30 de julho de 2014

Tenho saudades do toque da fábrica fiação e tecidos e do ar fresco, luz oblíqua, que o acompanhavam. Contra a fealdade e a violência, construí um mundo secreto feito de pormenores inoperantes, comuns. Servi-me da matéria do mundo para me proteger do mundo e alojei-me onde as contingências sucedem, por ser o único lugar tangível. A cada recusa das formas, aperfeiçoei o movimento do sim mas do não só conheço a amplitude e a serenidade que medeiam entre mim e a morte. Não preciso de explicações e não gosto de explicar. Ter de explicar alguma coisa é para mim o suficiente para me por em fuga para outras paragens. Assim tem sido e não se pode ser quem se não é. Gosto de pedras e do vento que as dissolve, como deuses que se fossem esquecendo sem zelo da humanidade. Ouço-me desde o tempo em que ainda não tinha nascido, o mesmo em que te sorri pela primeira vez. Quando anoitece, como agora, escrevo, e como tenho muito sono de manhã, sonho com as manhãs que foram feitas para escrever. Tudo está bem. Se não te dou mais notícias para além destas é porque continuamente descobrimos que não precisamos de palavras para nos entendermos. Que ironia.

29 de julho de 2014


Até Salomão, o Amado, cercou Jerusalém de muralhas e recebeu tributos em troca de uma sabedoria que os profetas declararam ser divina.
Até Salomão, o Justo, deixou que a ambição e o amor maternos, que não retêm mácula, o levassem ao trono, purificando-o do sangue daqueles que por direito o reclamaram.
Até Salomão, o Pacífico, arrancou da terra os ciprestes para revestir o chão do Templo, dando-lhe o seu próprio nome.
A Rainha de Sabá deixou-se deslumbrar pelo seu palácio e glorificou o Rei de Israel mas o seu reinado soçobrou perante o maior de todos os enigmas.
Nenhum império prevalece sem o trunfo da hipocrisia.
Alguém parte uma laranja em silêncio, à entrada
de noites fabulosas.
Mergulha os polegares até onde a laranja
pensa velozmente, e se desenvolve, e aniquila, e depois
renasce. Alguém descasca uma pêra, come
um bago de uva, devota-se
aos frutos. E eu faço uma canção arguta
para entender.
Inclino-me para as mãos ocupadas, as bocas,
as línguas que devoram pela atenção dentro.
Eu queria saber como se acrescenta assim
a fábula das noites. Como o silêncio
se engrandece, ou se transforma com as coisas. Escrevo
uma canção para ser inteligente dos frutos
na língua, por canais subtis, até
uma emoção escura.

Porque o amor também recolhe as cascas
e o mover dos dedos
e a suspensão da boca sobre o gosto
confuso. Também o amor se coloca às portas
das noites ferozes
e procura entender como elas imaginam seu
poder estrangeiro.
Aniquilar os frutos para saber, contra
a paixão do gosto, que a terra trabalha a sua
solidão - é devotar-se,
esgotar a amada, para ver como o amor
trabalha na sua loucura.

Uma canção de agora dirá que as noites
esmagam
o coração. Dirá que o amor aproxima
a eternidade, ou que o gosto
revela os ritmos diuturnos, os segredos
da escuridão.
Porque é com nomes que alguém sabe
onde estar um corpo
por uma ideia, onde um pensamento
faz a vez da língua.
- É com as vozes que o silêncio ganha.


Herberto Helder, Ou o Poema Contínuo.
Desde que se continue a ouvir a algazarra das crianças atrás dos muros das escolas, saberei onde está a beleza.

28 de julho de 2014


                               






























Frederick William Burton  
Hellelil and Hildebrand, the Meeting on the Turret Stairs 
Aguarela e guache sobre papel, 95,5x60,8cm, 1864

