Tenho uma enorme dificuldade em descrever um rosto. A cada tentativa saio frustrada, tendo escrito pouco ou nada. Mesmo esse pouco, arrancado com sorte e a ferros, nada revela sobre aquele rosto em particular, nem sobre as suas milimétricas manifestações. Não estou bem de outra maneira senão a escrever e, no entanto, não sou prolixa, eis a grande contradição da minha vida. Pelo contrário, em A Contraluz, Rachel Cusk tem descrições de rostos admiráveis, com adjetivos e metáforas de toda a espécie:
"Há qualquer coisa de personagem de desenho animado na cara de Paniotis: tudo nela é exagerado, as maçãs do rosto são muito magras, a testa muito alta, as sobrancelhas projetando-se como pontos de exclamação, o cabelo voando em todas as direções, e por isso, quando olhamos para ele, temos a sensação curiosa de estarmos a olhar para uma ilustração do Paniotis e não para o próprio Paniotis. Mesmo quando está descontraído, ostenta a expressão de alguém a quem acabaram de contar alguma coisa extraordinária, ou de alguém que abriu uma porta e ficou muito surpreendido com aquilo que viu à sua frente. Os olhos, emoldurados pelo ricto desta expressão, são irrequietos e voláteis e muitas vezes ficam dramaticamente protuberantes, como se algum dia pudessem voar, abandonando de vez o seu rosto, perplexos com aquilo que testemunharam."
Há nestas descrições a frieza de quem os imagina, de quem os trabalha, de quem tem a capacidade de criar um mundo. Eu, que tenho a insignificante ambição de descrever este mundo, debato-me com a falta de memória e com os afetos que perturbam a emissão de sinal. A regra, porém, é a mesma: trabalhar, trabalhar, trabalhar. A realidade também é imaginada.
7 de maio de 2020
3 de maio de 2020
A maioria das minhas amigas é casada e tem filhos. Durante a quarentena, todas se queixaram de ter
demasiadas coisas para fazer e não estar a conseguir dar conta. Cuidar
da casa (limpar, arrumar, organizar), dos filhos (tratar da roupa, da escola,
imaginar atividades de recreio e exercício), cozinhar (pensar em
receitas, ir às compras, preparar a comida) e, enfim, estar em
teletrabalho. Ingénua sobre esta realidade do que é estar em casal,
pergunto «E ele?», mas invariavelmente a resposta é incompreensível:
«Ele está a trabalhar». Nunca me armei em defensora,
porque nenhuma delas precisa de defesa. São todas mulheres altamente
instruídas, competentes, inteligentes, criativas e empáticas. Porque não
agem? Como chegámos até aqui? Em relação ou não, pobres ou
ricas, instruídas ou ignorantes, com ou sem filhos, rebeldes ou
submissas, vivemos todas num mundo marcado pela dominação masculina e enfrentamos quotidianamente a necessidade de reclamar o nosso lugar. O que
temos de mudar? Como vamos mudar? Não sei responder.
No primeiro ano do meu casamento, o meu marido, um ativista francês, foi deixando aos poucos de lavar a loiça, aspirar a casa e cozinhar. Também queria ser sempre ele a conduzir e, muito embora eu já fosse estudante quando casámos, passou a achar mal que eu estivesse a estudar. Ao longo de algumas semanas observei-o com curiosidade, para ver até onde iria. Depois, um dia, também deixei de fazer tudo. Durante meses a fio, com a casa num caos, passámos cada um a lavar a sua roupa e a jantar fora, altura em que ele procurava convencer-me que, por razões de trabalho, não tinha tempo para se ocupar daquelas coisas e que, portanto, como estava mais tempo em casa, eu tinha de o fazer. Foram conversas extraordinárias, em que eu não cedi uma única vez. Então, eventualmente, e de forma muito discreta, ele quebrou. De costas para mim, disse que ia passar uma camisa e perguntou-me se eu queria que ele passasse alguma coisa minha. Nesse momento, ainda pensei se havia de ceder ou vingar-me de séculos de sujeição. Um pouco contrafeita, agradeci e eventualmente tive de voltar a lavar a loiça. Ficou-me todavia esta memória, de que me sirvo muitas vezes, embora não sirva de nada às minhas amigas que têm de salvar tanta coisa do naufrágio e também de ensinar a nadar. No trabalho e em casa, temos muito confronto a fazer, vivemos de acordo com códigos que não nos pertencem e cumprimos papéis moldados para a felicidade dos homens. Como diria Elena Ferrante, escritora e feminista que admiro, a segurança da paz e do silêncio sufoca-nos.
