Em 2015, quando rebentou a crise dos refugiados, estive disposta a
abandonar tudo — casa, trabalho, cidade, família, país, língua,
segurança — para trabalhar como voluntária em operações de salvamento no
mar, assistência nas rotas terrestres e no acolhimento e integração de
refugiados. Em 2020, quando a pandemia chegou a Portugal, fechei-me em
casa sozinha com víveres para duas semanas em estado de terror pelo
eventual contacto com a rua e com as pessoas lá fora. Li artigos de
enfiada tanto de filósofos como de autoridades de saúde, avisando quer
sobre a atual ameaça de novos totalitarismos, quer sobre formas eficazes
de proteção. Ainda leio. Em minha defesa não posso senão dizer o
seguinte: foi apenas em dezembro passado que estive duas semanas de cama
com uma gripe que incluiu episódios de febre de 40º, vómitos, tosse
(uma tosse que que durou mais de dois meses) e total incapacidade de me
mexer para o que quer que fosse. Nessa altura escrevi o seguinte:
A doença transforma-nos ao ponto de nos tornarmos na antítese de nós próprios. Sempre que estou doente, lembro-me do Oscar Wilde que dizia "Meu Deus, livra-me das dores físicas que das morais trato eu". E, mais vezes do que gostaria de admitir, nos momentos especialmente complicados rezo fervorosamente, como se dali a minutos chegasse a morte. Comprometi-me muitas vezes com o desalento de quem não tem recursos suficientes para a cura e percebi que cada doença tem o seu delírio próprio, a sua narrativa, sempre acompanhada pelo isolamento, mesmo que estejamos no Hospital mais agitado. Como criadoras de identidade, as narrativas moldam a nossa perspetiva sobre o mundo. Penso que o âmbito do que consideramos ser uma alucinação, é definido por este movimento que passa dos vapores do delírio, de onde tantas vezes emergem as epifanias, à ímpia clareza. Quem somos quando a doença passa? Tabula rasa, constatamos que o que julgávamos adquirido — seja nos domínios do conhecimento ou da ação —, esmoreceu, se dissipou ou se extinguiu. Estamos agora mais frágeis do que nunca e o mundo exterior impressiona-nos como se tivéssemos acabado de nascer.
Quando o vírus chegou, dei por mim a dizer frases como «Não quero saber
se é Covid ou outra coisa qualquer, não quero é ficar doente outra vez.»
Não pensei uma única vez que poderia morrer. O que me deixava em total
estado de horror, era a possibilidade de voltar à cama com febre. Não só de padecer de algum sofrimento atroz, mas sobretudo, a possibilidade de voltar a ter de enfrentar a violenta construção de uma narrativa, ao
ponto de poder mudar radicalmente a minha história. O sofrimento passa, as histórias ficam connosco. E digo bem, enfrentar,
pois é de um duelo que se trata, um duelo com fantasmas, formas,
signos, sombras, imagens de uma temporalidade desagregada. Essas imagens
não trazem qualquer ameaça a quem morre, mesmo a quem morre depois de
passar por elas, pelo menos para mim, que acredito no total esgotamento
da existência depois da morte. Mas trazem a quem lhes sobrevive, a
ameaça de, ao delas regressar, dar de caras com uma vida silenciosa.
27 de abril de 2020
26 de abril de 2020
Ao contrário dos livros, as fotografias não eram, inicialmente,
catalogadas ou incluídas em registos bibliográficos, mas simplesmente
arquivadas. E, por vezes, tinham de esperar mais de cem anos até serem
observadas uma segunda vez. (...).
Quando as férias de Verão são registadas em vários milhares de imagens, e a vida de um bebé recém-nascido documentada fotograficamente dia após dia, tal tem pouco que ver com a criação de uma memória visual, e mais com a institucionalização social de um espaço do esquecimento. É justamente porque as imagens estão disponíveis em tão grande número que a recordação e a memória, que poderiam estruturá-las e conferir-lhes uma forma, têm um papel secundário. Porque as imagens não existem, de modo algum, para ser recordadas. O simples facto de estarem disponíveis já é suficiente. Os depósitos virtuais são sobretudo arquivos visuais do esquecimento.
Quando as férias de Verão são registadas em vários milhares de imagens, e a vida de um bebé recém-nascido documentada fotograficamente dia após dia, tal tem pouco que ver com a criação de uma memória visual, e mais com a institucionalização social de um espaço do esquecimento. É justamente porque as imagens estão disponíveis em tão grande número que a recordação e a memória, que poderiam estruturá-las e conferir-lhes uma forma, têm um papel secundário. Porque as imagens não existem, de modo algum, para ser recordadas. O simples facto de estarem disponíveis já é suficiente. Os depósitos virtuais são sobretudo arquivos visuais do esquecimento.
Bernd Stiegler, Fotografia e esquecimento.
(...)
quero dizer que a língua em que me seria, talvez, dado não apenas
escrever, mas pensar, não é nem o latim, nem o italiano, nem o espanhol,
mas uma língua de que não conheço uma só palavra, uma língua com que as
coisas mudas me falam e na qual deverei talvez um dia, do fundo da
campa, justificar-me perante um juiz desconhecido.
Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lorde Chandos.
Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lorde Chandos.
20 de abril de 2020
fazer anos é difícil. é complicado assegurar equilibradamente que devolvo o carinho que me é mostrado, efusivo, alegre e festivo, sem trair o núcleo da minha identidade, introvertida, equânime, austera. em criança simplesmente chorava. chorava convulsivamente dentro do vestido a estrear, rodeada da família e dos amigos, no momento de apagar as velas do bolo de aniversário, e imediatamente queria ficar só, desligar-me de todo o ruído e de toda a atenção, inclusive da minha mãe, e retirar-me para um canto esquecido até acabar o dia. continuo igual, dividida entre a gratidão pelos que me querem bem e a necessidade de quietude de uma existência sem alarme. a náusea, implacável e intransigente, é a mesma e o preço a pagar por lhe resistir, porventura demasiado alto: outrora, até a escuridão era límpida. hoje, para onde quer que me volte, as quimeras interpretam o seu espetáculo e para além da alegria e da vontade, deixam o impuro lastro da esperança.
