8 de abril de 2015

vejo-me a assumir vertiginosamente uma infantilidade plena. na medida em que sou cada vez mais perfeitamente pueril, inocente, ingénua e na medida também em que, por outro lado, desenvolvo — ou desenvolve-se, já que é um movimento amplamente involuntário —, um profundo desligamento do mundo. este movimento é em parte sentido como emancipação, serenidade, tranquilidade e, no mesmo peso, sentido como fragilidade, ameaça ou instabilidade.
que o sou — infantil — «cada vez mais perfeitamente», significa que o sou melhor. por exemplo: não se pode ser melhor uma coisa que se deixou de ser, porque isso implicaria voltar a ser o que já deixou de ser e portanto necessariamente, ser uma coisa nova. o tempo é o ónus da nossa humanidade, nada há que o inverta, belisque, reverta, pare. o amor pode confundir-nos com ele e esse é o limiar. ora, estou numa fase da vida em que não só afirmo que sou uma coisa que deixei de ser, como acrescento que o sou melhor e a seguir coloco um ponto final.
o que há de mais puro e subtil nos corpos não é atingível nem mesmo pela doença. é por isso que os corpos caem quando morrem, porque o devir é interrompido. o que a existência tem de perecível é isto portanto, o seu devir (e serão aliás muito poucas as situações em que um corpo está tão violentamente exposto ao devir como na doença), tudo o resto pode perdurar. todas as mortes são inconclusivas. o rigor que se espera da morte, nomeadamente nas expetativas de revelação que as pessoas alimentam sobre ela, não existe, porque o rigor é contrário àquilo que se termina, isto é, não existe rigor fora do movimento, não existe rigor onde não existe mudança e tudo o que a compõe, como volume, sensibilidade, ritmo. os fins são sempre remotos. ao contrário da existência, que é aquilo que é porquanto é, o fim é aquilo que nunca é enquanto não é.