27 de julho de 2014

Eu que já estive a bater a bota um par de vezes e não sei como nem porquê não bati, que já sofri das doenças mais inesperadas, que já passei pelo enigma da dor física e descobri forças inexplicavelmente íntegras, fico paralisada quando sinto a mais ligeira impressão no ouvido.
Escondidos do calor daquela tarde, seis amigos escolhem filmes que não chegam a ver. Falar sobre o futuro, subitamente demasiado próximo, é a única coisa que na verdade todos querem fazer. Dali a um mês começa o último ano de escola, mais um para a maioria, decisivo para R., que talvez por isso não quer conversar sobre o futuro. Sobre ele tudo o que precisa de saber é que o tempo está a chegar ao fim: mais ninguém a pode reter naquele lugar. Um último esforço e a tagarelice e a asfixia cessarão. Nada mais importa, nem mesmo o que suceda a partir daí, desde que não volte. Sentada no sofá, espera o tempo passar refugiando-se no silêncio. «O que tens?», «Nada», que tu possas entender, acrescenta para si, pois mais ninguém parece dar-se conta que aquela tarde é uma prisão.
O nome dele numa conversa paralela fá-la voltar a cabeça e tendo-o ouvido claramente, deseja voltar a ouvi-lo. Não sabia de quem era aquele nome. O que havia num nome que era apenas um nome, e até agora desconhecido, ao ponto de a fazer voltar a cabeça?
Pergunta sobre o que estão a falar, explicam-lhe que é sobre um professor, um professor muito bom, que dá belas aulas. Duas ou três frases bastam para que R. saia da casa a correr, sem se despedir e sem dar explicações a ninguém. Debaixo do sol tórrido, pergunta-se agora que malefício traz aquele nome para que saiba a importância que terá para ela. Ao passar à frente da escola fechada, pensa que as listas de professores ainda nem estão feitas. Pensa que não percebe mas que sabe. Pensa que aquilo não é normal, está a ter uma alucinação, talvez tenha febre. Sempre que pensa, observa como através de um fino, discreto, fio, uma tranquilidade invariável se mostra: uma certeza. A verdadeira razão da sua perturbação, começa então a compreender, não está no facto daquele ser um tempo prévio aos acontecimentos, um nome prévio à pessoa ou sequer uma súbita claridade no meio da sombra a que se habituou. R. está apenas admirada por ser uma certeza tão pura.

26 de julho de 2014

À porta dos ricos desacelera-se o passo, o silêncio interrompe a conversa, as cabeças voltam-se para a casa, o jardim, as janelas fechadas. Sobre o que pensarão? Nos que se escondem lá dentro? Na casa colossal, suas divisões, recheio, sons e cheiros? No jardim, fresco e profundo, e nos animais que o frequentam? Queria saber que silêncio é este. Este. Com a duração de uma casa, despercebido, partilhado, que pode interromper uma conversa, uma frase, um pensamento, sem que se perca o fio à meada e que permanece nos rostos quando no final do muro o ritmo acelerado do andar regressa. Não sei se é desejo, curiosidade ou desgosto o que arrasta os olhares para o chão ou para o vazio no momento a seguir. Talvez uma mistura dos três. Sei que o silêncio, este, nunca é interrompido.
Lembro-me de uma casa assim. Pouco depois de começar a descer a ladeira começava também o muro, alto e vermelho, com um bosque por trás que continuava até chegar cá abaixo, onde havia uma abertura, a única, que dava acesso justamente à entrada principal da casa. Através do portão com ferrugem a comer a tinta verde, via-se à direita uma passagem para o bosque, a porta da frente, algumas janelas, e uma casa completamente coberta de hera. Embora fosse a mais difícil de subir, escolhia aquela ladeira para poder espreitar lá para dentro. E o que pensava eu? Em como havia de descobrir uma maneira de entrar naquele bosque. Ao longo do muro, ouvia por vezes corujas cantar. Parei muitas vezes para admirar a fachada coberta de hera enublada pela obscuridade do bosque, perguntando-me como é que aquilo acontecia, que planta era aquela feita para cobrir uma casa. Era a minha definição de riqueza, ter aquela planta agarrada às paredes, que cada ano crescia mais, a subir pelas paredes, a cobrir uma casa inteira, à exceção do telhado (e porque não também o telhado?). Admirar aquela casa era também pensar no tempo: de quanto tempo seria feita esta coisa extraordinária que eu estava a ver agora e ano após ano vi em mudança?
Nunca consegui descobrir uma forma de entrar, o que é o mesmo que dizer que nunca tive coragem de entrar. Um dia apanhei o portão fechado. Lembro-me de ter tido medo, de me perguntar o que teria acontecido. A casa parecia muito velha, a precisar de cuidados. Talvez tivessem todos morrido. Perguntando aqui e ali, fiquei a saber que estava à venda. Eu já não vivia lá perto nesta altura e já trabalhava. No dia a seguir a essa notícia, joguei no euromilhões. Depois alguém a terá comprado e cortaram a hera. Não a cortaram toda, o que apesar de tudo me alegrou e não cortaram as árvores como tinha temido. Há muitos anos distante, continuo a ter medo de a voltar ver e sobretudo, mantenho ainda a esperança de lá entrar. Agora sou eu esta casa, coberta de hera, a ver o tempo passar.
Em vez de guerra ou conflito, o Público chama loucura ao que se está a passar em Gaza. Seja lá o que isso for, parece-me mais justo do que tudo o que até hoje li sobre o termo.
Quatro homens estão sentados na esplanada do café de um bairro de subúrbio. Um quinto está em pé e fala com uma garrafa de cerveja na mão. Os quatro homens ouvem o seu monólogo sem nunca dizer palavra mas acompanhando a conversa através de gestos, expressões faciais e sons.

