17 de julho de 2014

S. fala às amigas do seu primeiro amor, mantendo em segredo o seu teor involuntário. Procurando exercitar a expressão verosímil e conveniente das suas emoções, sentiu-se à época como um passageiro num comboio que vê desfilar para lá da janela a paisagem inacessível. Disto lembra-se. Do rosto dele, cujo olhar intenso descreve várias vezes com pormenor às amigas, já não. Quando acaba o relato sente-se subitamente esgotada, concentra-se na cor do chá que tem à sua frente na mesa até deixar de ver a chávena. Na verdade, detesta o campo, o rumor constante das árvores e o silêncio universal da noite. Em que lugar o sangue pode ser sangue? Repugna-a a existência de qualquer outro tipo de fidelidade, como a repugna a intenção de ter filhos. A hortelã cresceu no canteiro em dois dias mais do que no ano inteiro dentro do vaso e, porém débil, o seu perfume começou finalmente a aperceber-se à passagem pelo quintal quando se entra em casa. Hoje de manhã havia minúsculos botões ainda fechados, possivelmente nos próximos dias haverá mais. Talvez as raízes se espalhem por todo o quintal e invadam os outros canteiros. E por baixo da casa também, onde S. fará ninho com os ratos, invisível e muda. F. chamou-a esta manhã à saída, disse-lhe qualquer coisa que não entendeu e que não pediu para repetir, pois nem involuntariamente poderia responder ao seu sorriso.