os dias passaram sem sinais no horizonte. nesse tempo costumava levantar-me e recolher-me cedo, a minha vida pertencia-me sem contemplações. era raro aparecer alguém e apenas os gatos que iam e vinham me faziam por vezes companhia. por isso, desde o momento em que recebi o telefonema, a impaciência instalou-se. dei em percorrer as estantes da cozinha onde tinha armazenado víveres que já tinha esquecido, vasculhei armários até ao fundo defrontado-me com textos que não queria ter voltado a ler, fui de encontro ao espaço silencioso da casa, há muito enterrado entre os meus afazeres. «Na semana que vem vou aí Vítor», a frase soou como um espasmo confuso e constrangido. deixei de conseguir trabalhar, as horas das refeições sucediam-se sem que desse por elas, quando encontrei o meu cachimbo voltei a fumar. nem era que pensasse muito nela, mas a ansiedade devorava-me mesmo assim. não apareceu nessa semana, mas na seguinte. o tempo estava húmido, o céu cinzento, havia um vento gélido, muito fino. fui encontrá-la no patamar, desajeitada a sair do carro com embrulhos e um chapéu. sorri-lhe, ela não me sorriu de volta, não sei se por estar tão aflita com tantas coisas entre as mãos. desci, abracei-a colocando os braços à volta dela e das coisas, ela pousou a cabeça no meu peito sem largar nada. peguei nos embrulhos e contornámos a casa pelo piso de baixo, para que ela pudesse ver o mar. deixei-a aí e entrei para me livrar do que tinha nas mãos, voltando logo em seguida. ela estava na mesma posição e com o mesmo semblante, impassível. tinha a pele muito branca, fresca, um pouco descaída pelas rugas, e o cabelo curto castanho escuro, não sei se pintado, mas que lhe ficava bem, talvez ainda melhor do que quando o tinha comprido e usava trança. apesar de usar um casaco de lã, o vestido negro florido, de um tecido muito leve, parecia não ser suficientemente quente para o dia que se estava a por, mas ela não tremia. olhava em frente para a massa azul escura agitada e permanecia quieta e calada. avancei para ficar de pé ao lado dela. sem nunca olhar para mim, voltou a aninhar-se no meu peito e chorou como uma criança. levei-a para dentro e deixei-a sentada na sala. enquanto fazia o almoço, as memórias irrompiam às golfadas e eu sentia-me afogar. «O que tens escrito?», ouvi-a perguntar subitamente à porta da cozinha.
«Por acaso, estou a terminar um livro.»
«Sobre quê?»
«A altura em que nos separámos com outras histórias à mistura.»
«Falas dela?»
«Falo.»
«Se calhar devia vir para aqui contigo.»
«Não te adaptarias ao clima e ao desterro.»
«Nunca mais li nada teu, sabes.»
«Não sabia. Mas ainda escrevo para ti.»
«Isso são coisas que tu dizes. Foste tu que te foste embora, lembro-te.»
«Não me esqueci.»
«Não tens nenhuma fotografia em casa.»
«Para quê?»
«Não tens saudades dela?»
«Não.»
«E minhas?»
«Ana, na verdade, também não.»
«Sempre foste um egoísta, o desterro fica-te bem.»
não respondi. servi o almoço em cima de uma toalha de linho branco, a única que tinha, sabendo que ela iria gostar e, depois de duas garrafas de vinho, o nervosismo passou. receei que ela começasse a falar do passado, o que não aconteceu e, portanto, convidei-a a passar a noite. senti-me feliz pela primeira vez em muito tempo quando, em resposta, olhou para mim semicerrando os olhos. não voltei a vê-la desde então. o que parecia sujo, passou a estar revestido de uma neutralidade pacificadora, envelheci, as mulheres deixaram de me visitar. a expressão possível da claridade ou da verdade tornou-se tão obscura que já não escrevo para ninguém. sou um cego que escreve hieróglifos diante do oceano. não se pode refazer aquilo que a noite desfaz sem cessar.
