14 de setembro de 2013
Não houve em toda a minha vida nada mais importante do que ter tido uma irmã. A autobiografia não me interessa, a biografia interessa-me o suficiente. Tenho muitas histórias que aguardam o seu momento, que aguardam que os anos passem para as publicar, quando possam ser apenas um conto, literatura. Da minha irmã contudo, não consigo dizer nada. É a minha ficção mais profunda. Aquela que me devolve a minha própria imagem. A que vive onde não há nada, no espaço sem eco da grande incógnita.
11 de setembro de 2013
Não sei se o mesmo acontece na vossa família mas na minha família há algumas histórias que são contadas à mesa repetidamente, nas poucas reuniões que ainda fazemos anualmente. São sempre as mesmas histórias, não muitas. Cada pessoa tem duas ou três histórias preferidas e a mesma pessoa a conta durante algum tempo, ou seja, ao longo de alguns anos. Por assim dizer, calha na conversa. Não é que decidamos «agora vamos para ali contar histórias antigas». Mas não sei se é natural e menos ainda posso assegurar que seja espontâneo. É um ritual que nos liga a todos e que serve para alimentar essa ligação. Penso que há como uma necessidade que nos constringe ao momento, mais ou menos raro por ser anual, e à escolha de palavras que vamos usar, porque estamos a lidar com coisas que por vezes já não lembramos bem. Somos todos muito atentos a esse momento e a essas palavras. Ninguém se levanta, ou se levanta, mantém o ouvido à mesa. Estas histórias renovam-se lentamente. A primeira renovação chega pela pessoa que a conta. Se a princípio foi a minha mãe ou o meu pai que ouvimos contarem a história que vou contar a seguir, mais tarde, aos poucos, outras pessoas começaram a contá-la. A pessoa que a conta parece por vezes usá-la como homenagem à pessoa de quem se fala na história ou então parece querer fazer reviver o acontecimento, e em primeiro para o reapresentar a si próprio. A segunda renovação chega pelo nascimento. Um filho, um neto, um sobrinho, um bebé faz renovar a vida de uma família essencialmente porque as histórias são novas. É assim que, nos almoços e jantares de Natal, de Páscoa, de alguns aniversários mas também nos funerais, nos vemos uns aos outros a pensar através das ficções que vamos narrando uns aos outros.
Aos cerca de 3, 4 anos eu não conseguia dormir. Não era falta de conforto nem preocupações nem medo do escuro a tirarem-me o sono. Os meus pais não conseguiam encontrar a razão. Eu não chorava nem me queixava, apenas não dormia. O médico também não soube explicar e não havia outra criança que sofresse do mesmo mal com quem os meus pais me pudessem comparar. Ora, o meu pai gostava de ver a TV2. Na altura havia um ciclo de filmes semanais (que entretanto regressou) que se chamava o Cinco Noites, Cinco Filmes e que consistia em cinco filmes sobre uma determinada temática ou autor ou protagonista a emitir nas cinco noites dos dias de semana à mesma hora. Assim, por exemplo, houve a semana dos Westerns e a semana do Hitchcock, a semana do cinema italiano, a semana do cinema francês, e por aí fora. A luz ficava apagada com a sala iluminada apenas pelo écrã. O meu pai sentava-se no sofá mais perto da televisão e eu queria sempre ficar mas era forçada a ir para a cama enrolar caracóis. Lembro-me de ficar a ouvir o filme, de olhos abertos, até adormecer; ouvia-se um ruído de electricidade para além do som do próprio filme. Até que um dia os meus pais me deixaram ficar.
Nesse dia estava sentada no sofá grande, oposto à televisão. Eles perguntaram se eu queria ficar, eu disse que sim sem um som, com a cabeça. Eles estavam os dois à porta, os dois a fechar juntos a porta, já do lado do corredor, com a porta meio fechada. O meu pai disse à minha mãe «Não te preocupes, não faz mal» e a minha mãe ainda preocupada acabou por aceder. Senti alívio. O alento de quem fica livre. Escondi-o profundamente porque não queria que mo voltassem a levar.