19 de abril de 2020
a escrita de uma nova carta levou-me a um texto cheio de reminiscências
que se tornou muito maior do que pensei e que começa a revelar estar
repleto de ramificações para múltiplas histórias. muito embora tema não
conseguir urdi-las a todas, enquanto termino blocos de texto, o
vocabulário começa a surgir com facilidade como um rio que jorra da
montanha e vou enchendo o documento de anotações para que a memória mais
tarde não me falhe sabendo, contudo, que não tenho garantias nem de me
recordar dos textos (completos em segundos na minha cabeça) a que
aquelas anotações apressadas me deverão conduzir nem de, quando a elas
regressar, ainda fazerem sentido. depois de ter escrito, sinto-me tão
realizada como se tivesse cumprido uma vida de tarefas absolutamente
necessárias para a melhoria do mundo. não tenho ilusões: fui agora mesmo
reler esse texto e estou em luta com ele, com as coisas pouco claras,
contraditórias e dúbias que escrevi. ainda assim, sinto-me bafejada pela
sorte por, ao decidir tirar tempo para escrever, ter sido possível
retirar-me por momentos da pandemia, das dificuldades e da consciência
por vezes atrofiante que tenho de mim própria. não há nada que dê mais
sentido à vida do que podermos esquecer-nos de nós próprios.
14 de abril de 2020
No meio disto tudo, há quem tenha visões tão otimistas sobre o nosso futuro próximo que me pergunto o que há de errado comigo. Um amigo com quem falei recentemente, vê as rendas e o turismo a baixar. Parece-me uma visão maravilhosa. No final de um artigo extremamente crítico dos líderes políticos na Índia, a Arundhati Roy consegue imaginar — nas condições em que nos encontramos, que tendem a piorar, pelo menos do ponto de vista político, social e económico —, que conseguiremos lutar pela construção de um novo mundo (artigo aqui). O próprio Byung-Chul Han acaba um artigo devastador sobre o capitalismo de vigilância em que vivemos com um parágrafo que mais parece um salto sobre o vazio: "O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus nos isola e individualiza. Não gera nenhum sentimento coletivo forte. De alguma maneira, cada um se preocupa somente por sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permite sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos repensar e restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvar, para salvar o clima e nosso belo planeta." (Sublinhados meus, aqui está o artigo). Desde quando é que a racionalidade contribuiu para gerar a união coletiva? O que me está vedado compreender é o que é que indica que o mundo poderá melhorar radicalmente por causa do vírus. O que é que indica que as mentalidades vão mudar de tal forma a ponto de salvar o planeta ou contribuir para um mundo mais justo do ponto de vista social. Em que é que as pessoas se baseiam para defender que o vírus transformou o humano. Temos a sensação de estarmos a viver o tempo mais importante da nossa vida. Mas a verdade é que as escolhas que estamos a fazer são perigosas e altamente questionáveis. Por causa do contágio, suspendeu-se de forma pacífica precisamente aquilo que nos torna humanos: a afetividade. Por isso não vejo que, como alguns defendem, o vírus nos tenha tornado mais conscientes das desigualdades ou tenha agido sobre o consumismo, a nível dos bens, do tempo e da interioridade. Pelo contrário. O vírus enfraqueceu-nos. As nossas vidas vão ficar indelevelmente marcadas pelo distanciamento social, que as autoridades não se cansam de anunciar nos telejornais que é para ser mantido.
10 de abril de 2020
No dia em que finalmente convenci a minha mãe que já podia ser eu a escolher a minha roupa, ela disse:
— Está bem. Então fazemos uma experiência: vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e, quando tiveres tomado banho, conversamos.
Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um statement. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava, sobretudo, que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa. Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha, mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda, mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos face à realidade com que me confrontava, essa, peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:
— Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.
Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.
— Está bem. Então fazemos uma experiência: vais por em cima da cama o que queres vestir hoje e, quando tiveres tomado banho, conversamos.
Lembro-me perfeitamente das peças que escolhi. Eram cada uma delas a minha preferida: o vestido de xadrez vermelho e preto, com pregas muito vincadas e laço atrás na cintura, que só me deixavam usar nas ocasiões especiais, umas meias de lã cor-de-rosa forte e umas sapatilhas bota brancas. Aquela escolha era um statement. Não afirmava apenas que nada era sagrado, afirmava uma visão que remete para cruzamentos constantes, para um fluxo que dependia do tempo para se ordenar na sua desordem, onde os elementos mais fracos podiam subitamente revelar uma força sem a qual os restantes, tidos a priori como mais fortes, perderiam o sentido e onde o secreto e o visível seriam mutuamente corrosivos, como um pintor e uma tela. Em suma, afirmava, sobretudo, que eu achava que vermelho combina com cor-de-rosa. Era uma luta antiga. Eu dizia que sim, a minha mãe horrorizava-se com a sugestão. Procurei criar argumentos para defender a minha causa, que nunca tinham sido aceites. Ali estava a minha oportunidade.
Quando acabei de colocar as peças em cima da cama e lhes voltei costas para ir para a casa-de-banho, senti uma sombra tomar-me. Abrandei o passo sem parar de andar e fiquei muito atenta a ela, um pouco assustada a princípio também. Trazia em si um frio. Era profunda, quase cósmica. Não sabia de onde vinha, mas soube instantaneamente que fazia parte de mim e que não voltaria a desaparecer. Quis entrar nela como quem entra numa casa ainda às escuras para descobrir o que guarda, mas o tempo do banho não seria suficiente. Entre uma coisa e outra vi um espaço muito liso, sem memória, uma vertigem irrecuperável, esse instante quotidiano em que se morre e a cujo prazer se dá outro significado.
Quando voltei ao quarto estava sorridente. Não me passou sequer pela cabeça que a minha mãe pudesse colocar obstáculos à minha escolha, portanto ver outra roupa em cima da cama matou-me.
Mal consegui falar. Percebi que os meus argumentos pesavam pouco, para não dizer que eram nulos face à realidade com que me confrontava, essa, peremptória. Seria necessário optar por outra estratégia para defender a minha posição e em último grau a minha identidade. Foi então que disse à minha mãe:
— Quando eu fizer 18 anos não mandas mais em mim.
Lembro-me que a minha mãe disfarçou um sorriso entre a zanga e a pressa de me fazer sair para a escola a tempo, perante o qual me mantive impassível. Fui para a escola a pensar na minha sombra, com as meias cor-de-rosa mas sem o vestido vermelho (negociações). Ia vestida de uma coisa que tinha começado a deixar de ser: uma criança.
Das Mädchen:
Vorüber! Ach, vorüber!
Vorüber! Ach, vorüber!
Geh, wilder Knochenmann!
Ich bin noch jung! Geh, lieber,
Und rühre mich nicht an.
Und rühre mich nicht an.
Der Tod:
Gib deine Hand, du schön und zart Gebild!
Bin Freund, und komme nicht, zu strafen.
Sei gutes Muts! ich bin nicht wild,
Sollst sanft in meinen Armen schlafen!
