontroláveis e eu não dormia pensando que no dia seguinte teria de passar novamente a meros centímetros do bicho para entrar na cozinha e tomar o pequeno almoço. Os dias eram preenchidos por provas constantes, como esta. Talvez conseguisse passar, talvez não. Talvez conseguisse fazer uma festa se me obrigassem, talvez não. Talvez o animal me ignorasse, talvez me rosnasse. Numa coisa, no entanto, nunca acreditei: que iria deixar de ter medo. Apesar de todas as tentativas do meu pai e dos anos que passavam, tudo o que conseguia era tentar fingir o mais possível e o melhor possível. Mas esse medo, sentia-o definitivo. E de que tinha eu medo?
A pergunta angustiou-me anos a fio. De que tinha eu, afinal, medo? Ter medo de um grande Retriever de Labrador negro pode até, se puderem usar da vossa benevolência, ser compreensível. Mas que medo se pode ter de um cão de pequeno porte cujos latidos não chegam a acordar as moscas? Mesmo quando ganhava coragem para falar nisso, as minhas explicações, francas e cuidadosas, não eram compreensíveis, ou pelo menos não surtiam consequências. Os cães foram aparecendo e ficando, até que finalmente um deles me mordeu tantas vezes que a minha mãe ganhou coragem para formular a frase inteira diante do meu pai: «Não podemos ter o animal aqui em casa.» E eu tinha pena do animal ter de sair, um cão rafeiro de porte médio a quem chamámos Bolinhas, cujo dono anterior tinha maltratado. O meu pai explicava-me que era para se defenderem que atacavam. Explicava-me que era por pressentirem o meu medo que reagiam e que se eu não demonstrasse medo, nada acontecia. Mas eu tinha medo na mesma e não percebia. O meu medo não tinha tido origem numa mordida de cão. Era anterior. Não acontecer nada não fazia sentido, pois o meu medo original não era medo do ataque. Na minha inocência, eu pensava: «Se eles o pressentem, bem posso pretender demonstrar que não o tenho.» O que o meu pai me queria fazer perceber, concluía então, era que podia transformar o meu medo, podia erradicá-lo. Erradicar o meu medo definitivo. Creio que poderei ter considerado ser essa a mais incontestável prova de amor, que é a mais excelente de todas as coisas. E havia que prová-lo. Só podia ser essa a razão para que, depois do Bolinhas, tivéssemos continuado a ter cães e não um gato, como eu tanto pedia ao meu pai. «Um dia trago um gato!», dizia a rir-se e fazendo-me rir, aumentando a minha expetativa, mas voltava sempre com um cão.
À entrada do inferno está um cão com três cabeças que sofre de enxaquecas contínuas. Não sei onde a li mas nunca mais esqueci a frase. Quando pensava no meu medo começava por pensar nisto, existe um cão à porta do inferno cujo olhar múltiplo está cego pela dor. Tinha esperança de poder desvendar certo segredo a partir dela, pois me parecia ser idêntico àquilo que o meu pai me tentava explicar. Tinha também um certo fascínio por este animal mitológico, cuja dor, que eu bem sabia ser terrível, era exponencial e ininterrupta. Quem me negaria que todos os cães pudessem sofrer do mesmo mal? E que o inferno não seria a origem ou o destino de todos eles? Sem dúvida, pelo visto, era o lugar.
Continuei a tentar modificar o medo muito depois da separação dos meus pais. Assisti a inúmeros programas televisivos sobre cães, li livros sobre treino de cães, ouvi atentamente os donos falarem sobre a sua personalidade. Mas os truques não funcionavam comigo e os cães continuavam a pressentir o medo, desatando a latir ou atacando. Já crescida, cheguei a decidir que simplesmente não voltaria a ser mordida nem nenhum cão me faria atravessar a estrada para fugir dele: se algum me atacasse, sofreria de volta o meu ataque impiedoso. Afinal, agora eu era maior que eles, pensamento que funcionou até me encontrar num pequeno apartamento ao lado de um Grand Noir, que felizmente era o cão mais pachorrento do mundo e se estava nas tintas para se eu tinha medo dele ou não: com medo ou sem medo, ninguém naquela casa tinha dúvidas sobre quem tinha mais poder e pese muito embora essa realidade, quando o vi a primeira vez ele dormia ao lado do berço de um recém-nascido. Não fiz qualquer confissão sobre o meu horror pois percebi, não sem alguma incredulidade, que ele ainda me dominava. O último cão que tivemos, uma cadela Teckel de pelo curto chamada Boneca, conseguiu contudo estabelecer comigo uma amizade admirável. Nunca me atacou, pelo contrário, defendia-me dos outros cães. Mas rosnou-nos uma vez, quando teve filhos, e respeitando o aviso a minha mãe disse-nos que não podíamos entrar onde ela estava. Quando morreu, atropelada por um bêbado ao volante, sofri como se tivesse sido uma pessoa a morrer. Nem ter tomado a decisão nem a Boneca, erradicaram o medo ou o tornaram mais compreensível. Continuo a saber que posso voltar a ser atacada a qualquer momento e a pensar nisso de tempos a tempos. Aprendi contudo a controlar a angústia mas não sei até que ponto essa terá sido uma aprendizagem positiva. Viver sem angústia é viver cautelarmente, e a excessiva cautela com a vida é uma patética fraude da inteligência. Quando há um ano atrás vi a frase do Benjamin, percebi que tinha encontrado a resposta para o meu medo justamente porque ela deu lugar a uma angústia nova.