Então comecei a sentar-me ali praticamente todos os dias da semana até aos 18 anos. Ficava a ver os filmes e quando a sessão acabava desligava a televisão e ía para a cama. E foi assim que vi pela primeira vez filmes de terror, sozinha, no escuro, com 3 ou 4 anos. A minha irmã, que ao contrário de mim era muito medrosa, não queria nem ouvir falar disso. Só a sugestão do tema (como «filme de...») já a assustava ao ponto de não conseguir ela dormir ou começar a chorar. Ela sonhava com o terror que não queria imaginar. Nos olhos da minha mãe vi inverosimilhança durante muito tempo. Depois foi ela quem transformou a história em piada a ser contada à mesa anualmente. Transformou em piada o que saía da norma e que ela não conseguia entender. Ainda hoje ela diz que não percebe como eu conseguia ver aquilo sozinha e afirma peremptoriamente que nunca viu outra criança a fazê-lo. Uma criança a ver filmes de terror impressionou toda a gente mas, não sei porquê, a impressão que esses filmes me causavam a mim era tão excitante que era impossível ter medo. O que eu via era tão surreal, tão surpreendente e por vezes tão poético, que me acontecia frequentemente rir. Lembro-me da descoberta desse pensamento fundador de que a criatividade torna tudo possível enquanto via um deles.
Não sei porquê, nunca mais vi filmes de terror. Todo o entusiasmo que em criança tinha por eles se desfez. Mas o hábito fez-se e vi outros filmes. Também vi filmes com bolinha. Enquanto crescia vi os filmes de Bergman, de Tarkovski, os musicais americanos, o Eisenstein, o Chaplin, o Manoel de Oliveira, a Marylin, o Woody Allen e outros na televisão da casa dos meus pais, sozinha. Filmes que continuei a ver e a rever. Na cidade onde nasci, um deserto menos movimentado que o Sahara, onde à época nem havia cinema, este hábito teve o seu quê de salvífico. Talvez por isso a história surja à mesa quando alguém quer falar de mim.
Aos cerca de 3, 4 anos eu não conseguia dormir. Não era falta de conforto nem preocupações nem medo do escuro a tirarem-me o sono. Os meus pais não conseguiam encontrar a razão. Eu não chorava nem me queixava, apenas não dormia. O médico também não soube explicar e não havia outra criança que sofresse do mesmo mal com quem os meus pais me pudessem comparar. Ora, o meu pai gostava de ver a TV2. Na altura havia um ciclo de filmes semanais (que entretanto regressou) que se chamava o Cinco Noites, Cinco Filmes e que consistia em cinco filmes sobre uma determinada temática ou autor ou protagonista a emitir nas cinco noites dos dias de semana à mesma hora. Assim, por exemplo, houve a semana dos Westerns e a semana do Hitchcock, a semana do cinema italiano, a semana do cinema francês, e por aí fora. A luz ficava apagada com a sala iluminada apenas pelo écrã. O meu pai sentava-se no sofá mais perto da televisão e eu queria sempre ficar mas era forçada a ir para a cama enrolar caracóis. Lembro-me de ficar a ouvir o filme, de olhos abertos, até adormecer; ouvia-se um ruído de electricidade para além do som do próprio filme. Até que um dia os meus pais me deixaram ficar.
Nesse dia estava sentada no sofá grande, oposto à televisão. Eles perguntaram se eu queria ficar, eu disse que sim sem um som, com a cabeça. Eles estavam os dois à porta, os dois a fechar juntos a porta, já do lado do corredor, com a porta meio fechada. O meu pai disse à minha mãe «Não te preocupes, não faz mal» e a minha mãe ainda preocupada acabou por aceder. Senti alívio. O alento de quem fica livre. Escondi-o profundamente porque não queria que mo voltassem a levar.
Então comecei a sentar-me ali praticamente todos os dias da semana até aos 18 anos. Ficava a ver os filmes e quando a sessão acabava desligava a televisão e ía para a cama. E foi assim que vi pela primeira vez filmes de terror, sozinha, no escuro, com 3 ou 4 anos. A minha irmã, que ao contrário de mim era muito medrosa, não queria nem ouvir falar disso. Só a sugestão do tema (como «filme de...») já a assustava ao ponto de não conseguir ela dormir ou começar a chorar. Ela sonhava com o terror que não queria imaginar. Nos olhos da minha mãe vi inverosimilhança durante muito tempo. Depois foi ela quem transformou a história em piada a ser contada à mesa anualmente. Transformou em piada o que saía da norma e que ela não conseguia entender. Ainda hoje ela diz que não percebe como eu conseguia ver aquilo sozinha e afirma peremptoriamente que nunca viu outra criança a fazê-lo. Uma criança a ver filmes de terror impressionou toda a gente mas, não sei porquê, a impressão que esses filmes me causavam a mim era tão excitante que era impossível ter medo. O que eu via era tão surreal, tão surpreendente e por vezes tão poético, que me acontecia frequentemente rir. Lembro-me da descoberta desse pensamento fundador de que a criatividade torna tudo possível enquanto via um deles.