A Donzela:
Vá embora! Ah, vá embora!
Vá, feroz homem de ossos!
Eu ainda sou jovem! Vá, de preferência,
E não me toque.
E não me toque.
A Morte:
Dê-me a sua mão, bela e delicada forma!
Sou amigo, e não venho para punir.
Tenha bom ânimo! Eu não sou feroz,
Tranquilamente dormirás em meus braços!
Franz Schubert, Der Tod und das Mädchen [A Morte e a Donzela], Opus 7, Nº 3
(fevereiro de 1817, publicada em Viena em novembro de 1821), texto do
poeta alemão Matthias Claudius.
A vida é como um manto em que se arrastam todas as fúrias e ternuras
do mundo, e que deixa ficar por toda a parte alguma coisa do seu calor e
do seu peso. O manto estende-se e envolve-se, descobre e oculta,
agasalha e expõe ao frio; o manto é de farrapos imensos onde se embalou a
morte. Desdobra-se, e parece mesquinha urdidura; chega-se aos olhos e a
sua cor apaga-se, atira-se no vento e ele cobre os astros inteiramente.
Todos transportam o manto nos seus ombros e o levantam à altura do
coração, e deixam que ele caia no pó e o perdem nos caminhos onde acaba a
história do homem. (...). Não se lê nem se escreve o manto; não se pensa
nem se move sequer. Mas todos os descontentamentos ele protege, todas
as ignorâncias ele vence, todas as solidões ele inspira e transfigura.
Agustina Bessa-Luís, O Manto (inédito).
Agustina Bessa-Luís, O Manto (inédito).
um ruído consolador chocou contra ele, radioso como um risco que se aceita sem pensar muito. observou distraidamente o delírio da morte nos escaparates dos jornais. o ruído demorava a desaparecer. pensou, não se sabe porquê, que naquele instante dez anos tinham passado. contou-os um a um, como segundos a cair e enquanto isso tudo mudou. que disparate, pensou. e ainda assim, quase em simultâneo, pensou também que imperfeição divina estaria guardada nos circuitos do cérebro humano que tornasse possível aquele acontecimento. um sentimento invasor e oscilante, pesado, apoderou-se dele e a custo conseguiu reprimi-lo. em seu lugar, viu-se obrigado a reconstruir a vida.
O coração dos homens
I
Quando pequena, fui o espelho numa encenação de Branca de Neve e os sete anões.
A peça era toda falada em inglês.
E o público, crianças monoglotas da pré-escola.
Tínhamos dez anos e mal falávamos inglês.
Aliás, mal falávamos português.
Havia um colega que dizia “largatixa” em vez de “lagartixa”.
Ele nunca adoçava o suco de uva com açúcar mascavo.
Ouvia “mascado”
e tinha nojo.
Este meu colega também sofria de incontinência urinária
e não tinha os mamilos:
em seu abdômen, só havia o umbigo.
Para nos assustar, ele levantava a camiseta
e corria atrás de nós mostrando o branco dos olhos.
Tínhamos muito medo dele.
Não lembro qual foi seu papel na peça.
Lembro quem foi o Príncipe
e lembro quem foi a Branca de Neve.
A Branca de Neve tinha alergia a lã.
Só usava roupa de tecido sintético,
especialmente um casaco azul e amarelo de náilon.
Em seus aniversários, se os colegas não levavam presentes,
ela não tinha pudores: impedia-os de entrar na festinha
e anotava os nomes dos relapsos numa caderneta cor-de-rosa.
O Príncipe era filho da professora da primeira série.
Ele se tinha em altíssima conta
e todas as meninas queriam namorar com ele.
(Menos eu.
Eu era apaixonada por outro colega:
um menino moreno, brincalhão, que morreu de leucemia aos onze anos.)
Mas não lembro mesmo o papel do meu colega sem mamilos.
Talvez tenha sido um dos sete anões,
embora eu não lembre também quem foram os outros seis.
Eu era o espelho.
Minha melhor amiga era a madrasta.
Quando a madrasta se transformava em bruxa, aí já era outra pessoa.
Também não lembro quem fazia a madrasta quando esta se transformava em bruxa.
Mas lembro que ela dizia:
“This is the poisoned apple”.
Depois, ela devia gargalhar,
muito e alto,
como bruxa de desenho animado.
Mas a menina que fazia o papel não sabia rir,
menos ainda gargalhar.
Foi outra colega que lhe ensinou.
O aprendizado se deu no banheiro, transformado em camarim.
Do lado de fora, só se ouviam as gargalhadas das duas meninas.
Ninguém mais escutava o que se dizia no palco.
A professora de inglês se irritou com a barulheira.
Interrompeu a encenação
e entrou no banheiro de vassoura em punho.
Ela queria bater nas meninas,
mas o diretor da escola a impediu.
E ela, de raiva, mordeu o lábio até sangrar.
Lembro que todos passaram dias envolvidos com a confecção do figurino
e com a elaboração da maquiagem
e com a escolha dos adereços que comporiam seus personagens.
Mas eu não,
porque eu era o espelho,
e o espelho seria um espelho de verdade.
Eu ficaria atrás do espelho.
Um espelho grande, de pé, antigo,
com moldura de madeira.
Pouco importava a roupa que usaria,
quase nada de mim apareceria na peça.
Subiria ao palco com o uniforme cinza e vermelho da escola.
Lembro que a madrasta e a bruxa usavam o mesmo vestido.
Na hora da transformação, o zíper do vestido trancou,
e a bruxa demorou quinze minutos para entrar em cena.
Sem saber o que fazer, a Branca de Neve deu uma de Gata Borralheira:
varreu e tirou o pó de todos os cantos da casa dos anões.
E as crianças, que já não estavam entendendo nada, entenderam menos ainda.
Lembro também que a madrasta perguntava ao espelho logo no início da peça:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.
E o espelho respondia:
“Her lips are like blood, her hair is like night,
her skin is like snow, her name’s Snow White”.
Algum tempo depois, inconformada, a madrasta procurava novamente o espelho:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.
E o espelho entregava o paradeiro da Branca de Neve:
“She is with the seven dwarfs. She will spend the night.
She is the fairest, and her name’s Snow White”.
Essas eram minhas duas falas.
Todos tinham que recitar pelo menos uma frase.
A idéia era que a turma inteira exibisse seu inglês capenga.
O problema era que não havia papel para todo mundo.
A entourage da Branca de Neve não era tão grande assim,
e nós éramos trinta e cinco na turma.
A solução: povoar a floresta.
Tinha de tudo entre a casa da madrasta e a casa dos anões.