No primeiro ano do meu casamento, o meu marido, um ativista francês, foi deixando aos poucos de lavar a loiça, aspirar a casa e cozinhar. Também queria ser sempre ele a conduzir e, muito embora eu já fosse estudante quando casámos, passou a achar mal que eu estivesse a estudar. Ao longo de algumas semanas observei-o com curiosidade, para ver até onde iria. Depois, um dia, também deixei de fazer tudo. Durante meses a fio, com a casa num caos, passámos cada um a lavar a sua roupa e a jantar fora, altura em que ele procurava convencer-me que, por razões de trabalho, não tinha tempo para se ocupar daquelas coisas e que, portanto, como estava mais tempo em casa, eu tinha de o fazer. Foram conversas extraordinárias, em que eu não cedi uma única vez. Então, eventualmente, e de forma muito discreta, ele quebrou. De costas para mim, disse que ia passar uma camisa e perguntou-me se eu queria que ele passasse alguma coisa minha. Nesse momento, ainda pensei se havia de ceder ou vingar-me de séculos de sujeição. Um pouco contrafeita, agradeci e eventualmente tive de voltar a lavar a loiça. Ficou-me todavia esta memória, de que me sirvo muitas vezes, embora não sirva de nada às minhas amigas que têm de salvar tanta coisa do naufrágio e também de ensinar a nadar. No trabalho e em casa, temos muito confronto a fazer, vivemos de acordo com códigos que não nos pertencem e cumprimos papéis moldados para a felicidade dos homens. Como diria Elena Ferrante, escritora e feminista que admiro, a segurança da paz e do silêncio sufoca-nos.
2 de maio de 2020
29 de abril de 2020
Speed-dating
o mundo está num dos seus alvoreceres e em breve chegará a enxurrada que nos levará a todos até à noite dos tempos. fico à janela, como noutra época as moças ficavam, e olho para a parede da casa do outro lado, para o jardim e para a nespereira, para os pombos, para o lago, para as mulheres que fumam à esquina da rua ouvindo caladas os homens gritar. dou comida aos pombos, dou-lhes muito pão, não quero que a enxurrada os leve com fome. nisto, vou ensaiando a história da minha vida. há dias em que me perco, já não sei se o que conto está antes ou depois do que acabei de contar. por vezes pareço ter tido uma vida extraordinária, se não em fama e glória, e menos ainda em felicidade, pelo menos em acontecimentos verdadeiramente raros, e acabo por perguntar-me «e depois, o que aconteceu?», mas não tenho resposta. a maioria das vezes, contudo, a história da minha vida é demasiado curta. em grande antecipação, abro os diários e encontro sempre alguma coisa que não vivi.
o mundo está num dos seus alvoreceres e em breve chegará a enxurrada que nos levará a todos até à noite dos tempos. fico à janela, como noutra época as moças ficavam, e olho para a parede da casa do outro lado, para o jardim e para a nespereira, para os pombos, para o lago, para as mulheres que fumam à esquina da rua ouvindo caladas os homens gritar. dou comida aos pombos, dou-lhes muito pão, não quero que a enxurrada os leve com fome. nisto, vou ensaiando a história da minha vida. há dias em que me perco, já não sei se o que conto está antes ou depois do que acabei de contar. por vezes pareço ter tido uma vida extraordinária, se não em fama e glória, e menos ainda em felicidade, pelo menos em acontecimentos verdadeiramente raros, e acabo por perguntar-me «e depois, o que aconteceu?», mas não tenho resposta. a maioria das vezes, contudo, a história da minha vida é demasiado curta. em grande antecipação, abro os diários e encontro sempre alguma coisa que não vivi.
28 de abril de 2020
27 de abril de 2020
Em 2015, quando rebentou a crise dos refugiados, estive disposta a
abandonar tudo — casa, trabalho, cidade, família, país, língua,
segurança — para trabalhar como voluntária em operações de salvamento no
mar, assistência nas rotas terrestres e no acolhimento e integração de
refugiados. Em 2020, quando a pandemia chegou a Portugal, fechei-me em
casa sozinha com víveres para duas semanas em estado de terror pelo
eventual contacto com a rua e com as pessoas lá fora. Li artigos de
enfiada tanto de filósofos como de autoridades de saúde, avisando quer
sobre a atual ameaça de novos totalitarismos, quer sobre formas eficazes
de proteção. Ainda leio. Em minha defesa não posso senão dizer o
seguinte: foi apenas em dezembro passado que estive duas semanas de cama
com uma gripe que incluiu episódios de febre de 40º, vómitos, tosse
(uma tosse que que durou mais de dois meses) e total incapacidade de me
mexer para o que quer que fosse. Nessa altura escrevi o seguinte:
A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu". E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação, é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.
