Ser contemporâneo é responder ao apelo que a escuridão da época faz para
nós. No Universo em expansão, o espaço que nos separa das galáxias mais
distantes está crescendo a tal velocidade que a luz de suas estrelas
nunca poderia chegar até nós. Perceber, em meio à escuridão, esta luz
que tenta nos atingir, mas não pode – isso é o que significa ser
contemporâneo. O presente é a coisa mais difícil para vivermos. Porque
uma origem, eu repito, não se limita ao passado: é um turbilhão, de
acordo com a imagem muito fina de Benjamin, um abismo no presente. E
somos atraídos para este abismo. É por isso que o presente é, por
excelência, a única coisa que resta não vivida.
Giorgio Agamben
Tenho memórias vagas desse dia e contudo é uma das memórias mais
pungentes que frequentemente me assaltam. Eu tinha uns sapatos novos.
Eram azuis escuros, de pele rija, encaixavam na perfeição apertando no
tornozelo. Foi um presente. Já os tinha estreado numa ocasião especial
anterior a este dia, hoje era dia de escola. Sabia que não podia usá-los
e mesmo assim pedi à minha mãe para os levar para o colégio. Insisti
duas vezes apenas e ela cedeu. Sim, teria todo o cuidado. Retirei os
sapatos velhos dos pés, calcei os novos e fui. Não sei porque regressei
sozinha a casa nesse dia. Poderia eu ter apenas seis anos? Aproximava-se
uma tempestade, as freiras estavam a reter as crianças que não tivessem
os pais à porta para aguardarem abrigadas. Não sei porque assim quis,
lembro-me do meu coração bater tanto que quase doía, consegui
escapulir-me sozinha e seguir para casa através do Largo do Rossio. O
deserto. A escuridão abateu-se, era tremenda. O vento e a água eram mais
fortes do que poderia ter imaginado. O meu corpo ia sendo empurrado,
dava pequenos saltos involuntários, nem sempre em frente. A água inundou
tudo em segundos. A lama, poças de água que eram piscinas. O chapéu de
chuva ser arrancado da minha mão e voar. A bata e o meu vestido de lã por baixo ficaram encharcados.
Pensei nos meus livros, havia que protegê-los. Quando finalmente cheguei
a casa não tinha um sapato.
A minha mãe estava furiosa. Porque não
tinha esperado. Subitamente olha para os meus pés. Eu olhei também.
Tinha umas meias brancas. Fiquei quieta, muda.
Onde está o sapato?
Não sabia responder.
Naturalmente a minha mãe não acreditou. Porém eu dizia a verdade:
quando a minha mãe me perguntou pelo sapato foi como se começasse a
regressar de muito longe. Fiquei a olhar para os meus pés, o esquerdo calçado, o direito descalço, atónita, emudecida. Constatei que não me lembrava de parte do
caminho. Pensei que tinha passado muito tempo, milénios, Eras. Senti
necessidade de olhar para o espelho. Mas os meus pés pareciam-me inalterados e
para além da ausência do sapato a minha mãe não tinha notado nenhuma
diferença. Fiquei muda. Sabia que ela nunca acreditaria em mim mas não tinha outra
explicação a oferecer para além da incógnita. Eu
própria queria saber o que tinha acontecido ao sapato. O meu belo sapato azul escuro novo em folha.
Sempre quis escrever
sobre esta recordação. Mas não sei como. Algo me constrange a tentar
desvendar o que aconteceu naquele tempo branco e me impede de o
substituir através da ficção. A estranha angústia do enigma gravou-se em
mim no momento em que a minha mãe me perguntou Onde está o sapato.
Acreditei que tivesse acontecido algo de sobrenatural. E essas eram as
coisas de que não se falava. Mas como, se eu própria não me lembrava
quer do mensageiro quer da mensagem? Um recorte de tempo tinha-me sido
retirado, era tudo. E portanto a espera instala-se: um dia vou perceber,
um dia vou-me lembrar. Anos mais tarde, a propósito de um acidente de carro que tive, descobri que os acidentados perdem sempre um dos sapatos. Cheguei a investigar sobre isso, vi fotografias dos pés das vítimas a que de facto faltava sempre um sapato. Como temos sempre teorias para tudo, também havia uma teoria qualquer para explicar isso, que não me trouxe contentamento. Procurei refazer o caminho até à exaustão, nada.
A última coisa de que me lembro, é de estar debaixo de um fabuloso céu
negro a ser empurrada, o chapéu voar, proteger a pasta. Mas isto foi
ainda no início do largo. Depois toquei à campainha.