De coruja a mendigo.
Teve até gente que foi árvore,
gente que foi banquinho de madeira.
(E a professora cogitou aumentar o número de anões.)
E todos falavam.
Falavam mal.
Mas falavam.
Na falta do que falar, delatavam a Branca de Neve.
Apontavam a casa dos anões e sussurravam à bruxa:
“She is there”.
Em geral, nosso inglês era incompreensível.
A Branca de Neve, por exemplo, nunca achava nada,
ela sempre afundava.
Ao colocar os anões para dormir, ela os cobria com merda,
em vez de lençóis.
E, ao fim da peça, o Príncipe convidava todos para a festa de suas vinte orelhas.
Os monoglotas da pré-escola não perceberam os erros de inglês.
(Afinal, eram monoglotas.)
Logo se entediaram.
Alguns bocejavam.
Outros cabeceavam.
Os mais debochados riam e cochichavam nos ouvidos uns dos outros.
Não demorou muito para começarem a jogar coisas na gente.
Primeiro, foram chicletes e bolas de papel.
Depois, lápis e gizes de cera.
A situação se tornou mais crítica quando passaram a cuspir.
Corriam como boçais para a beira do palco improvisado
e soltavam catarrões verdes e grudentos naqueles que se achavam ao alcance.
A Branca de Neve levou um catarrão na testa e ameaçou chorar.
Os anões riram às pampas.
E a bruxa arremessou sua cesta de maçãs nos monoglotas.
Alguns foram atingidos.
Outros, não.
E os debochados nos mostraram a língua.
As professoras da pré-escola se enfureceram:
queriam acabar com a peça
e mandar a bruxa para o castigo.
A professora de inglês não se abalou.
Virou-se para nós e disse com um exagerado acento britânico:
“The show must go on”.
Foi aí que menstruei.
Era minha primeira vez.
Ninguém notou.
Eu ficava atrás do espelho.
Ninguém me via.
Só me ouviam (e olhe lá).
Eu também não via ninguém.
Meu horizonte era o verso do espelho:
uma grande moldura de madeira mofada.
Nos ensaios, a idéia era que meu rosto fosse visto acima do espelho.
Mas a professora não gostou do resultado
e tirou minha cabeça de cena.
Na apresentação final, apenas oito dos meus dedos apareciam na peça.
Mesmo assim, só as pontinhas.
Os dedões, como o resto de mim, ficavam escondidos.
Todos viam o espelho,
e o espelho refletia todos −
menos a mim.
Por isso, ninguém percebeu quando menstruei.
Nem eu mesma.
Achava que tinha me mijado.
Comecei a exalar um cheiro diferente.
Um cheiro desconhecido.
Um cheiro que me lembrava podridão.
O mijo tem cheiro forte.
O sangue tem cheiro forte.
Mas o cheiro do sangue não é como o cheiro do mijo.
O sangue tem um cheiro adocicado.
Um cheiro persistente.
Um cheiro de morte.
O mijo tem um cheiro ácido.
Um cheiro passageiro.
Um cheiro de rodoviária.
Senti minhas calcinhas se ensoparem.
Não podia ser mijo.
Não cheirava como mijo.
Também não era tão líquido como o mijo.
Era mais visguento.
E eu não sentira vontade de ir ao banheiro.
Fiquei agoniada.
A peça não terminava nunca,
e as minhas calcinhas estavam cada vez mais molhadas.
Embora ninguém me visse, senti vergonha.
Eu devia estar vermelha,
como sangue.
Desde então, quando menstruo, o sangue desce feito cascata.
Se não troco seguidas vezes o absorvente, escorre pelas pernas
e forma poças dentro das minhas sapatilhas brancas de plástico.
(Uma amiga da minha mãe menstruou em pleno carnaval
e não percebeu:
suas pernas se tingiram de vermelho.)
Imagino que a menstruação excessiva se deva à ovulação igualmente excessiva.
Ou não.
Não sei.
(Minha melhor amiga um dia me disse:
“Eu ovulo muito.
Se gozarem nas minhas coxas, engravido”.)
As meninas do colégio me apelidaram de A Sanguinária.
Por causa da menstruação.
Mas não só.
Um dia, os meninos me pediram um absorvente usado.
Eu lhes dei,
e eles o colocaram na maçaneta da sala de aula.
A professora apertou aquele camundongo morto
e ficou com a mão suja de sangue.
Era a mesma professora de inglês.
Quando menstruei pela segunda vez, estava em outra apresentação.
Também na escola.
Mas agora sem o espelho.
A imigração era o tema.
Com comidas típicas,
roupas típicas,
músicas típicas,
danças típicas
e suco de uva.
A turma havia sido dividida em duas:
italianos de um lado,
alemães de outro.
Os morenos eram italianos.
Os loiros, alemães.
E a professora de história não sabia o que fazer com nossa única colega negra.
(Ela acabou do lado dos alemães.
Não por ironia.
Mas porque havia mais morenos do que loiros na turma.)
Eu fiquei do lado alemão,
porque, além de loira, tenho olhos azuis.
Mas queria ter ficado do lado italiano.
Não gosto de chucrute,
detesto cuca
e salsicha não é meu prato preferido.
Queria comer massa,
polenta
e galeto.
Todos tinham que levar um prato típico.
Um prato que a professora de história considerasse típico.
Porque nem todos os pratos eram de fato típicos.
Eu não sabia o que levar.
Minha mãe também não.
Ela nunca gostou de cozinhar.
Uma vez, ela trocou o creme de leite por leite condensado no estrogonofe.
Meu pai lavou tira por tira de filé mignon numa tentativa inútil de salvar o prato.
Acabaram dando tudo à cocker, que latia, na sacada, desgostosa com a comida.
Quando tinha festa na escola, minha mãe fazia sanduíches de presunto e queijo.
Ninguém gostava,
e eu comia todos para que ela não desconfiasse.
Daquela vez, ela teve a idéia de pedir a meu avô para preparar uma polenta.
Meu avô era filho de italiano
e fora criado por sua avó, italiana de Vicenza.
Ele fez uma de suas maravilhosas polentas rústicas,
toda recoberta com molho de tomate cozido durante horas
e enfeitada com lascas de parmesão e folhas de manjericão fresco.
Só tinha um senão: não era nada alemã.
Para minha mãe, não havia problema.
Ninguém iria notar.
Mas a professora de história notou
e teve um chilique.
Falou em jogar tudo fora e me suspender da atividade.
Comecei a chorar.
Torrencialmente.
Não sei de onde vinham tantas lágrimas.
Soluçava alto.
Dizia que me arrependia amargamente
de ter levado a polenta rústica.
