28 de abril de 2015

uma amiga conta-me ao telefone que a segunda feira é difícil para ela. sem a interromper, ouço-a falar de um estado de torpor de que não consegue libertar-se e que, diz, normalmente desaparece no dia seguinte, tão inexplicavelmente como apareceu. «fico sentada na cama apenas a olhar mas sem pensar. vejo as mãos, olho para as mãos; vejo a dobradiça, olho para a dobradiça. e o tempo passa, assim, até que a certa altura percebo que o tempo passou e eu não me mexi». aterrorizada, enquanto a oiço revejo-me de pé à entrada da sala, minutos antes de receber a chamada, sem conseguir dar um passo para a frente ou para trás embora perfeitamente consciente da indolência, ao longo de, percebi já ao telefone com sobressalto, quase uma hora. há qualquer coisa de reconfortante em não estar louco sozinho. é como naquela velha máxima, «vamos ao fundo mas vamos todos juntos ao fundo.»
estou a tomar o pequeno almoço quando percebo que esse torpor está a chegar e olho através da janela, procurando uma fuga. um raio de sol maciço pousa sobre a roupa branca no estendal e faz ricochete na peça de metal de uma das molas. o azul do céu faz lembrar um dia de verão, brilhante e pesado. não se ouve nada. quando volto a ter consciência de mim, reparo que sorrio tenuemente, mas que o nó na garganta se mantém. como posso honrar tanta beleza?
já no final do dia, decido enfim sair de casa. levo um livro na mão. é um livro que quero muito ler, que tenho medo de ler. já me aconteceu o mesmo antes com outros livros que, tal como este, apesar de terem sido escritos por outrem, existem em mim. talvez tenha medo de ser desapontada. talvez não queira que o escritor tenha falhado onde eu falho e vou protelando a abertura das páginas enquanto seguro o livro nas minhas mãos com o coração extasiado, como quando vamos ao primeiro encontro de um amor que acaba de começar. e então ele diz «Olhei para a fachada, a fachada, a fachada» e eu resplandeço. escreve «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e tenho vontade de rir, porque a perfeição dá vontade de rir. chama a um poema BREVE PAUSA NO CONCERTO DE ÓRGÃO* e sou eu. estou sentada no café numa hora de vazio, leio nesse livro «De repente escureceu, como quando cai uma bátega» e aquilo é a minha jangada em mar alto (alto porque não tem fundo, ou não sei se tem, mas mar não deve ser porque não vejo água e o horizonte é apenas isso, horizonte). corro para casa, exaltada, feliz, como se tudo fosse possível. mas para que quero eu tanto escrever? aqui há tempos fui a uma conferência onde um escritor dizia que só acreditava em escritores que publicam, que mostram, que copiam, que procuram dialogar ativamente com o seu tempo e com os seus contemporâneos. na altura aquilo deixou-me a pensar «se calhar é isso que me faz falta, ser um pouco menos invisível», mas nunca cheguei a alterar alguma coisa, na verdade, creio que nem sequer cheguei a querer alterar. gosto deste pequeno buraco húmido onde não vem ninguém. não tenho a força necessária para deixar um livro no mundo e está bem assim. não quero usar a escrita para nada. qualquer ruído me é insuportável e um livro não pode ser publicado sem ruído. é como se caminhasse precisamente em sentido contrário a esse: quero escrever sobretudo quando até eu deixar de ler o que escrevo. sempre achei que mal o esperasse, o ímpeto desapareceria mas, pelo contrário, parece agravar-se. aconteceu por acaso, nada disto se presta à compreensão. como um pintor que procura acertar na cor, mantenho simultâneas a dificuldade e o desejo de dizer. existe em mim uma correspondência perfeita entre a asfixia e a libertação, entre a agonia e a aurora. seja como for, é a única vontade, a razão pela qual ainda me vou interessando por perceber alguma coisa do mundo e por permanecer nele. por pobre razão que seja, não precisa de validação.

*Versos e título de poemas de Tomas Tranströmer.