Quando o vírus chegou, dei por mim a dizer frases como «Não quero saber se é Covid ou outra coisa qualquer, não quero é ficar doente outra vez.» Não pensei uma única vez que poderia morrer. O que me deixava em total estado de horror, era a possibilidade de voltar à cama com febre. Não só de padecer de algum sofrimento atroz, mas sobretudo, a possibilidade de voltar a ter de enfrentar a violenta construção de uma narrativa, ao ponto de poder mudar radicalmente a minha história. O sofrimento passa, as histórias ficam connosco. E digo bem, enfrentar, pois é de um duelo que se trata, um duelo com fantasmas, formas, signos, sombras, imagens de uma temporalidade desagregada. Essas imagens não trazem qualquer ameaça a quem morre, mesmo a quem morre depois de passar por elas, pelo menos para mim, que acredito no total esgotamento da existência depois da morte. Mas trazem a quem lhes sobrevive, a ameaça de, ao delas regressar, dar de caras com uma vida silenciosa.
A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu". E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação, é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.
Quando o vírus chegou, dei por mim a dizer frases como «Não quero saber se é Covid ou outra coisa qualquer, não quero é ficar doente outra vez.» Não pensei uma única vez que poderia morrer. O que me deixava em total estado de horror, era a possibilidade de voltar à cama com febre. Não só de padecer de algum sofrimento atroz, mas sobretudo, a possibilidade de voltar a ter de enfrentar a violenta construção de uma narrativa, ao ponto de poder mudar radicalmente a minha história. O sofrimento passa, as histórias ficam connosco. E digo bem, enfrentar, pois é de um duelo que se trata, um duelo com fantasmas, formas, signos, sombras, imagens de uma temporalidade desagregada. Essas imagens não trazem qualquer ameaça a quem morre, mesmo a quem morre depois de passar por elas, pelo menos para mim, que acredito no total esgotamento da existência depois da morte. Mas trazem a quem lhes sobrevive, a ameaça de, ao delas regressar, dar de caras com uma vida silenciosa.
26 de abril de 2020
Ao contrário dos livros, as fotografias não eram, inicialmente,
catalogadas ou incluídas em registos bibliográficos, mas simplesmente
arquivadas. E, por vezes, tinham de esperar mais de cem anos até serem
observadas uma segunda vez. (...).
Quando as férias de Verão são registadas em vários milhares de imagens, e a vida de um bebé recém-nascido documentada fotograficamente dia após dia, tal tem pouco que ver com a criação de uma memória visual, e mais com a institucionalização social de um espaço do esquecimento. É justamente porque as imagens estão disponíveis em tão grande número que a recordação e a memória, que poderiam estruturá-las e conferir-lhes uma forma, têm um papel secundário. Porque as imagens não existem, de modo algum, para ser recordadas. O simples facto de estarem disponíveis já é suficiente. Os depósitos virtuais são sobretudo arquivos visuais do esquecimento.
Quando as férias de Verão são registadas em vários milhares de imagens, e a vida de um bebé recém-nascido documentada fotograficamente dia após dia, tal tem pouco que ver com a criação de uma memória visual, e mais com a institucionalização social de um espaço do esquecimento. É justamente porque as imagens estão disponíveis em tão grande número que a recordação e a memória, que poderiam estruturá-las e conferir-lhes uma forma, têm um papel secundário. Porque as imagens não existem, de modo algum, para ser recordadas. O simples facto de estarem disponíveis já é suficiente. Os depósitos virtuais são sobretudo arquivos visuais do esquecimento.
Bernd Stiegler, Fotografia e esquecimento.
(...)
quero dizer que a língua em que me seria, talvez, dado não apenas
escrever, mas pensar, não é nem o latim, nem o italiano, nem o espanhol,
mas uma língua de que não conheço uma só palavra, uma língua com que as
coisas mudas me falam e na qual deverei talvez um dia, do fundo da
campa, justificar-me perante um juiz desconhecido.
Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lorde Chandos.
Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lorde Chandos.