Caí de joelhos no chão
e perguntava, repetidas vezes,
com os braços erguidos:
“Por que não fizeram salsicha bock para eu trazer?
Por que não lingüiça?
Por que não chucrute?”
A professora de história pedia que eu me acalmasse.
Nada aconteceria comigo.
Ela me prometia.
E buscava conter sua impaciência
batendo com força sua plataforma de cortiça
no assoalho de madeira do hall do colégio.
Sequei as lágrimas com as costas das mãos,
lambi o ranho que escorria do nariz
e funguei.
Se não havia castigo,
estava tudo bem.
E perdoei mais uma vez em segredo a total falta de noção da minha mãe.
Chegara a hora das danças.
Toda a turma estava dividida em pares.
Em geral, meninos com meninas.
No entanto, nunca sobravam meninos para fazer par comigo.
Sempre fui uma das mais altas da turma.
E os meninos, nesta idade, continuavam tampinhas.
Acabava sendo obrigada a dançar com uma menina −
invariavelmente, uma varapau como eu
(naquela época, também me chamavam Poste).
Na apresentação organizada pela professora de história,
os italianos dançavam tarantela,
os alemães se vestiam de tiroleses (que, descobri depois, nem alemães eram).
Mas nem a tarantela nem as vestes tirolesas
eram típicas dos imigrantes que foram para o Sul.
A professora de história tinha uma versão muito particular da história.
Eu vestia camisa branca sob uma jardineira verde, curta e rodada.
Duas grossas tranças circundavam minha cabeça,
e meias brancas subiam até meu joelho.
Os meninos alemães estavam de bermudão verde com suspensório.
Por baixo, usavam uma camisa branca,
e meias brancas também subiam até seus joelhos.
Os meninos italianos vestiam um bermudão preto com uma faixa vermelha na cintura.
A camisa era branca, mas parcialmente escondida por um colete preto.
Nos pés, as indefectíveis meias brancas até os joelhos.
As meninas italianas trajavam saias vermelhas, compridas e rodadas.
Suas camisas também eram brancas,
e as horrendas meias brancas até os joelhos eram tapadas pelas longas saias.
Os italianos agitavam pandeiros com fitas coloridas.
Os alemães, nada.
No máximo, acarinhavam seus suspensórios.
Queria muito estar do outro lado.
A comida era melhor
e parecia ser mais divertido.
A tarantela era alegre e agitada.
A dança que inventaram para nós lembrava um minueto fúnebre.
Aliás, nunca soube de nenhuma dança parecida no folclore germânico.
Saltinho para cá,
saltinho para lá,
menstruei.
O sangue desceu como uma avalanche.
Não demorou para chegar aos joelhos.
Quando o vi se aproximar das malditas meias brancas, não titubeei:
corri até a mesa das comidas,
saltei e sentei na polenta rústica do meu avô.
O vermelho do molho se misturou ao vermelho do sangue.
Ninguém, de novo, percebeu que eu menstruara.
Mas fui suspensa por uma semana.
Desde então, peguei horror a ser mulher.
Na vigésima vez que menstruei, era Semana da Inversão:
professores se tornavam alunos,
alunos se tornavam professores.
Eu e minha melhor amiga escolhemos dar aula de religião.
Queríamos ver todo mundo se ajoelhando e rezando.
Estávamos nos divertindo com a idéia.
Levamos a turma em procissão até a sala que escolhemos para as rezas.
Eu carregava nos braços, junto ao peito, a Santa da minha mãe.
(Ela nem desconfiava que a seqüestráramos.)
Todos tinham que se ajoelhar no chão duro e gelado
e entoar cinco pai-nossos, quatro ave-marias e dois credos.
E, depois, deviam ler, em uníssono, este trecho da Bíblia:
“Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue
e que seja fluxo de sangue do seu corpo,
permanecerá durante sete dias na impureza das suas regras.
Quem a tocar ficará impuro até a tarde.
Toda cama sobre a qual se deitar com o seu fluxo ficará impura,
todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro.
Todo aquele que tocar seu leito deverá lavar suas vestes,
banhar-se em água
e ficará impuro até a tarde.
Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.
Se algum objeto se encontrar sobre o leito
ou sobre o móvel no qual ela está assentada,
aquele que o tocar ficará impuro até a tarde.
Se um homem coabitar com ela, a impureza das suas regras o atingirá.
Ficará impuro durante sete dias.
Todo leito sobre o qual ele se deitar ficará impuro.
Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue de diversos dias,
fora do tempo das suas regras, ou se as suas regras se prolongarem,
estará no mesmo estado de impureza em que esteve durante o tempo das suas regras.
Assim será para todo leito sobre o qual ela se deitar,
durante todo o tempo de seu fluxo,
como o foi para o leito em que se deitou quando das suas regras.
Todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro, como quando das suas regras.
Quem os tocar ficará impuro, deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.
Quando estiver curada de seu fluxo,
contará sete dias,
e então estará pura.”
“No oitavo dia –”
“Basta!”, interrompeu o professor de religião.
“Vocês estão pensando o quê?”
Sem esperar resposta, ele nos pegou pelo braço
e nos arrastou até a sala do diretor.
(Isso que nem havíamos lido a parte da gonorréia.)
No caminho, menstruei.
O professor e o diretor falavam falavam falavam
e eu nem prestava atenção.
Ao levantar da cadeira, percebi que havia se formado uma pequena poça.
Uma poça vermelha.
Uma poça de sangue.
Olhei, cabisbaixa, para os dois.
Eles olharam para a cadeira e, em seguida, para mim.
E eu disse:
“Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.”
II
Uma vez, a mancha de sangue no absorvente parecia ter o formato do meu rosto.
Isso aconteceu no dia em que completei quinze anos.
Desde então, passei a ter um sonho recorrente.
Sonhava que tinha me acordado.
Precisava ir urgentemente ao banheiro,
mas não o encontrava.
Procurava-o por todo o apartamento.
Abria todas as portas com as quais deparava.
Mas nenhuma era o banheiro.
A vontade de mijar só crescia.
Pensava em me aliviar ali mesmo no corredor.
Até que notava a latrina ao meu lado.
Arregaçava a camisola,
sentava-me
e soltava um jato de urina que parecia não ter mais fim.
Ao me levantar, percebia que o fundo do vaso era puro sangue:
a cerâmica branca ficara completamente vermelha
e as paredes em volta, também brancas, tinham manchas encarnadas.
Eu me aproximava da latrina.
Espiava seu interior agora rubro:
sobre as águas sanguíneas, navegava um barquinho de papel.