- E eram ciganos. Eram todos ciganos. Ela era cigana. Aquilo era cá uma mistura. Que raça...! Eram de um lado pretos e do outro ciganos.

Faz uma pausa. Olha para a frente, à primeira vista parece estar a olhar para o homem sentado à sua frente mas na verdade está a olhar para o vazio. Depois continua:

- Ah e mais! A mãe dela era prostituta.

O que se subentende é que as putas são uma raça. Todos esboçam um sorriso enquanto gesticulam para o lado e olham uns para os outros e para as pessoas perto da entrada do café. Aproxima-se um outro homem. O falador dá-lhe uma palmada por trás do ombro para o cumprimentar mas sem nunca parar o recém chegado diz-lhe:

- Não me toques.

Há um momento de silêncio pesado. O falador fixou o olhar no recém chegado e de risonho passou a sisudo. Todos esperam a sua reação. Começa a dirigir-lhe piadas por meio de perguntas que não recebem resposta, enquanto o recém chegado acende um cigarro em pé perto da porta do café e me observa como se eu não o estivesse também a ver. Com o cigarro pendurado nos lábios, finalmente esboça um sorriso e responde-lhe qualquer coisa entredentes. Entre a sua chegada e a minha partida, nunca chegou a olhar para ele.

25 de julho de 2014

24 de julho de 2014

Agora vou continuar a ler os meus velhos diários. Afinal não os vou rasgar.

Etty Hillessum, Diário 1941-1943, 28 de julho, 1942, oito e meia da noite.
Tive uma sensação estranha há pouco ao ouvir a minha voz. Como se finalmente tivesse conseguido afinar o tom para dar a nota certa.

22 de julho de 2014

O cheiro a cera no edifício de habitação das freiras, onde raras alunas entravam e cujos recantos eu conhecia bem. O chão de madeira escura brilhava de uma ponta à outra, por vezes uma freira de joelhos no chão passava num recanto a dar lustro com um pano de lã cinzenta. No guichê da entrada havia telefones negros que quando tocavam podiam ouvir-se cá fora no pátio. Os quartos das freiras, no primeiro andar onde até eu me surpreendia por me deixarem subir. Local de reclusão, de cada um dos lados do corredor os quartos sucediam-se, quase todos iguais: uma cama, uma mesa de cabeceira, uma mesa de camilha ou uma secretária, uma ou várias cadeiras, uma estante. Tudo aquilo me fascinava por ser tão diferente do mundo exterior. Uma poética de clausura, de silêncio, de disciplina e de sobriedade, do ascetismo, da moderação, da frugalidade, de uma alegria com origem na modéstia e da simplicidade. Eram estas as razões que me faziam amar aquele lugar. Perante elas, porém, o que eu sentia era uma paixão veemente que mal conseguia gerir. Tinha o delírio de que naquelas coisas havia uma verdade minha e de poder explicar o que via e sentia, que me parecia em tudo contrário à frugalidade, ao ascetismo e à moderação. A fé estava ausente desse delírio. Eu não sabia nada de Deus. 

Diário, 23 de janeiro de 2011.

21 de julho de 2014

Tarde de verão amolecida pelo silêncio e pela solidão. Pegava na bicicleta e saía para onde não me deixavam ir. O carreiro das cobras ia dar à autoestrada, talvez por isso. O meu corpo não era o de uma criança nem o de uma adolescente mas as portas iam-se abrindo. Entrava no carreiro com uma certeza felina, nítida, como uma visão. A terra seca levantava pó à minha passagem e de cada lado havia campos de cultivo a perder de vista, uma casa em ruínas à direita e duas frondosas filas de árvores e arbustos selvagens. No inverno a lama era tanta que havia sítios onde não conseguia passar, obrigando a que subisse a margem e caminhasse mal equilibrada sobre os arbustos. Moldadas na terra, as marcas de pneus da passagem dos tratores continuavam visíveis ao longo do verão. Mas eu pensava que talvez ninguém me pudesse ver: levantava o queixo, estendia o pescoço, abria os ombros. Quando chegava ao fim, um mundo desprotegido, agressivo, a grande incógnita onde eu queria embarcar: para Lisboa vai-se pela esquerda.