17 de junho de 2017
15 de junho de 2017
reparámos no cão ferido ao mesmo tempo e, sem interromper a conversa, abrandámos o passo. nenhum de nós sabia o que fazer. se fossemos a conduzir parávamos o carro?, ocorreu-me. ela baixou-se para observar melhor o estado do animal que respirava com dificuldade. depois voltou a levantar-se, constatando que nada havia a fazer para o salvar. «ligamos a um veterinário?», «sim, ligamos a alguém», respondi com uma certa displicência, pois, sendo feriado, ambos sabíamos que não ia ser fácil encontrar alguém disposto a vir por termo ao sofrimento do animal. foi por isso com surpresa que, à primeira chamada, ouvimos um sim. no tempo que tivemos de esperar fomos deixando de ter assunto, os silêncios tornaram-se cada vez mais longos e mais incómodos. o cão continuava vivo em cima da poça de sangue e, ainda que desconhecêssemos os benefícios de ter um animal de companhia, a sua dor foi-se entranhando em nós. despedimo-nos com uma espécie de nojo em tocar um no outro, o que costumávamos fazer naturalmente e até disso tirando proveito. pelo caminho, já sozinho, pensava que não sabia porque não se faz o mesmo aos humanos. nunca voltámos a falar disso mas a lembrança do cão moribundo ficou sempre entre nós, como um vulto ou uma sombra funesta e grosseira. creio que foi isso que acabou por impedir que a nossa proximidade se aprofundasse.
14 de junho de 2017
ela serviu o chá em silêncio, as cortinas ondulavam com o vento que passava através das portas abertas para o quintal. um cão latia ao longe, as cigarras cantavam. enquanto dávamos os primeiros goles, desviámos o olhar para dentro, para nenhures. perguntei de onde vinha o chá, elogiei-o. ela respondeu que era marroquino, que a irmã lhe tinha oferecido há pouco tempo, depois de uma viagem. «é realmente muito bom», disse-lhe. sem saber como chegar ao assunto, perguntei imediatamente a seguir: «quanto tempo tens?». «cerca de um mês», respondeu-me, sem balbuciar nem mostrar surpresa. «tens dores?», «não». levantou-se. dirigiu-se ao quintal, como se tivesse esquecido o chá e eu próprio. levantei-me também e prendi-lhe o cabelo atrás da nuca. fizemos amor e, contra as minhas expetativas, não encontrei feridas no corpo dela inchado pelo calor, apenas alguns sinais do tempo que me excitaram ainda mais. na verdade, era ainda uma mulher jovem, os anos passaram mais entre nós do que sobre ela. fumámos os dois o mesmo cigarro e rimos. «apetece-me ficar quieto ao pé de ti, aqui em tua casa, muitas horas.» olhou para mim sem saber o que dizer, como se receasse que eu não compreendesse a lógica que se tinha imposto. desviei o olhar. bebemos e voltámos a fazer amor, agora com menos pudor ainda. tomámos banho juntos, rimos. o sexo prolongou-se noite dentro, divertidos, uma ternura antiga abria-se entre nós. no dia seguinte, depois de tomarmos o pequeno almoço, vesti-me, peguei na chave, disse-lhe «até já», beijei-a. ela acenou levemente e de repente disse «espera», desaparecendo dentro da casa. voltou trazendo na mão uma caixa de madeira. «o que é?», «depois vês em casa». mal entrei no carro abri-a. tinha cartas com mais de vinte anos que nunca tinha chegado a receber, fotografias, um diário. arranquei, a manhã de neblina oferecia-me espaço para pensar. uma pergunta afligia-me o espírito: porque é que não nos aproximámos antes?