Não sei porquê, nunca mais vi filmes de terror. Todo o entusiasmo que em criança tinha por eles se desfez. Mas o hábito fez-se e vi outros filmes. Também vi filmes com bolinha. Enquanto crescia vi os filmes de Bergman, de Tarkovski, os musicais americanos, o Eisenstein, o Chaplin, o Manoel de Oliveira, a Marylin, o Woody Allen e outros na televisão da casa dos meus pais, sozinha. Filmes que continuei a ver e a rever. Na cidade onde nasci, um deserto menos movimentado que o Sahara, onde à época nem havia cinema, este hábito teve o seu quê de salvífico. Talvez por isso a história surja à mesa quando alguém quer falar de mim.
10 de setembro de 2013
8 de setembro de 2013
A contraste do pensamento abstracto, o problema do pensamento analítico é o mesmo do nazismo: a assumpção de primazia. É o pensamento dos mercados, totalizante, sintético, redutor. As perguntas sem resposta, como aquelas que as crianças formulam, não têm aqui lugar. Mas mais do que reduzir a interrogação a uma fórmula que não admite divisões, o pensamento lógico exceptua o pensamento alheio. Não é só a diversidade que está em causa mas a capacidade da dúvida, enquanto matéria criadora. O saber unívoco está sob a grande ameaça do poder.
Daí que o grande projecto da lógica tenha sido sempre a instauração de um sistema de linguagem, uma linguagem analítica que destruísse os problemas filosóficos (coisas estranhas que não se podem conhecer como a estética, a ética, o significado da vida e a fé). Trata-se portanto de um projecto de selecção. Uma selecção pela linguagem. O critério é muito simples: o teu problema ou é falso ou é verdadeiro e pode ou não pode ser verificado. Caso não entre nestes critérios, caput, o teu problema não existe. É essa grande frase de Wittgenstein, corrijam-me à-vontade pois vou citar de cor, "O que pode ser dito pode ser dito claramente mas aquilo de que não podemos falar devemos calar. O que está oculto não interessa.", (devo ter comido umas palavras mas é este o sentido).
O que me irrita – e me fez levar a lógica na garganta tantos anos – é que estes rapazes passam a vida a querer que a gente imagine coisas. Situações, proposições, na lógica analítica nada é feito sem o auxílio da imaginação. Podia ser literatura. Podíamos fazer com a lógica o que o Italo Calvino fez com as cartas de tarôt, quando pegou nelas sem saber nada de tarôt para contar uma história a partir das gravuras nelas inscritas. E a imaginação não é passível de demonstrações verificáveis. Uma coisa é o quotidiano, outra coisa é a vida onde esse quotidiano se dá.
Daí que o grande projecto da lógica tenha sido sempre a instauração de um sistema de linguagem, uma linguagem analítica que destruísse os problemas filosóficos (coisas estranhas que não se podem conhecer como a estética, a ética, o significado da vida e a fé). Trata-se portanto de um projecto de selecção. Uma selecção pela linguagem. O critério é muito simples: o teu problema ou é falso ou é verdadeiro e pode ou não pode ser verificado. Caso não entre nestes critérios, caput, o teu problema não existe. É essa grande frase de Wittgenstein, corrijam-me à-vontade pois vou citar de cor, "O que pode ser dito pode ser dito claramente mas aquilo de que não podemos falar devemos calar. O que está oculto não interessa.", (devo ter comido umas palavras mas é este o sentido).
O que me irrita – e me fez levar a lógica na garganta tantos anos – é que estes rapazes passam a vida a querer que a gente imagine coisas. Situações, proposições, na lógica analítica nada é feito sem o auxílio da imaginação. Podia ser literatura. Podíamos fazer com a lógica o que o Italo Calvino fez com as cartas de tarôt, quando pegou nelas sem saber nada de tarôt para contar uma história a partir das gravuras nelas inscritas. E a imaginação não é passível de demonstrações verificáveis. Uma coisa é o quotidiano, outra coisa é a vida onde esse quotidiano se dá.
6 de setembro de 2013
La croissance à l'absence du désir habite tout
enfant. Tout créateur est un enfant habité pour le désir dont il faudra
faire le deuil.
Marie-José Mondzain, Cultura do Possível e Fundação da Vida Pública, conferência na Fundação Calouste Gulbenkian.