20 de julho de 2014

Um dia vou começar uma história com esta frase: No tempo em que o papel era uma matéria preciosa...

19 de julho de 2014

Na Madragoa as pessoas são coscuvilheiras, trigueiras, falam a gritar mesmo quando estão umas ao lado das outras, há buracos na estrada e nos passeios até à Estrela, falta de contentores de lixo e muita merda de cão a contornar. Mas no verão as pessoas sentam-se em bancos à porta dos cafés a conversar, os velhos sentam-se à porta de casa ou ficam a falar à janela de um lado para o outro da rua, as raparigas novas sentam-se em degraus a olhar para os telemóveis e falam em surdina umas com as outras, levantando os olhos quando os rapazes passam à frente delas para ir buscar a bola, e há crianças a brincar na rua, muitas crianças, em ruas que ficaram enfeitadas desde o Santo António. O rio é ali em baixo, de vez em quando passa uma gaivota ou ouve-se a sirene de um barco. Gosto de os ouvir passar mas não quero ir a mais lugar nenhum.
Ontem quando me deitei estava contente por ter escrito, ainda que ciente de todas as falhas, imperfeições e de todas as coisas que publico embora precisem ainda de muito tempo de trabalho. Hoje nem sequer consigo reler o que escrevi e a par de um duplo sentimento de rejeição, tenho plena consciência que a única coisa sensata a fazer seria apagar o blogue inteiro.
Quando Lora pergunta a Annie, moribunda, o que se passa com a sua filha, esta responde-lhe Your daughter has a real problem, ao que Lora contrapõe, desmentindo, que Susie tem tudo e que Your daughter has a real problem.
O que está presente nesta frase, já no final do filme, não é só a diferença de panorama que a Imitação da Vida (1959, Douglas Sirk) implica, é também a revelação de uma hostilidade mantida para lá das aparências, de uma perante a outra, da branca perante a preta, da dona perante a escrava. Uma hostilidade
incompassível nas suas demonstrações que guarda subtilmente a sua prepotência cruel, cirurgicamente aplicada mas aplicada em permanência, até mesmo para lembrar o moribundo.
We shall overcome, dizia ele. Oh yeah.

