10 de abril de 2015

a tendência da criação contemporânea que radica no envolvimento com uma comunidade o objetivo em si da produção de uma obra de arte (as chamadas práticas artísticas comunitárias), soa-me sempre como os sinais de alarme emitidos por aqueles que temem o fim dos tempos e pretendem resgatar a fé à força, antes que chegue o derradeiro momento do Juízo Final. até determinado período, muito recente, a arte contemporânea dirigia-se e convocava apenas e somente o indivíduo. Freud terá sido um dos maiores responsáveis por esta passagem ao individual e ao seu caráter singular e, pelo menos desde os anos 60, tornou-se comum afirmar que há tantas leituras de uma obra de arte quanto forem os indivíduos que a observem (sendo o conceito de observação importante, por permitir abranger a noção de interação). ao dizer que cada um de nós é um artista, Joseph Beuys, levou ao limite essa afirmação, conferindo ao comum, de resto tal como John Cage, destaque individual, ou seja, caráter único, excecional. se antes a beleza era tida por raridade, apenas acessível e uma elite, num instante imprevisto e improvável, passou a estar disseminada numa multitude de acontecimentos que, embora eles próprios impermanentes, tornaram o seu acesso possível de modo permanente. a arte conceptual, em particular, veio contudo estabelecer uma diferença: a partir do momento em que a obra se pensa a si própria, passa novamente a pertencer a uma elite, detentora das suas chaves e códigos. mas sem deixar de se dirigir ao individual, pelo contrário, ainda através da exacerbação do potencial individual. desde a escolha dos materiais, à composição da forma, tudo na obra passou a constituir um código próprio inultrapassável. Susan Sontag chega a declarar que a arte tende para a anti-arte. que, tal como a atividade do místico se dirige à ausência de Deus e ao silêncio para além do discurso, também a arte tende para a eliminação da imagem ou do objeto, substituindo o acaso pela intenção. a inescapável mediação entre a criação individual, de dimensão espiritual, e o caráter material da arte, acaba por surgir ao artista como uma negação da transcendência que procura, nada lhe restando senão não criar.
se pensarmos que na Idade Média a ideia de um eu separado da comunidade nem sequer existia, e que, séculos mais tarde, mesmo um Louis XIV afirma que o Estado é ele, e não o contrário, percebemos que há casos em que nem a História ajuda, pois o que se perde fica perdido com o que se ganha — e uso aqui o verbo perder fora da sua conotação negativa, pois a perda é irremediável tanto quanto o ganho é passageiro. pelo menos desde a arte rupestre até ao período barroco, as obras de arte confundem-se, senão com a própria comunidade, através das suas vivências, pelo menos com a sua espiritualidade, através dos seus credos, espiritualidade que não era, pois a própria definição o impedia, vivida individualmente.