6 de agosto de 2017

nos minutos que separavam o colégio de casa habituei-me a procurar caminhos novos, estar atenta aos detalhes e usufruir de um silêncio reconfortante. começávamos o dia com orações e os crucifixos, freiras e esculturas de santos eram omnipresentes. a pureza de espírito e a vida monástica eram preconizadas e, entre esse mundo e o exterior, a violência, o mutismo e a solidão marcavam a diferença. não precisei de muito tempo para descobrir que o meu espírito não era puro mas sim desafiador, provocatório e barroco, estimulado pela observação do que há de mais trivial no mundo em contraponto ao que, embora quotidianamente apregoado, não podia experienciar. mesmo quando pensei em ser freira, era como se o desígnio fosse uma dança invisível onde era protagonista e, assim, mal a madre diretora me perguntou, aos seis anos, se tinha sido chamada, respondi ruborizada que não, ao que ela sorriu e me fez um sinal de cruz na testa dizendo que podia repeti-lo sempre que estivesse triste. não senti nada, nenhuma manifestação de uma entidade superior, nenhum alívio, nenhuma esperança e, se é verdade que voltei a repeti-lo numas poucas vezes de maior angústia, também é verdade que rapidamente me dispensei de ter sido abençoada, consciente de que o significado do gesto era vazio. era nesses momentos de libertação que o meu futuro se abria, desconhecido e vasto. com o passar do tempo, mais as minhas amigas pareciam devotas, indo à missa todos os domingos e participando com entusiasmo nas atividades dos escuteiros e das guias — onde havia mais orações a rezar —, mais me desinteressava, acabando por fim por fazê-lo com sacrifício até conseguir convencer a minha mãe a não ir. antes, contudo, cheguei a chefe nas guias e fugi do desejo dos rapazes nos escuteiros, ocasiões de protagonismo que já chegavam esgotadas. em casa, entretanto, desenhava, lia tudo aquilo a que podia deitar a mão, ouvia música. quando o meu pai se foi embora, a relação com a minha mãe tornou-se conflituosa, de modo que uma violência foi substituída por outra, esta, no entanto, onde tentava ter uma voz. tornei-me uma adolescente revoltada, diligente e astuta, com apenas um objetivo em mente: ir-me embora. sonhava conhecer o mundo e balançava entre fazer justiça e desobedecer aos códigos. nisto, surgiu a escrita, que, apesar de já me acompanhar há algum tempo, começava a impor-se. precisamente por essa razão, na véspera de sair da cidade para ir estudar, destruí todos os cadernos, temendo levar para a minha fuga alguma recordação daqueles anos. queria escrever, mas livre da minha história oficial, onde a banalidade não podia ser resgatada.