O barquinho era alvo.
Dentro dele, estavam a Branca de Neve e o Príncipe −
não sei se mortos ou trepando.
III
A Santa chegou hoje aqui em casa.
Vai embora amanhã.
A vizinha da frente virá pegá-la assim que o sol nascer.
Nunca sei o que fazer com a Santa.
Desta vez, coloquei-a em cima da mesa da sala
do lado do porco de cerâmica.
Fiquei olhando para a Santa
e ela olhando para mim.
Não tínhamos nada para falar.
Foi quando percebi uns papéizinhos saindo de trás dela.
Peguei-a no colo.
Virei-a de bruços.
A Santa era oca
e tinha uma portinhola nas suas costas.
Dentro, muitos papéizinhos.
Abri um deles.
O mais amarelado e amassado.
Parecia ter sido esquecido ali.
Era um bilhete
escrito à mão
numa caligrafia de volteios:
“Minha mãezinha do céu,
eu te imploro,
me protege.”
Verônica Stigger
I
Quando pequena, fui o espelho numa encenação de Branca de Neve e os sete anões.
A peça era toda falada em inglês.
E o público, crianças monoglotas da pré-escola.
Tínhamos dez anos e mal falávamos inglês.
Aliás, mal falávamos português.
Havia um colega que dizia “largatixa” em vez de “lagartixa”.
Ele nunca adoçava o suco de uva com açúcar mascavo.
Ouvia “mascado”
e tinha nojo.
Este meu colega também sofria de incontinência urinária
e não tinha os mamilos:
em seu abdômen, só havia o umbigo.
Para nos assustar, ele levantava a camiseta
e corria atrás de nós mostrando o branco dos olhos.
Tínhamos muito medo dele.
Não lembro qual foi seu papel na peça.
Lembro quem foi o Príncipe
e lembro quem foi a Branca de Neve.
A Branca de Neve tinha alergia a lã.
Só usava roupa de tecido sintético,
especialmente um casaco azul e amarelo de náilon.
Em seus aniversários, se os colegas não levavam presentes,
ela não tinha pudores: impedia-os de entrar na festinha
e anotava os nomes dos relapsos numa caderneta cor-de-rosa.
O Príncipe era filho da professora da primeira série.
Ele se tinha em altíssima conta
e todas as meninas queriam namorar com ele.
(Menos eu.
Eu era apaixonada por outro colega:
um menino moreno, brincalhão, que morreu de leucemia aos onze anos.)
Mas não lembro mesmo o papel do meu colega sem mamilos.
Talvez tenha sido um dos sete anões,
embora eu não lembre também quem foram os outros seis.
Eu era o espelho.
Minha melhor amiga era a madrasta.
Quando a madrasta se transformava em bruxa, aí já era outra pessoa.
Também não lembro quem fazia a madrasta quando esta se transformava em bruxa.
Mas lembro que ela dizia:
“This is the poisoned apple”.
Depois, ela devia gargalhar,
muito e alto,
como bruxa de desenho animado.
Mas a menina que fazia o papel não sabia rir,
menos ainda gargalhar.
Foi outra colega que lhe ensinou.
O aprendizado se deu no banheiro, transformado em camarim.
Do lado de fora, só se ouviam as gargalhadas das duas meninas.
Ninguém mais escutava o que se dizia no palco.
A professora de inglês se irritou com a barulheira.
Interrompeu a encenação
e entrou no banheiro de vassoura em punho.
Ela queria bater nas meninas,
mas o diretor da escola a impediu.
E ela, de raiva, mordeu o lábio até sangrar.
Lembro que todos passaram dias envolvidos com a confecção do figurino
e com a elaboração da maquiagem
e com a escolha dos adereços que comporiam seus personagens.
Mas eu não,
porque eu era o espelho,
e o espelho seria um espelho de verdade.
Eu ficaria atrás do espelho.
Um espelho grande, de pé, antigo,
com moldura de madeira.
Pouco importava a roupa que usaria,
quase nada de mim apareceria na peça.
Subiria ao palco com o uniforme cinza e vermelho da escola.
Lembro que a madrasta e a bruxa usavam o mesmo vestido.
Na hora da transformação, o zíper do vestido trancou,
e a bruxa demorou quinze minutos para entrar em cena.
Sem saber o que fazer, a Branca de Neve deu uma de Gata Borralheira:
varreu e tirou o pó de todos os cantos da casa dos anões.
E as crianças, que já não estavam entendendo nada, entenderam menos ainda.
Lembro também que a madrasta perguntava ao espelho logo no início da peça:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.
E o espelho respondia:
“Her lips are like blood, her hair is like night,
her skin is like snow, her name’s Snow White”.
Algum tempo depois, inconformada, a madrasta procurava novamente o espelho:
“Mirror, mirror on the wall,
who is the fairest of us all?”.
E o espelho entregava o paradeiro da Branca de Neve:
“She is with the seven dwarfs. She will spend the night.
She is the fairest, and her name’s Snow White”.
Essas eram minhas duas falas.
Todos tinham que recitar pelo menos uma frase.
A idéia era que a turma inteira exibisse seu inglês capenga.
O problema era que não havia papel para todo mundo.
A entourage da Branca de Neve não era tão grande assim,
e nós éramos trinta e cinco na turma.
A solução: povoar a floresta.
Tinha de tudo entre a casa da madrasta e a casa dos anões.
De coruja a mendigo.
Teve até gente que foi árvore,
gente que foi banquinho de madeira.
(E a professora cogitou aumentar o número de anões.)
E todos falavam.
Falavam mal.
Mas falavam.
Na falta do que falar, delatavam a Branca de Neve.
Apontavam a casa dos anões e sussurravam à bruxa:
“She is there”.
Em geral, nosso inglês era incompreensível.
A Branca de Neve, por exemplo, nunca achava nada,
ela sempre afundava.
Ao colocar os anões para dormir, ela os cobria com merda,
em vez de lençóis.
E, ao fim da peça, o Príncipe convidava todos para a festa de suas vinte orelhas.
Os monoglotas da pré-escola não perceberam os erros de inglês.
(Afinal, eram monoglotas.)
Logo se entediaram.
Alguns bocejavam.
Outros cabeceavam.
Os mais debochados riam e cochichavam nos ouvidos uns dos outros.
Não demorou muito para começarem a jogar coisas na gente.
Primeiro, foram chicletes e bolas de papel.
Depois, lápis e gizes de cera.
A situação se tornou mais crítica quando passaram a cuspir.
Corriam como boçais para a beira do palco improvisado
e soltavam catarrões verdes e grudentos naqueles que se achavam ao alcance.