20 de abril de 2020
fazer anos é difícil. é complicado assegurar equilibradamente que devolvo o carinho que me é mostrado, efusivo, alegre e festivo, sem trair o núcleo da minha identidade, introvertida, equânime, austera. em criança simplesmente chorava. chorava convulsivamente dentro do vestido a estrear, rodeada da família e dos amigos, no momento de apagar as velas do bolo de aniversário, e imediatamente queria ficar só, desligar-me de todo o ruído e de toda a atenção, inclusive da minha mãe, e retirar-me para um canto esquecido até acabar o dia. continuo igual, dividida entre a gratidão pelos que me querem bem e a necessidade de quietude de uma existência sem alarme. a náusea, implacável e intransigente, é a mesma e o preço a pagar por lhe resistir, porventura demasiado alto: outrora, até a escuridão era límpida. hoje, para onde quer que me volte, as quimeras interpretam o seu espetáculo e para além da alegria e da vontade, deixam o impuro lastro da esperança.
19 de abril de 2020
a escrita de uma nova carta levou-me a um texto cheio de reminiscências
que se tornou muito maior do que pensei e que começa a revelar estar
repleto de ramificações para múltiplas histórias. muito embora tema não
conseguir urdi-las a todas, enquanto termino blocos de texto, o
vocabulário começa a surgir com facilidade como um rio que jorra da
montanha e vou enchendo o documento de anotações para que a memória mais
tarde não me falhe sabendo, contudo, que não tenho garantias nem de me
recordar dos textos (completos em segundos na minha cabeça) a que
aquelas anotações apressadas me deverão conduzir nem de, quando a elas
regressar, ainda fazerem sentido. depois de ter escrito, sinto-me tão
realizada como se tivesse cumprido uma vida de tarefas absolutamente
necessárias para a melhoria do mundo. não tenho ilusões: fui agora mesmo
reler esse texto e estou em luta com ele, com as coisas pouco claras,
contraditórias e dúbias que escrevi. ainda assim, sinto-me bafejada pela
sorte por, ao decidir tirar tempo para escrever, ter sido possível
retirar-me por momentos da pandemia, das dificuldades e da consciência
por vezes atrofiante que tenho de mim própria. não há nada que dê mais
sentido à vida do que podermos esquecer-nos de nós próprios.
14 de abril de 2020
No meio disto tudo, há quem tenha visões tão otimistas sobre o nosso futuro próximo que me pergunto o que há de errado comigo. Um amigo com quem falei recentemente, vê as rendas e o turismo a baixar. Parece-me uma visão maravilhosa. No final de um artigo extremamente crítico dos líderes políticos na Índia, a Arundhati Roy consegue imaginar — nas condições em que nos encontramos, que tendem a piorar, pelo menos do ponto de vista político, social e económico —, que conseguiremos lutar pela construção de um novo mundo (artigo aqui). O próprio Byung-Chul Han acaba um artigo devastador sobre o capitalismo de vigilância em que vivemos com um parágrafo que mais parece um salto sobre o vazio: "O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta." (Sublinhados meus, aqui está o artigo). Desde quando é que a racionalidade contribuiu para gerar a união coletiva? O que me está vedado compreender é o que é que indica que o mundo poderá melhorar radicalmente por causa do vírus. O que é que indica que as mentalidades vão mudar de tal forma a ponto de salvar o planeta ou contribuir para um mundo mais justo do ponto de vista social. Em que é que as pessoas se baseiam para defender que o vírus transformou o humano. Temos a sensação de estarmos a viver o tempo mais importante da nossa vida. Mas a verdade é que as escolhas que estamos a fazer são perigosas e altamente questionáveis. Por causa do contágio, suspendeu-se de forma pacífica precisamente aquilo que nos torna humanos: a afetividade. Por isso não vejo que, como alguns defendem, o vírus nos tenha tornado mais conscientes das desigualdades ou tenha agido sobre o consumismo, a nível dos bens, do tempo e da interioridade. Pelo contrário. O vírus enfraqueceu-nos. As nossas vidas vão ficar indelevelmente marcadas pelo distanciamento social, que as autoridades não se cansam de anunciar nos telejornais que é para ser mantido.
10 de abril de 2020
No dia em que finalmente convenci a minha mãe que já podia ser eu a escolher a minha roupa, ela disse:
— Está bem. Então fazemos uma experiência: vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e, quando tiveres tomado banho, conversamos.
Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um statement. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava, sobretudo, que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa. Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha, mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda, mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos face à realidade com que me confrontava, essa, peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:
— Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.
Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.
— Está bem. Então fazemos uma experiência: vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e, quando tiveres tomado banho, conversamos.
Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um statement. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava, sobretudo, que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa. Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha, mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda, mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos face à realidade com que me confrontava, essa, peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:
— Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.
Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.
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