24 de abril de 2015

Estive a ver a minha cronologia do Facebook para trás e, ao contrário do que normalmente acontece quando recordo coisas que disse ou escrevi, fiz tanto sentido que a determinado momento me vi confinada a um corredor de tempo com um lapso temporal único. A sensação de estar finalmente em identificação comigo mesma, provocou-me uma vertigem intensa, daquelas que tocam o coração e tornam familiar a profundidade da paisagem. Contudo, a vertigem não só era insuficiente para que pudesse deixar subitamente de estar de acordo comigo, como me transmitia conforto. Com uma inflexível estabilidade, a vertigem era esse conforto.
Só conheci três pessoas que falavam sem diferenças entre si e o que diziam. Um discurso limpo, sem ilusões.
A primeira vez que aconteceu eu andava pelo bairro alto sozinha, e entrei num bar com uma livraria de filosofia onde por vezes se realizavam conversas. Estava cheio, o bar era recente e estava na moda. Uma ténue nuvem de fumo branco começava a instalar-se dentro das paredes cor de rosa. Dirigi-me ao balcão sem dinheiro mas confiante. Conhecia o barman, tinha sido meu professor. Era uma daquelas pessoas que gostam de seduzir portanto nada seria tão fácil como conseguir uma imperial de graça. Voltei-me para o bar meio imerso na escuridão e atravessei-o lentamente. Passei por alguns livros no chão ao lado de uma cadeira de vime e parei à porta para fumar um cigarro. Estava sozinha. É uma recordação forte a desta solidão, talvez me sentisse sozinha. Lembro-me que foi nesse dia que conheci a Filipa. A Filipa tinha acabado de chegar de Paris, mas agora eu ainda não a conhecia. Era uma mulher morena, cabelo negro, o nariz muito fino, olhos chinesados. Ainda me lembro do cheiro dela, a amêndoas. Tinha pequenas borbulhas no rosto, perto do nariz, o cabelo muito liso e negro, os olhos escuros, uma voz rouca e suave, no tom preciso da voz que eu adorava nas mulheres. Tinha acabado de se divorciar, como eu tinha acabado de me separar, como eu tinha acabado de chegar de Paris e portanto percebia coisas como xenofobia, violência e machismo mesmo sem se falar delas. A primeira coisa que me disse, depois de se dirigir a mim entre a multidão, deixando três rapazes pendurados a meio da conversa no seu encalço, foi: «Queres vir fumar uma?». Lembro-me agora que era uma boa sensação de solidão: entrar no bar lentamente, sem ser notada, atravessá-lo, ver tudo, dar um golo na cerveja, ninguém me conhecer, eu não conhecer ninguém, poder sair dali sozinha para outro lugar. Era uma liberdade assombrosa. Estávamos no início da primavera, o ar tinha um cheiro doce, nessa noite bastante carregado por causa do calor. Eu era tão jovem, e sabia-o. Não me lembro exatamente como começou, sei que a certa altura o ex-professor anuncia com muita pompa alguém que vai falar. Fiquei feliz por afinal haver qualquer coisa nessa noite pois a música e as vozes cessariam. Sem prestar atenção ao que dizia, sentei-me no chão, diante da cadeira da pessoa que ia falar, que tinha o cabelo comprido grisalho, sobrancelhas negras e um rosto longo com muitos sinais. Não me lembro de nada do que disse e nunca o consegui esquecer. Uma a uma, as suas palavras penetravam o meu corpo como sopros de vida, dirigiam-se ao meu coração como setas se dirigem ao centro do alvo e fulminavam as minhas hesitações. Achei que ele era um mago. E como é que as pessoas não o sabiam, como é que não andavam multidões atrás daquele homem, quem era aquele homem? Perguntei-me se todos estariam a ouvir o mesmo que eu, achei que no cérebro dele devia haver qualquer coisa muito bela e não compreendia que não se falasse disso todos os dias como se fala em belos pores do sol. Revoltava-me a possibilidade de ser a única a sabê-lo, a ouvi-lo. Quando se calou, abriram espaço a perguntas e não fui capaz de mexer uma pestana para articular uma palavra. Não se podia dirigir a palavra a um ser daqueles por uma razão trivial e eu não tinha nada para dizer a não ser «não te cales», o que, por timidez, não disse, com receio de denunciar a espécie de admiração em que estava imergida. Tentei saber quem era, pois não tinha prestado atenção à apresentação inicial, mas o tempo acabou por apagar o nome, ficando o rosto e a profissão. Quando saí do bar, procurei uma explicação para o que tinha acabado de acontecer. Que espécie de discurso era aquele? Não pude encontrar resposta. Eu queria falar assim. E ali estava, diante de mim e em plena evidência, a confirmação de que tinha estado certa ao decidir regressar. Reencontrei-o há uns dias, por acaso, mal ele soubesse a certeza — e enfim, a vontade — que mantive todos estes anos, de um dia voltar a ouvi-lo.
O segundo encontro ocorreu vários anos depois, mas igualmente num dia de boa solidão. Fui ouvir uma conferência ao calhas, sem sequer conhecer o tema ou os oradores. A última pessoa que falou é a pessoa mais audaz que conheci na minha vida. Um homem velho, de cabelo grisalho, um pouco despenteado, gordo, com um fato completo de fazenda castanho, muito sereno, que durante toda a conferência tinha estado em silêncio, olhando em redor com delicada atenção aos pormenores. Embora verdadeiro, o que ele disse entrava em choque frontal com aquilo que a grande maioria das pessoas que ali estava defendiam, por desmascarar a fragilidade da estrutura e revelar a fraude dos seus argumentos. Na verdade tratava-se de uma coisa muito simples, que estava à mostra e que qualquer criança compreenderia. Falou pausadamente, olhando para a plateia do anfiteatro, não leu nada. Tinha as mãos pousadas em cada um dos braços da cadeira e, encostado a ela, mostrava-se descontraído. Ao observá-lo, ocorreu-me que poderia estar em casa a ver os netos brincar. Contudo, o que disse foi tão forte que quebrou todas as minhas resistências e, aninhada na cadeira azul, eu cedi. A simplicidade, a pobreza, a ousada escolha dos conceitos, a clareza comovente das suas palavras, tornaram evidente que estava a viver um momento único na minha vida. Logo depois do primeiro silêncio, cuja duração confirmava a veracidade daquilo que todos tinham ouvido, as reações começaram, precipitadas, com a prepotência esperada. As vozes sobrepunham-se, havia quem procurasse acalmar este ou aquele e preservar as aparências. Absolutamente indiferente à confusão instalada, vejo-o voltar a cabeça na minha direção e olhar diretamente para mim, que não tinha desviado os olhos dele por um instante. Não olhou por acaso, não encontrou por acaso o meu olhar enquanto olhava para as pessoas na plateia, olhou sim deliberadamente, como se tivesse estado sempre consciente da minha presença, secreta e marginal, naquela cadeira azul. Olha-me nos olhos e assim fica, no meio da confusão, assim ficamos, a olhar um para o outro, praticamente até a sala ficar vazia. Sobre o meu rosto impassível, as lágrimas caiam como rios que transbordam. Nesse dia escrevi hoje foi um dia extraordinário. Kairos — «essa hora estranha» — que impele ao silêncio e à atenção. essa hora em que nos vemos, tu e eu, aqui e agora, vivos.
A terceira pessoa que mencionei foi na realidade a primeira. Foi também nessa tarde que ri, com ela, o melhor riso da minha vida, pois finalmente alguém tinha respondido à minha obstinada pergunta.