18 de julho de 2014

As horas da minha infância foram maioritariamente preenchidas pela leitura, em casa e na biblioteca da Vila. A minha mãe mandava-nos ir brincar no parque ou na rua e eu ficava a ler atrás da porta da entrada de casa, até à hora em que a minha irmã regressava, suada e suja, e me chamava para entrarmos as duas ao mesmo tempo. Percorria as estantes da biblioteca, escolhia livros ao acaso, outros com referências ao autor, outros ainda porque me interessava saber mais sobre um determinado assunto, e por vezes lia apenas partes ou podia ficar muito tempo com apenas um livro. Muitos livros foram lidos porque apareceram no meio destas buscas de outros livros. Não sei dizer o que me atraía neles mas essa atração era inexorável. E eu cedia-lhe sempre imediatamente.
Havia contudo prateleiras na biblioteca a que não podia aceder, os livros para os adultos, a que apenas conseguia ir deitando a mão mediante uma espera: no ano que vem. Daqui a quatro anos. Mas em casa era raro ouvir dizerem-me Esse não, tão raro que só me lembro de ter acontecido uma vez. Portanto li muitos livros incompreensíveis até começar a conseguir decidir sozinha o tempo que me destinava esperar: aos quinze anos. Aos trinta anos. Muitos nunca os acabei, tantas eram as perguntas que me assolavam que deixava de ter espaço para poder ler. As enciclopédias não me fascinaram, à exceção do livro proibido, a enciclopédia da vida sexual em seis volumes, escondida na gaveta de um móvel no quarto dos meus pais, que li de uma ponta à outra às escondidas. Folheava-as sem grande atenção, lendo aqui e ali uma ou outra entrada ou observando as imagens. Já nessa altura não conseguia acreditar nelas: podem descrever-me um gato, não conhecerei o odor do seu hálito, o seu poder de amar. Dizer-me que A metafísica é o ramo da filosofia que lida com os primeiros princípios mas o que era a filosofia e o que era um princípio e o que era ser primeiro? Queria passar muito tempo com cada uma dessas coisas. Interessavam-me frases e por isso escolhi a literatura. Então o meu coração chegava a doer, eu desaparecia, sentia uma exaltação no rosto, era físico, não queria separar-me daquele objeto.
Quando os meus pais se divorciaram, o meu pai levou com ele muitos dos livros que tinha deixado à espera. A biblioteca sofreu uma inundação e fechou para obras (foi recentemente substituída por uma nova, grande, com muito mais livros, incluindo a maioria daqueles que ficaram submersos e foram restaurados, bonita, voltada para o rio e ao lado de um jardim, mas sem o silêncio que havia naquela que recordo). Foi por volta dessa altura que as coisas mudaram também para mim, comecei a escrever um diário. Não sei exatamente como aconteceu, mais tarde deixei de gostar de ir a bibliotecas. Suspeito que porque me é difícil suportar a atividade e o ruído dos outros leitores, mas sobretudo porque deixei de ter tempo para me perder nelas, tal como acontecia na infância. Tenho nojo de não poder reproduzir esse sentimento de exclusividade, da exclusividade dada a um certo isolamento, e vou renunciando a uma experiência diferente. (Creio que talvez esteja à espera do momento certo). Sei agora, passados todos estes anos, que gosto muito mais de escrever do que de ler. À medida que percebia isso e ia deixando de me ocupar tanto com a leitura, fiz escolhas de vida apenas para que mais tarde pudesse escrever sobre elas e nisso cheguei a apostar a minha vida. Tudo o que faço, vejo, oiço, não faço e não vejo e não oiço se destina à escrita. Os livros sucedem-se, uns com maior outros com menor velocidade, quase sempre vários ao mesmo tempo, embora na realidade só consiga dedicar a minha atenção a um por noite ou por vários dias seguidos. No entanto, quando penso nesses livros que estou a ler, é em escrever que penso. Escrever sobre aquilo. Não esquecer aquilo para mais tarde escrever sobre isso. Aquilo lembra-me aquilo, quero escrever sobre isso. Os modos: isto está em mim. Mas como? Custa-me acrescentar aquele que é o mais terrível de todos os pensamentos: nunca conseguirei dizer aquilo que quero dizer como quero dizer. E a coisa mais bela de todas: aquilo, pode ser uma palavra.
Sinto o tempo fugir. O que me interessa não é a publicação de um livro mas ser o livro, apenas o livro, o tempo do livro, o tempo da escrita e vivo para me aproximar disso. Nenhum outro amor me teve. É possível que seja sempre assim.

17 de julho de 2014

S. fala às amigas do seu primeiro amor, mantendo em segredo o seu teor involuntário. Procurando exercitar a expressão verosímil e conveniente das suas emoções, sentiu-se à época como um passageiro num comboio que vê desfilar para lá da janela a paisagem inacessível. Disto lembra-se. Do rosto dele, cujo olhar intenso descreve várias vezes com pormenor às amigas, já não. Quando acaba o relato sente-se subitamente esgotada, concentra-se na cor do chá que tem à sua frente na mesa até deixar de ver a chávena. Na verdade, detesta o campo, o rumor constante das árvores e o silêncio universal da noite. Em que lugar o sangue pode ser sangue? Repugna-a a existência de qualquer outro tipo de fidelidade, como a repugna a intenção de ter filhos. A hortelã cresceu no canteiro em dois dias mais do que no ano inteiro dentro do vaso e, porém débil, o seu perfume começou finalmente a aperceber-se à passagem pelo quintal quando se entra em casa. Hoje de manhã havia minúsculos botões ainda fechados, possivelmente nos próximos dias haverá mais. Talvez as raízes se espalhem por todo o quintal e invadam os outros canteiros. E por baixo da casa também, onde S. fará ninho com os ratos, invisível e muda. F. chamou-a esta manhã à saída, disse-lhe qualquer coisa que não entendeu e que não pediu para repetir, pois nem involuntariamente poderia responder ao seu sorriso.

16 de julho de 2014

Ter envelhecido precocemente não me trouxe mágoa senão por não poder surpreender-me com a mudança. Toda a tristeza ou alegria que viriam associadas a ela ocorreram num momento isolado, transformador, ao qual seria inútil regressar. Assim, quando passados muitos anos, ao subir as escadas da casa azul da minha avó vi apenas casas da varanda inundada de sol, e que a amendoeira tinha desaparecido, e que uma das metades da própria varanda tinha uma divisória de alumínio branco, percebi apenas que tinha chegado essa altura, exclusiva de todas as coisas que existem. E ninguém sofria.

