29 de abril de 2020

Speed-dating

o mundo está num dos seus alvoreceres e em breve chegará a enxurrada que nos levará a todos até à noite dos tempos. fico à janela, como noutra época as moças ficavam, e olho para a parede da casa do outro lado, para o jardim e para a nespereira, para os pombos, para o lago, para as mulheres que fumam à esquina da rua ouvindo caladas os homens gritar. dou comida aos pombos, dou-lhes muito pão, não quero que a enxurrada os leve com fome. nisto, vou ensaiando a história da minha vida. há dias em que me perco, já não sei se o que conto está antes ou depois do que acabei de contar. por vezes pareço ter tido uma vida extraordinária, se não em fama e glória, e menos ainda em felicidade, pelo menos em acontecimentos verdadeiramente raros, e acabo por perguntar-me «e depois, o que aconteceu?», mas não tenho resposta. a maioria das vezes, contudo, a história da minha vida é demasiado curta. em grande antecipação, abro os diários e encontro sempre alguma coisa que não vivi.