No dia em que finalmente convenci a minha mãe que já podia ser eu a escolher a minha roupa, ela disse:
— Está bem. Então fazemos uma experiência: vais por em cima da cama o
que queres vestir hoje e, quando tiveres tomado banho, conversamos.
Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a
minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito
vincadas e laço atrás na cintura, que só
me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa
forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um statement.
Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete
para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para
se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam
subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori
como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível
seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma,
afirmava, sobretudo, que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa. Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a
sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que
nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando
acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir
para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem
parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a
princípio também. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não
sabia de onde vinha, mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e
que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa
casa ainda às escuras para descobrir o que guarda, mas o tempo do banho
não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso,
sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que
se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao
quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha
mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa
em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus
argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos face à
realidade com que me confrontava, essa, peremptória. Seria necessário
optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último
grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:
— Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.
Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa
de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive
impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias
cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma
coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.