15 de julho de 2014

escrever sobre a memória . sobre como não é o esquecimento que nos devora mas sim o modo como vemos o mundo . o modo como vemos o mundo tem a configuração do nosso esquecimento . aquilo que lembramos é essa configuração . a memória é a forma da perceção de nós próprios por nós próprios no mundo . o esquecimento não existe . aquilo que lembramos é a mera subtração daquilo que não queremos lembrar do mundo . tudo é lembrança . percebo sempre isto quando faço exercícios de memória.
Se é para morrer mais vale viver.
Mesmo sem talento, mesmo que ninguém leia, mesmo que ninguém perceba, mesmo que nunca consiga, mesmo que nunca encontre.

11 de julho de 2014

Cortam árvores neste país como quem muda de cuecas. No meu bairro desapareceu mais uma, do pátio do Palácio do Machadinho, onde funciona o departamento cultural da câmara municipal de Lisboa. Era a última da rua do Quelhas no sentido de quem desce, não sei que árvore era, era uma daquelas que têm por vezes o tronco e os ramos cinzentos, era muito alta, ficava no meio de um pátio atualmente usado para estacionar carros. No dia anterior ao corte vi bloquearem os lugares de estacionamento da rua do Quelhas, suspeitei, fui perguntar. O segurança revelou o motivo, seria no dia seguinte às 8:00, a árvore ameaçava cair, já não se encontrava ninguém com quem pudesse falar sobre a responsabilidade disso. Hoje ergui os olhos para a ver, mergulhada nos meus pensamentos já não me lembrava disto, e vi o tronco cortado.
Nos passos que me restaram até casa percebi que o corte destas árvores, sem tumulto, sem que rios de dinheiro sejam gastos a salvá-las, sem comoção, é a medida da minha posição política no mundo.

10 de julho de 2014

(...).
Tento escrever sobre coisas muito elementares, que são talvez as mais complexas da vida. Quero perceber como é que essa complexidade se diz.
(...).
Tinha terminado um livro e queria começar qualquer coisa. Estava à espera. Passaram duas semanas, três e não acontecia nada. Então sentei-me numa sala de uma casa que tinha arrendado por ali e disse: «ok, aqui estou eu sem nada para fazer. É melhor ir à procura.» Escrevi umas 12 páginas sem saber o que estava a escrever. Queria apenas dar alguma utilidade ao meu tempo. Escrevi mais umas quantas e então o outro livro de que eu estava à espera chegou. Nessa altura pus aquilo de lado e não lhe voltei a pegar seriamente senão 20 anos depois. Parar e repegar é normal. Escrevi outros livros, fiz a minha vida. Eu estava à espera mas não estava inanimado.
(...).
[normal] É uma palavra que as personagens usam para tentar exercitar o domínio que têm sobre as suas vidas. Elas estão a viver um processo de saída dessa normalidade e a criar um vocabulário para isso. E dizem: «Eu estou bem, não sou assim tão diferente, não tenho de ser alvo de ajuda, e se tenho, bom... então talvez possa perder a minha vida. Ou talvez ainda tenha de arranjar uma vida para mim.» É quando se está desta forma tão emocionalmente isolado que nos afastamos do amor e da atenção das pessoas. Muito desse sentimento ou dessa sensação tem a ver com a palavra que escolhemos para nos descrevermos a nós mesmos.
(...).
As pessoas acham que passaram para lá da normalidade quando atingem os limites da imaginação. Muitas vezes chega-se a esse limite por coisas tão simples ou complexas como estar-se apaixonado ou doente ou numa situação moralmente constrangedora. Situações de vida em que a lucidez esteja em causa. Dostoievski escrevia sobre pessoas moralmente doentes. Há muitos livros sobre isso e sobre o modo como as pessoas sentem que têm domínio sobre essa normalidade. O curioso é que por vezes só se consegue sentir esse domínio quando se convoca a imaginação. As histórias tornam-se úteis para os leitores quando eles sentem que os livros e as personagens falam do mesmo que eles. Quando os limites da ficção os atingem como os seus próprios limites possíveis.
(...).
Sim. Talvez seja [o lado útil da literatura]. Não no sentido de resolver um problema. Útil no sentido em que se entra num livro como num território estranho e isso nos coloca num certo distanciamento em relação a algo que se vai revelando como nosso. E é esse distanciamento que permite um melhor entendimento do que somos.
(...).
Quando descrevo uma planície ou uma paisagem de montanhas é muito mais um exercício verbal do que de descrição. É escolher as palavras. Se eu quiser mudo a cor do céu.