13 de junho de 2017
festas, segredos, ameaças, um júbilo desconcertante, alimentam os meus sonhos. acordar deles é ao mesmo tempo um alívio e um esforço, e nunca sei o que é real, se a vigília se aquilo com que sonhei. seja como for, num caso como no outro, estou sempre à procura de algo que não encontro e, assim, não é tão significativa a diferença que os separa: é o que obscura a divisão que me intriga, como se nela houvesse um terceiro mundo em que ambos se juntam, que porventura fosse o mais real de todos. dizem que quando pintava, Salvador Dalí se deixava adormecer em frente à tela com uma colher na mão pousada no joelho. por baixo colocava um balde de água e, quando a colher caía na água, pintava o que tinha visto durante a impercetível transição entre o estado desperto e o sono. poderíamos pensar que coisas como esta talvez só tivessem lugar no âmbito do surrealismo, que não é feito de sentidos imediatos e privilegia as intrusões na psique, mas também cientistas e filósofos têm trazido revelações estruturantes dos seus sonhos. tudo se passa como se de facto a lucidez não pudesse passar-se deles. e contudo, o que sabemos deles? desde logo, a consciência — de nós próprios mas também do ambiente em que nos encontramos — parece ser impreterivelmente mais aguda, mais preenchida. se permanecem enigmáticos, mesmo quando pensamos ter aprendido a sua língua, talvez seja porque a imaginação não se encerra na descrição da vida ou da morte, que define o nosso tempo e o nosso espaço. a relação ambígua que mantemos com eles demonstra que somos meros rumores das nossas ficções.
durante anos deixei de o ver. não o procurei e creio que ele também não me procurou, a acreditar naquilo que deveras não sei. nesse tempo, fomos estranhos um para o outro mesmo quando pensámos um no outro. o pouco que dele recordei foram pequenos olhares sem importância, palavras ocasionais, um rosto antigo onde nada se lia. hoje vi-o. não o chamei. vi-o passar do outro lado da rua, caminhava rapidamente, sozinho, com um olhar assertivo e compenetrado, vestia umas calças de ganga e um casaco azuis. ocorreu-me imediatamente que pode bem ter sido a última vez que o vi e um prazer súbito mas incompreensível assomou ao meu espírito. não pensei em mais nada até que desaparecesse ao fundo da rua contornando uma esquina, mas agora que estou a salvo interrogo-me: o que fez o meu coração disparar? que fragilidade insuperável se instalou sem o envolver? pouco mais somos que fogos involuntários cuja existência só é revelada quando tudo ardeu.
2 de junho de 2017
30 de maio de 2017
25 de maio de 2017
23 de maio de 2017
mal entrámos em casa dirigiu-se ao frigorífico, que abriu e observou longamente, e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, tinha aberto todos os armários para procurar chávenas de café. sem tempo de reagir, percebi, um pouco confusamente, que ela gostava de invadir mas não de se revelar. na minha casa arrumada por devassar, usava a sua força e despudor como uma capa que eu observava atentamente mas pela qual me desinteressava. desconhecia portanto, concluí, que tudo está a descoberto. talvez por isso, tinha facilidade em criar relações instantaneamente, a maioria das quais, supus, como aquela que havia acabado de nascer entre nós, não passavam de um envolvimento superficial ou mesmo — eis o meu terror — equívoco. a comparação com ele foi inevitável. também ele tinha invadido a minha casa antes, quando a visitou pela primeira vez, descalçando-se imediatamente, abrindo o frigorífico e os armários, demorando-se em todos os cantos onde havia livros e instalando-se confortavelmente no sofá como se este já lhe conhecesse o peso e as formas. ao contrário dela, ele usava e abusava de tudo o que pudesse forjar a mínima centelha de emoção, dirigindo-se a mim totalmente exposto, como se nisso gozasse de um certo prazer. disse-me, não muito tempo depois, que na exibição das suas fraquezas havia uma violência inescapável que as transformava no seu lado bom. essa violência atraía-me e dava azo a uma brandura, por exemplo no sexo, conferindo ao amor elasticidade. perante a exposição da sua fragilidade, a minha própria fragilidade cresceu: diante dele sentia-me como uma criança, indefesa e desprotegida, e era assim que me queria manter, como se houvesse alcançado um refúgio seguro onde me encontrava, com ele, do avesso. entre ela e ele havia portanto esta diferença, entre quem se revela e quem se esconde, quem se deixa sucumbir e quem se protege, quem mergulha e quem fica na margem a observar o rio que corre.
Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua
arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia,
um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,
desencadeiam
abruptamente o ritmo.
— Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca
numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da terra.
arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia,
um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,
desencadeiam
abruptamente o ritmo.
— Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca
numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da terra.
Herberto Helder, in A Última Ciência.
18 de maio de 2017
em dias de vento intenso como o de hoje, lembro-me sempre de um dia de tempestade há mais de trinta anos atrás. a minha irmã e eu levávamos a bata azul do colégio por cima da roupa, uma mochila e um chapéu de chuva cada uma. o céu estava negro quando saímos de casa, ameaçador, mas num instante estaríamos na escola. de mão dada, subimos a ladeira e os pingos começaram a cair, passando rapidamente a uma bátega que, apesar da proteção, encharcou as roupas e os sapatos. quando chegámos ao "Rossio", um amplo descampado de terra batida que tínhamos de atravessar, o vento surpreendeu-nos: vinha, em tufões, de todos os lados. como os nossos corações batiam em uníssono, eu soube que a minha irmã teve medo e a minha irmã soube que tive medo. a meio do baldio, o extraordinário acontece: uma lufada de vento levanta-me do chão. com o chapéu de chuva na mão, durante uns segundos, fui como um balão na mão da minha irmã. olhávamos uma para a outra incrédulas quando, diligente como sempre foi, a minha irmã me dá um puxão com força para voltar ao chão. nos nossos olhos havia agora a certeza de que ninguém acreditaria se contássemos. acho que nunca o fizemos.
11 de maio de 2017
e ali mesmo, diante do olhar de todos, ela levantou-se para ir à casa de banho com o tampão na mão. não o escondeu no bolso, não o levou numa carteira, não procurou fugir aos olhares: no final da reunião tirou-o da mala descontraidamente, continuando a falar. o gesto foi para mim de tal modo inaugurador, que não consegui disfarçar um ligeiro sorriso nem tirar os olhos dela enquanto atravessava a sala. a chave do feminismo estava ali. quem de entre nós mostra o penso ou o tampão na mão quando o vai mudar? quis fazê-lo imediatamente. contudo, havia tanto que ter em conta. mostrar o objeto é mostrar que se sangra, é mostrar o próprio sangue. fazê-lo em família, no trabalho, com os amigos, no café, no comboio, num jantar, em que situações estaria pronta a fazê-lo e, sobretudo, em que situações me proibiria de o fazer? testei-me. eu, que sempre tinha escondido esses utensílios dos olhares, passei a fazer do momento da troca um acontecimento carregado de intencionalidade e revestido de declaração política. ainda hoje é.
6 de maio de 2017
quero ir numa exploração à Mongólia, caminhar em silêncio contra mil ventos, apagando aos poucos a lembrança de onde vim e fixar o horizonte como uma eternidade sem destino. lá, serei como o cavalo, sábio e forte, encostarei a cara à terra, cuja modulação erótica e apocalíptica me atacará ferozmente, emocionando-me como uma ausência. a alucinação dos sons bate-me no corpo e o seu ritmo, árido e metafísico, leva-me ao fundo do tempo onde há carência de tudo menos da morte. caminharei com um amigo em silêncio, comerei com ele, e, juntos, inventaremos a alegria que ninguém toca por ser uma perigosa proliferação de universos. quando voltar, deixarei a mão direita no meu lugar, com a sua vocação para viver entre a germinação das formas. não procurarei ninguém e ninguém me procurará. sento-me à varanda da minha casa a apreciar a nespereira do jardim diante carregada de fruta que cairá antes de ser colhida, e tudo — sol, céu, nuvem, chuva, calor e frio —, será como uma anunciação.
Como
o ruído era para ele, antes da surdez, a forma perceptível que a causa
de um movimento revestia, os objetos movidos sem ruído parecem sê-lo sem
causa; despojados de toda a qualidade sonora, mostram uma atividade
espontânea, parecem viver; movem-se, imobilizam-se, pegam fogo sozinhos.
Sozinhos levantam voo como os monstros alados da Pré-história.
Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, volume III – O lado de Guermantes.
Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, volume III – O lado de Guermantes.
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