21 de abril de 2015

Na minha rua ao meio-dia
um homem gordo
de fato cinzento e gravata
com óculos
sussurra a palavra
silêncio
inclinando ligeiramente a cabeça na minha direção
quando nos cruzamos
como se quisesse cumprimentar-me
ou ameaçar-me
embora não o conhecesse.
Isto aconteceu
e eu não tenho ninguém a quem possa contá-lo
porque ninguém senão tu
poderia
acreditar em mim
e tu não estás.
Ouviste bem?
perguntarias
desconfiado
e eu responder-te-ia que ele passou do meu lado bom
a escassos centímetros do meu ouvido
numa rua sem trânsito ao meio-dia
e que
por muito que repetisse mentalmente
a frase
estas coisas não acontecem
esta tinha acabado de me acontecer.
À tarde estive muito tempo sem saber o que fazer
sentada a olhar para as minhas mãos
até que me levantei e comecei a fazer muitas coisas
estando esta carta entre elas.
Estava no quiosque da rua das árvores
aquele
quando pensei
primeiro em escrever e depois em escrever-te
sobre isto
mas ao levantar-me não sabia como
e agora pelos vistos nem me interessa.
Pouco antes disso
quando cheguei
pedi um carioca ao balcão
e enquanto o tiravam da máquina
perguntei três vezes
quanto custava
e
sem resposta
possivelmente porque dentro do quiosque
o ruído era tal
que as vozes eram absorvidas
sobretudo a minha
desisti de repetir a pergunta
e esperei.
O rapaz poe a chávena à minha frente
e outro rapaz aparece à frente da chávena
a mexer na caixa registradora
pergunto
quanto custa
e o segundo rapaz olha para mim
mas fica muito espantado
como se estivesse a ver uma assombração
e não me diz o preço do café
não diz nada
só olha para mim
até que me rio
baixinho
a olhar nos grandes olhos dele
a olhar para mim
e enfim
antes que eu pudesse corar
eis que ele sorri de volta
como uma criança
inocente
e me oferece o café.
Talvez eu já não possa corar senão quando sonho
porque quando estava sentada
a beber o carioca
e a ler
um livro chamado
A Casa das Belas Adormecidas
de um japonês chamado
Yasunari Kawabata
pensei
meu deus
ainda bem que te riste!
só que já não era no rapaz que eu pensava
mas sim na minha vida
ou em como a vivi.
Na altura não percebi porque pensei aquilo
assim
e queria muito perceber
um daqueles pensamentos que não sabemos de onde vêm
que nos surpreendem por serem novos
mal acabados de nascer
e as coisas novas têm
o prazer intenso
do êxodo
que não se pode ignorar
e sobe-se um degrau
ou desce-se
isso não importa
o que importa é que nesse prazer
se perde a capacidade de corar
que envelhecemos
sentimos o vento na cara
uma voz
muito bem definida
como carvão novo
sobre papel virgem
ressoa no corpo
e sem nossa intenção
apesar de ser nossa
alastra
na terra no espaço na noite que rompe.
Então levantei-me
e a caminho de casa
pensando no que tinha para escrever
perguntei-me se esse pensamento
estaria relacionado com o livro
porque o livro fala de um velho
chamado Eguchi
cujas recordações são aparentemente arbitrárias
mas depois não são.
Senti-me desesperar por não saber de onde vinha
aquele pensamento
onde ouvi
com o estômago
todas as gargalhadas
verdadeiras
que dei na minha vida.
Só agora
que já me perdi dentro da escrita
posso dizer que talvez perceba
e sim
foi por culpa do livro
do velho Eguchi
que olhava para a pele branca das raparigas novas
e se recordava da filha que mais amava
ou de uma amante que nem tinha sido das mais importantes
porque o rapaz sorriu
e não conseguiu falar
enquanto olhava para mim.
Reparei entretanto
que estou a escrever sem vírgulas
que o horizonte
para lá da janela
ficou totalmente branco
e como é capaz de chover
apanhei a roupa.