Entrevista a Richard Ford, Público, 18.04.2014
Passeio no jardim ao final da tarde com um sentimento de enorme tranquilidade. Sentada no quiosque a ler, desinquieta-me a vontade de escrever e logo me levanto para correr para casa. Apesar da pressa, quando começo a andar fico presa num passo lento e arrastado, que de tão lento me aflige. Estarei doente? Será cansaço? Poderá este cansaço ser normal? Estarei a envelhecer assim tão vertiginosamente? Tenho dores no corpo, talvez alguma doença esteja a anunciar-se. Já começou a chegar o outono?
Em vez de a contrariar, enquanto espreito a incógnita, decido colocar ainda mais lentidão nos meus passos, e reparo que aquele caminhar me conforta. Percebo, não sem algum tumulto, que aquele é um passo muito próprio, um tempo muito próprio: o meu próprio. Continuarei assim até ter descido a ladeira e chegado a casa. Passeio no jardim ao final da tarde, estou dentro da sombra das copas das árvores sobrepostas umas às outras, dentro dos seus profundos matizes de verde, de sombra e das cores das flores que mal acabaram de nascer já começaram a cair, das folhas largas que me lembram como sou pequena. Ao passar pelo portão algo se torna claro.

9 de julho de 2014

Sobrevivi ao asco do tempo que parou e não me acho digna de estar aqui, como se tivesse sido o desaparecimento dos cadáveres a tornar o ar impuro e não a presença. 

8 de julho de 2014

Heidegger costumava usar uma metáfora para o seu trabalho filosófico sobre a casa onde escreveu a maior parte da sua obra. Dizia ele que sempre que chegava a essa casa, a encontrava coberta de gelo, pelo que era necessário escavar, removendo camadas sucessivas de neve, até que a casa ficasse visível e habitável. Dizia que era do mesmo modo que progredia na filosofia.
Se quisesse usar uma metáfora semelhante, teria de ser sobre como, quando regresso a casa, me vou afastando de camadas sucessivas de ruído e bulício, citadinos e íntimos, até finalmente me sentar e não haver mais nada senão uma página em branco à minha frente. Nos dias em que eu própria me torno a página em branco, cheguei a casa.
na rua inundada de sol
dos dois lados
o rosto encadeado

7 de julho de 2014

Nunca percebi as pessoas que adoram a velocidade. Que interesse pode haver em ir o mais rápido possível em cima de uma mota ou dentro de um carro, por exemplo? Só me fascina a adrenalina da lentidão, se adrenalina é coisa que lhe possa chamar. Gostaria de escrever e falar com uma tonalidade como essa, de uma lentidão quase imperceptivelmente pontoada por raros júbilos, mas um júbilo que incluísse o seu contrário (como se chama a isso que une as duas pontas de um círculo?). E, um dia, gostaria de nomear essa lentidão. Pelo menos uma vez na vida, nomeá-la.

6 de julho de 2014

Percebo perfeitamente a Eva que, seduzida pela serpente, retira o paraíso a Adão, perdendo-o para si mesma. Eva, de quem todos herdámos a culpa, é a mulher que conhece o homem, a sua insensatez e o seu laxismo.
A história parece incompleta. O Génesis quer fazer-nos acreditar numa ausência de ligações primordiais entre quer a serpente e o homem quer entre Eva e a serpente. E isso, a meu ver, torna a história ilegível, incompreensível.
Personagens: o primeiro homem, a quem os animais não fizeram companhia que bastasse para esquecer a solidão. A primeira mulher, perfeição da obra fora de qualquer espontaneidade. A serpente, presença do mal a ocupar o centro do paraíso, estranha presença de um perigo que nem sequer é indesejado para poder ser combatido. E a árvore do conhecimento do bem e do mal, cujos frutos eram interditos mas pendiam, amadurecidos.
Quando fica a conhecer o bem e o mal, Eva vê também a sua perfeição, única e posterior. Mas a Eva seduzida já conhece a sua solidão. Ora, isto passa-se após a oferta do fruto: após ter falado. A primeira vez que Eva fala coincide com a queda original.

5 de julho de 2014

Estive a escrever um parágrafo sobre uma frase numa carta que uma vez me enviaram e quando por fim acabei e reli o que tinha acabado de escrever, percebi que a quero, a ela e a tudo o que penso sobre ela, só para mim. É a primeira vez que encontro uma coisa com este caráter nas minhas memórias. Não de secretismo, o caráter, mas de grau de apreço. São demasiado raras as coisas que não queremos usar.