A Branca de Neve levou um catarrão na testa e ameaçou chorar.
Os anões riram às pampas.
E a bruxa arremessou sua cesta de maçãs nos monoglotas.
Alguns foram atingidos.
Outros, não.
E os debochados nos mostraram a língua.
As professoras da pré-escola se enfureceram:
queriam acabar com a peça
e mandar a bruxa para o castigo.
A professora de inglês não se abalou.
Virou-se para nós e disse com um exagerado acento britânico:
“The show must go on”.
Foi aí que menstruei.
Era minha primeira vez.
Ninguém notou.
Eu ficava atrás do espelho.
Ninguém me via.
Só me ouviam (e olhe lá).
Eu também não via ninguém.
Meu horizonte era o verso do espelho:
uma grande moldura de madeira mofada.
Nos ensaios, a idéia era que meu rosto fosse visto acima do espelho.
Mas a professora não gostou do resultado
e tirou minha cabeça de cena.
Na apresentação final, apenas oito dos meus dedos apareciam na peça.
Mesmo assim, só as pontinhas.
Os dedões, como o resto de mim, ficavam escondidos.
Todos viam o espelho,
e o espelho refletia todos −
menos a mim.
Por isso, ninguém percebeu quando menstruei.
Nem eu mesma.
Achava que tinha me mijado.
Comecei a exalar um cheiro diferente.
Um cheiro desconhecido.
Um cheiro que me lembrava podridão.
O mijo tem cheiro forte.
O sangue tem cheiro forte.
Mas o cheiro do sangue não é como o cheiro do mijo.
O sangue tem um cheiro adocicado.
Um cheiro persistente.
Um cheiro de morte.
O mijo tem um cheiro ácido.
Um cheiro passageiro.
Um cheiro de rodoviária.
Senti minhas calcinhas se ensoparem.
Não podia ser mijo.
Não cheirava como mijo.
Também não era tão líquido como o mijo.
Era mais visguento.
E eu não sentira vontade de ir ao banheiro.
Fiquei agoniada.
A peça não terminava nunca,
e as minhas calcinhas estavam cada vez mais molhadas.
Embora ninguém me visse, senti vergonha.
Eu devia estar vermelha,
como sangue.
Desde então, quando menstruo, o sangue desce feito cascata.
Se não troco seguidas vezes o absorvente, escorre pelas pernas
e forma poças dentro das minhas sapatilhas brancas de plástico.
(Uma amiga da minha mãe menstruou em pleno carnaval
e não percebeu:
suas pernas se tingiram de vermelho.)
Imagino que a menstruação excessiva se deva à ovulação igualmente excessiva.
Ou não.
Não sei.
(Minha melhor amiga um dia me disse:
“Eu ovulo muito.
Se gozarem nas minhas coxas, engravido”.)
As meninas do colégio me apelidaram de A Sanguinária.
Por causa da menstruação.
Mas não só.
Um dia, os meninos me pediram um absorvente usado.
Eu lhes dei,
e eles o colocaram na maçaneta da sala de aula.
A professora apertou aquele camundongo morto
e ficou com a mão suja de sangue.
Era a mesma professora de inglês.
Quando menstruei pela segunda vez, estava em outra apresentação.
Também na escola.
Mas agora sem o espelho.
A imigração era o tema.
Com comidas típicas,
roupas típicas,
músicas típicas,
danças típicas
e suco de uva.
A turma havia sido dividida em duas:
italianos de um lado,
alemães de outro.
Os morenos eram italianos.
Os loiros, alemães.
E a professora de história não sabia o que fazer com nossa única colega negra.
(Ela acabou do lado dos alemães.
Não por ironia.
Mas porque havia mais morenos do que loiros na turma.)
Eu fiquei do lado alemão,
porque, além de loira, tenho olhos azuis.
Mas queria ter ficado do lado italiano.
Não gosto de chucrute,
detesto cuca
e salsicha não é meu prato preferido.
Queria comer massa,
polenta
e galeto.
Todos tinham que levar um prato típico.
Um prato que a professora de história considerasse típico.
Porque nem todos os pratos eram de fato típicos.
Eu não sabia o que levar.
Minha mãe também não.
Ela nunca gostou de cozinhar.
Uma vez, ela trocou o creme de leite por leite condensado no estrogonofe.
Meu pai lavou tira por tira de filé mignon numa tentativa inútil de salvar o prato.
Acabaram dando tudo à cocker, que latia, na sacada, desgostosa com a comida.
Quando tinha festa na escola, minha mãe fazia sanduíches de presunto e queijo.
Ninguém gostava,
e eu comia todos para que ela não desconfiasse.
Daquela vez, ela teve a idéia de pedir a meu avô para preparar uma polenta.
Meu avô era filho de italiano
e fora criado por sua avó, italiana de Vicenza.
Ele fez uma de suas maravilhosas polentas rústicas,
toda recoberta com molho de tomate cozido durante horas
e enfeitada com lascas de parmesão e folhas de manjericão fresco.
Só tinha um senão: não era nada alemã.
Para minha mãe, não havia problema.
Ninguém iria notar.
Mas a professora de história notou
e teve um chilique.
Falou em jogar tudo fora e me suspender da atividade.
Comecei a chorar.
Torrencialmente.
Não sei de onde vinham tantas lágrimas.
Soluçava alto.
Dizia que me arrependia amargamente
de ter levado a polenta rústica.
Caí de joelhos no chão
e perguntava, repetidas vezes,
com os braços erguidos:
“Por que não fizeram salsicha bock para eu trazer?
Por que não lingüiça?
Por que não chucrute?”
A professora de história pedia que eu me acalmasse.
Nada aconteceria comigo.
Ela me prometia.
E buscava conter sua impaciência
batendo com força sua plataforma de cortiça
no assoalho de madeira do hall do colégio.
Sequei as lágrimas com as costas das mãos,
lambi o ranho que escorria do nariz
e funguei.
Se não havia castigo,
estava tudo bem.
E perdoei mais uma vez em segredo a total falta de noção da minha mãe.
Chegara a hora das danças.
Toda a turma estava dividida em pares.
Em geral, meninos com meninas.
No entanto, nunca sobravam meninos para fazer par comigo.
Sempre fui uma das mais altas da turma.
E os meninos, nesta idade, continuavam tampinhas.
Acabava sendo obrigada a dançar com uma menina −
invariavelmente, uma varapau como eu
(naquela época, também me chamavam Poste).
Na apresentação organizada pela professora de história,
os italianos dançavam tarantela,
os alemães se vestiam de tiroleses (que, descobri depois, nem alemães eram).
