13 de setembro de 2014

Da mesma maneira que uma pessoa não nasce com o corpo que escolheu, também não escreve sobre o que quer. Bem posso passar a vida à procura de uma ideia para uma novela, a mão há-de sempre fugir-me para outro lado, com um desejo próprio, que me supera. Foge para ali disposta a desintegrar-se e daí parece não querer sair. Toda a minha aprendizagem serve no fundo para lhe dar ouvidos, me tornar submissa. Sempre fui demasiado rebelde. A insatisfação devora-me e se tivesse de confessar algum pecado teria certamente de ser o da impaciência.
Porque nos lembramos do que nos lembramos? Porque nos escolhem esses movimentos, cujas imagens se apoderam de qualquer coisa em nós, preenchendo-o na perfeição? Queria lembrar tantas outras coisas, irresgatáveis, e contudo lembro-me apenas do dia em que, saindo do anexo no quintal dos meus bisavós, me deixei ficar sozinha para trás e olhei para a escuridão no interior a partir da soleira da porta. Sabia que não voltaria ali muitas vezes, suponho que isto acontece depois da morte da minha bisavó. Não percebia porquê, os meus bisavós estavam a secar, como as flores. Eu olhava para este anexo como se fosse a minha casa, pensando que um dia esta seria a minha casa. Ao fundo, no canto do lado direito, sobre uma pequena mesa feita da própria parede, estava sempre um púcaro onde o meu bisavô fazia a cevada. As brasas estavam apagadas naquele dia mas a cal das duas paredes que faziam o canto era negra há muito. Isto era belo. Todo o anexo guardava o cheiro do fogo apagado. A única luz que havia era natural, entrava pela porta e através de uma minúscula janela nem um metro depois da porta na parede do lado esquerdo, cujos vidros estavam muito sujos e ao lado da qual estava um pequeno móvel antigo de casa de banho, branco, onde eu e a minha irmã guardávamos brinquedos. Tudo estava muito sujo dentro do anexo, tudo tinha muito pó, guardavam-se aqui coisas onde não se mexia há muito mais tempo do que o tempo que eu tinha, era o que eu pensava, e protegiam-se outras da chuva no inverno, como a cadeira de lona e a bicicleta do bisavô, homem por demais silencioso, que me intrigava, que gostava de fumar cigarros de milho a olhar para o nada, usava uma bengala que diziam ter sido esculpida por ele e nunca despia a samarra. Portanto para além do cheiro da cinza havia também o cheiro da humidade do pó e uma escuridão admirável que me deixava numa espécie de êxtase, como acontece com as promessas. Por vezes no inverno sentávamo-nos ali os quatro, os meus bisavós e a minha irmã, no canto. O meu bisavô ia acrescentando galhos para que o fogo, que nos aquecia e iluminava, não se apagasse. Houve momentos em que gostaria de ter expulso o meu bisavô deste canto, para que fosse eu a colocar os galhos, a ajeitar o púcaro e a servir a cevada nas canecas. Neste dia deixei-me ficar para trás porque tinha percebido que as promessas são coisas que não se cumprem e que aquela nunca seria a minha casa: iria deixar de ver o seu interior e deixaria de brincar no quintal dos bisavós, onde a minha irmã escavava pequenos buracos, misturava a terra com água e pedras, e depois me oferecia dizendo que era um bolo. Um quintal cheio de vasos de flores, muros antigos, relva, uma oliveira, uma tangerineira, roseiras de Santa Teresa, um poço, uma hera.

Escrevi isto há uma semana e zangada não terminei. Ontem escrevi à minha irmã:

Preciso de memórias, para escrever. Tu tens mais. De que é que te lembras assim de repente?

Perguntou-me de que altura e pedi-lhe para me dizer a primeira coisa que lhe viesse à cabeça. Respondeu:

Lembro-me de brincarmos às descobertas da casa. Quando a mamã saía... Víamos as gavetas todas. Lembro-me da avó me ter batido porque te cortei com um canivete, no quintal da avó velhota. Dos buracos com terra e água. Da barraca do avô velhote e ele sempre a fumar e a ver o fogo. Do chá dentro de uma caneca verde do bordalo e pão com marmelada, chamuscada. De ter comido uma malagueta do quintal. De «amarfanhar» as rosas de Santa Teresinha na mão e levar dentro do bolso da bata para o colégio. De ter medo das galinhas da avó. E dela a matar os coelhos... À paulada. Dela dizer Vamos à deita que o sono está à espreita. Queijo não o como nem o vejo. Dela cantar o tenho dois amores do Marco Paulo enquanto fazia o almoço. E de assobiar. Estava sempre a cantar. De fazermos tricôt com as agulhas dela quando estava a chover. Eu nunca conseguia fazer nada, mas adorava. Na casa dos avós velhotes andávamos mais no quintal. Eram só coisas velhas dentro do anexo. Havia um móvel branco preso na parede que tinha coisas nossas.

Perguntei-lhe:

Como é que se chamava a bisavó?

Não sei.

Também não.

Nem ele.

Nem eu.

Mas a titi sabe.

Pois. Não faz mal. Só quero trabalhar com o que recordamos.