3 de julho de 2014

Disseram-me que o elefante que recolhia amendoins da nossa mão no Jardim Zoológico e depois tocava o sino, morreu. Disseram-me, a meio de outra frase: claro. Claro que morreu, claro que era velho. De facto, provavelmente seria velho até quando nasci, mas nunca tinha imaginado a sua morte e por isso a notícia chocou-me, um pouco como se tivesse recebido a notícia da morte de um amigo que vivesse noutra cidade. Gostaria de ter assistido às suas exéquias e tenho pena de não poder voltar a vê-lo. O elefante deixou de estar , do outro lado do fosso, a comer amendoins e a tocar o sino.
A conversa tinha contudo começado com a história da sua vinda para Portugal. Este elefante terá pertencido ao tio avô de um amigo que vivia em Angola e que, depois de ter tido alguns problemas com ele, o ofereceu ao novo Jardim Zoológico de Lisboa. De súbito, fico a conhecer uma pequena parte da vida daquele que foi o ser mais amado na minha infância, justamente o início e o fim de uma longa vida, pois ele era velho quando o conheci, o que na altura me causou enorme espanto e estranheza, porquanto aquele que eu tinha longamente imaginado em devaneios solitários, comigo no dorso, a voar, era robusto e jovem. O elefante velho do Jardim Zoológico estava afastado de nós por um enorme fosso, recebia amendoins e tocava o sino mecanicamente, uma vez após a outra, ao serviço de adultos e de crianças, a ponto de a intervalos o esconderem para descansar. No momento que se seguiu à explicação do motivo do seu desaparecimento, ninguém poderia ter imaginado que no profundo e incompreensível silêncio em que mergulhei o resto da tarde, se escondia ódio contra todos os presentes, os meus pais incluídos, cuja voz denunciava em primeira fila indiferença e mesmo apatia perante a situação. A situação. O elefante dos meus devaneios, sobre quem pedia muitas vezes para me falarem outra vez, era inteligente, amável, gostava de brincar, era tão poderoso que aceitava amendoins das nossas mãos. Em suma, era livre.
Poderá esta ter sido a primeira vez que me vi rodeada de mutismo? Tinha chegado ao Zoológico cumprindo uma ansiada promessa, e aquela, pensava eu, seria a primeira de muitas visitas. Demasiado consciente de um ódio que nasceu contra a minha própria infância, nunca lá voltei.
Sexta-feira de manhã [5 de Junho de 1942],
às sete e meia, na casa de banho.

Esta tarde vi gravuras japonesas com o Glassner. E de repente fiquei a saber: é assim que eu quero escrever. Com um espaço imenso à volta das palavras. Detesto muitas palavras. Quereria escrever somente palavras organicamente inseridas num grande silêncio, daquelas cuja única utilidade é dominar o silêncio e rasgá-lo. Na realidade as palavras devem acentuar o silêncio, tal como naquela gravura japonesa com o ramo florido para baixo, para o canto. Umas ténues pinceladas - mas com que olho para reproduzir o mais pequeno pormenor - e, à volta delas, o grande espaço, mas não um espaço representando um vazio, mas sim, digamos, um espaço com alma. Detesto uma acumulação de palavras. Na realidade pode usar-se poucas palavras para nomear as grandes coisas que importam na vida. Se algum dia chegar a escrever - o quê, sinceramente? - gostaria então de pincelar algumas palavras sobre um fundo mudo. E há-de ser mais difícil de reproduzir e animar esse silêncio e essa mudez do que achar as palavras. O importante será a relação justa entre palavras e silêncio, um silêncio no qual acontece mais do que em todas as palavras que uma pessoa consiga reunir. E em cada novela - ou seja lá aquilo que for - o fundo em silêncio terá de ter um matiz e um conteúdo diferentes, exactamente como acontece nas gravuras japonesas. Não se trata de um silêncio vago e inatingível, esse silêncio terá também de ter os seus próprios contornos definidos e a sua própria forma. E, por conseguinte, as palavras deveriam servir somente para dar forma e delineação ao silêncio. E cada palavra é como um pequeno marco ou um pequeno relevo ao longo de infindáveis caminhos planos e extensos, e vastas planícies.
(...).

Etty Hillesum,  Diário 1941-1943.
Acho estranhíssimo que deixassem os escravos cantar. Mas revelador.

2 de julho de 2014

La question ne se pose pas, il y a trop de vent.

Boris Vian
Guardo a sensação de sentir uma proximidade intolerável com a Duras. Não pego num livro dela há anos, por medo desse espelho. Creio que não conseguiria escrever. Quando voltar aos seus livros, o que tenho muitas vezes vontade de fazer, terei deixado de precisar de ser visível. Mas também terei deixado de precisar de ler outros livros.