Mas nem a tarantela nem as vestes tirolesas
eram típicas dos imigrantes que foram para o Sul.
A professora de história tinha uma versão muito particular da história.
Eu vestia camisa branca sob uma jardineira verde, curta e rodada.
Duas grossas tranças circundavam minha cabeça,
e meias brancas subiam até meu joelho.
Os meninos alemães estavam de bermudão verde com suspensório.
Por baixo, usavam uma camisa branca,
e meias brancas também subiam até seus joelhos.
Os meninos italianos vestiam um bermudão preto com uma faixa vermelha na cintura.
A camisa era branca, mas parcialmente escondida por um colete preto.
Nos pés, as indefectíveis meias brancas até os joelhos.
As meninas italianas trajavam saias vermelhas, compridas e rodadas.
Suas camisas também eram brancas,
e as horrendas meias brancas até os joelhos eram tapadas pelas longas saias.
Os italianos agitavam pandeiros com fitas coloridas.
Os alemães, nada.
No máximo, acarinhavam seus suspensórios.
Queria muito estar do outro lado.
A comida era melhor
e parecia ser mais divertido.
A tarantela era alegre e agitada.
A dança que inventaram para nós lembrava um minueto fúnebre.
Aliás, nunca soube de nenhuma dança parecida no folclore germânico.
Saltinho para cá,
saltinho para lá,
menstruei.
O sangue desceu como uma avalanche.
Não demorou para chegar aos joelhos.
Quando o vi se aproximar das malditas meias brancas, não titubeei:
corri até a mesa das comidas,
saltei e sentei na polenta rústica do meu avô.
O vermelho do molho se misturou ao vermelho do sangue.
Ninguém, de novo, percebeu que eu menstruara.
Mas fui suspensa por uma semana.
Desde então, peguei horror a ser mulher.
Na vigésima vez que menstruei, era Semana da Inversão:
professores se tornavam alunos,
alunos se tornavam professores.
Eu e minha melhor amiga escolhemos dar aula de religião.
Queríamos ver todo mundo se ajoelhando e rezando.
Estávamos nos divertindo com a idéia.
Levamos a turma em procissão até a sala que escolhemos para as rezas.
Eu carregava nos braços, junto ao peito, a Santa da minha mãe.
(Ela nem desconfiava que a seqüestráramos.)
Todos tinham que se ajoelhar no chão duro e gelado
e entoar cinco pai-nossos, quatro ave-marias e dois credos.
E, depois, deviam ler, em uníssono, este trecho da Bíblia:
“Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue
e que seja fluxo de sangue do seu corpo,
permanecerá durante sete dias na impureza das suas regras.
Quem a tocar ficará impuro até a tarde.
Toda cama sobre a qual se deitar com o seu fluxo ficará impura,
todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro.
Todo aquele que tocar seu leito deverá lavar suas vestes,
banhar-se em água
e ficará impuro até a tarde.
Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.
Se algum objeto se encontrar sobre o leito
ou sobre o móvel no qual ela está assentada,
aquele que o tocar ficará impuro até a tarde.
Se um homem coabitar com ela, a impureza das suas regras o atingirá.
Ficará impuro durante sete dias.
Todo leito sobre o qual ele se deitar ficará impuro.
Quando uma mulher tiver um fluxo de sangue de diversos dias,
fora do tempo das suas regras, ou se as suas regras se prolongarem,
estará no mesmo estado de impureza em que esteve durante o tempo das suas regras.
Assim será para todo leito sobre o qual ela se deitar,
durante todo o tempo de seu fluxo,
como o foi para o leito em que se deitou quando das suas regras.
Todo móvel sobre o qual se assentar ficará impuro, como quando das suas regras.
Quem os tocar ficará impuro, deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.
Quando estiver curada de seu fluxo,
contará sete dias,
e então estará pura.”
“No oitavo dia –”
“Basta!”, interrompeu o professor de religião.
“Vocês estão pensando o quê?”
Sem esperar resposta, ele nos pegou pelo braço
e nos arrastou até a sala do diretor.
(Isso que nem havíamos lido a parte da gonorréia.)
No caminho, menstruei.
O professor e o diretor falavam falavam falavam
e eu nem prestava atenção.
Ao levantar da cadeira, percebi que havia se formado uma pequena poça.
Uma poça vermelha.
Uma poça de sangue.
Olhei, cabisbaixa, para os dois.
Eles olharam para a cadeira e, em seguida, para mim.
E eu disse:
“Todo aquele que tocar um móvel, qualquer que seja, onde ela tiver se assentado,
deverá lavar suas vestes, banhar-se em água,
e ficará impuro até a tarde.”
II
Uma vez, a mancha de sangue no absorvente parecia ter o formato do meu rosto.
Isso aconteceu no dia em que completei quinze anos.
Desde então, passei a ter um sonho recorrente.
Sonhava que tinha me acordado.
Precisava ir urgentemente ao banheiro,
mas não o encontrava.
Procurava-o por todo o apartamento.
Abria todas as portas com as quais deparava.
Mas nenhuma era o banheiro.
A vontade de mijar só crescia.
Pensava em me aliviar ali mesmo no corredor.
Até que notava a latrina ao meu lado.
Arregaçava a camisola,
sentava-me
e soltava um jato de urina que parecia não ter mais fim.
Ao me levantar, percebia que o fundo do vaso era puro sangue:
a cerâmica branca ficara completamente vermelha
e as paredes em volta, também brancas, tinham manchas encarnadas.
Eu me aproximava da latrina.
Espiava seu interior agora rubro:
sobre as águas sanguíneas, navegava um barquinho de papel.
O barquinho era alvo.
Dentro dele, estavam a Branca de Neve e o Príncipe −
não sei se mortos ou trepando.
III
A Santa chegou hoje aqui em casa.
Vai embora amanhã.
A vizinha da frente virá pegá-la assim que o sol nascer.
Nunca sei o que fazer com a Santa.
Desta vez, coloquei-a em cima da mesa da sala
do lado do porco de cerâmica.
Fiquei olhando para a Santa
e ela olhando para mim.
Não tínhamos nada para falar.
Foi quando percebi uns papéizinhos saindo de trás dela.
Peguei-a no colo.
Virei-a de bruços.
A Santa era oca
e tinha uma portinhola nas suas costas.
Dentro, muitos papéizinhos.
Abri um deles.
O mais amarelado e amassado.
Parecia ter sido esquecido ali.
Era um bilhete
escrito à mão
numa caligrafia de volteios:
“Minha mãezinha do céu,
eu te imploro,
me protege.”
Verônica Stigger
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