16 de dezembro de 2016

Com o recheio da casa já dentro de caixotes, olhei pela janela. Estava um dia branco, no horizonte apenas alguns telhados se destacavam, o rio, ao longe, mal se via por entre a bruma. Chovia torrencialmente a intervalos curtos. Nenhum dos pássaros abrigados na copa densa da nespereira no jardim da casa que ficava do outro lado da rua cantava. A ideia de mudança, que tantas vezes me tinha paralisado de medo, concretizava-se agora sem grande dificuldade. Afastei-me da janela como se pudesse ignorar as saudades que me atormentavam e procurei racionalizar para não sentir: o que é uma casa? As paredes ou o seu recheio? A localização ou aquilo que fazemos dentro dela? O tempo que aí vivemos ou aquilo que trazemos para dentro dela, durante o tempo em que estivemos fora? Não pude dar resposta a nenhuma das perguntas. Era como se a casa fosse uma entidade com quem mantinha uma relação, agora em rutura. Havia por isso uma tensão instalada entre nós, como há entre os casais que não estão de acordo em separar-se. A casa tinha vontade, emoções, uma linguagem que apenas eu podia reconhecer e entender. E tudo nela tentava convencer-me a ficar. No entanto, tal como já havia acontecido, mal eu decidia ficar, ela silenciava-se. Desta vez, era definitivo. Olhei para o chão no canto ao lado esquerdo da janela da sala durante muito tempo e com paixão. Não havia nada lá, nem sequer a ausência de alguma coisa que entretanto tivesse sido removida. Era apenas um pedaço de chão, um minúsculo espaço focado pelo meu olhar, sem qualquer razão. E nele havia paixão. Dei três passos em frente, baixei-me e toquei-lhe. Durante alguns minutos que me pareceram horas, eu e a casa estávamos novamente ligados para sempre e o movimento dos dias, ainda que brando, regressava. Pressenti em mim uma leve, mas clara, hesitação: haveria como voltar atrás? Desfazer os caixotes, voltar a colocar as roupas nos armários, os livros nas estantes, a comida na dispensa, a cama, o sofá, a mesa e as cadeiras nos seus lugares. Não encontrei motivo para o negar e ao mesmo tempo conhecia bem a irreversibilidade desta mudança. Ainda assim, de alguma forma misteriosa, a casa e eu estávamos acima dela, sabendo que era juntos que devíamos ficar. Apercebi-me então, com uma satisfação de que se teme o desenvolvimento, que de certo modo nada nos podia separar. Levantei-me, em fúria contra esse pressentimento. Decidi começar a deitar fora caixotes, mesmo sem saber ao certo tudo o que continham, pois apenas tinha escrito neles nomes genéricos como LIVROS, ROUPA ou COZINHA, e embora soubesse que dentro de dois ou três caixotes estavam também cadernos, objetos que estimava e me eram úteis, alguns deles caros, de que eventualmente sentiria falta mais cedo ou mais tarde. Apesar disso, determinado, peguei num, desci as escadas e deixei-o junto ao caixote do lixo do outro lado da rua, um pouco mais abaixo. Quando voltei as costas senti uma liberdade ácida, como se eu próprio estivesse a ser consumido. Decidi então ser metódico, comecei a abrir os caixotes e a escolher o que queria deitar para o lixo dentro de um saco de plástico preto. Pouco a pouco, a minha ligação à casa desvanecia. Ela não se manifestou.