O mais terrível dos crimes é a obliteração do real. E o desejo é o que cumpre plenamente a obliteração do real. Com a sua solidão inexaurível, a loucura mantém com o real uma relação de forças nostálgica.
Marie-José Mondzain, Cultura do Possível e Fundação da Vida Pública, conferência na Fundação Calouste Gulbenkian.
O mais terrível dos crimes é a obliteração do real. E o desejo é o que cumpre plenamente a obliteração do real. Com a sua solidão inexaurível, a loucura mantém com o real uma relação de forças nostálgica.
O André Téchiné tem um filme chamado Les
Voleurs onde a certa altura uma personagem diz uma frase que me entrou
pelos ouvidos como um comboio: «nous ne faisons que remplacer». Hoje um
amigo disse-me a mesma coisa: «estamos sempre a substituir». Fez-me
lembrar uma carta que tem uma frase que sei de cor desde que a li a
primeira vez. Recebi-a na véspera do meu casamento e dizia o seguinte:
«Pessoas como tu e eu — e escrevo-te isto com as mãos a tremer — terão
sempre um vazio.» A verdade é incontornável, mesmo em dia de bodas.
2 de setembro de 2013
Durante anos a fio o meu destino de férias foi
a Nazaré, primeiro com os meus pais e mais tarde com a minha tia, uma
bela mulher loira de olhos azuis na altura com os seus 30 e poucos anos.
Com a minha irmã, éramos portanto três loiras de olhos azuis que os
nazarenos recebiam nas ruas e nos mercados com o seu francês, inglês e
alemão cantados mas nunca em português.
Há dois piropos desses anos, colectivos por sinal, que nunca esqueci. Um deles não será original mas foi o meu primeiro piropo. Íamos na autoestrada, primeiro dia de férias e levávamos o vidro aberto. Um carro colocou-se a par do nosso e os rapazes lá dentro começaram a gritar piropos, empoleirados nas janelas, um a seguir ao outro, o condutor a apitar, não fosse o estardalhaço ser pouco. A minha tia se tivesse um buraco tinha-se escondido, vermelha que ficou. Eu e a minha irmã nem estávamos a perceber, ficámos assustadas a princípio. Depois quando ouvimos o que eles diziam, desatámos a rir. As férias estavam ganhas, tínhamos recebido o nosso primeiro piropo!
Noutro ano, eu devia ter uns 14, 15 anos, já podia sair à noite e quando acabei de jantar entrei pelo labirinto antes de me dirigir à praça ao encontro dos amigos. Era tarde e a noite não caía, a cal das paredes cegava, cheirava a creme Nivea e a peixe seco. Após uma esquina, dou de caras com um enorme grupo de homens sentados na esplanada de um restaurante. Adivinhando o que seguia, acelerei o passo. De repente eles aparecem à minha frente. Tinham todos o mesmo fato branco, camisa negra, gravata vermelha e chapéu. Sempre sem parar, juntaram-se e caminhando para trás começam a cantar a Garota de Ipanema. Cantaram a música do início ao fim, sempre a caminhar para trás (que eu não dei mole e nunca parei de andar), com várias vozes e uns batuques. No final tiraram os chapéus e foram embora. Depois disso, fazer parar o trânsito não me pareceu nada de especial.
Há dois piropos desses anos, colectivos por sinal, que nunca esqueci. Um deles não será original mas foi o meu primeiro piropo. Íamos na autoestrada, primeiro dia de férias e levávamos o vidro aberto. Um carro colocou-se a par do nosso e os rapazes lá dentro começaram a gritar piropos, empoleirados nas janelas, um a seguir ao outro, o condutor a apitar, não fosse o estardalhaço ser pouco. A minha tia se tivesse um buraco tinha-se escondido, vermelha que ficou. Eu e a minha irmã nem estávamos a perceber, ficámos assustadas a princípio. Depois quando ouvimos o que eles diziam, desatámos a rir. As férias estavam ganhas, tínhamos recebido o nosso primeiro piropo!
Noutro ano, eu devia ter uns 14, 15 anos, já podia sair à noite e quando acabei de jantar entrei pelo labirinto antes de me dirigir à praça ao encontro dos amigos. Era tarde e a noite não caía, a cal das paredes cegava, cheirava a creme Nivea e a peixe seco. Após uma esquina, dou de caras com um enorme grupo de homens sentados na esplanada de um restaurante. Adivinhando o que seguia, acelerei o passo. De repente eles aparecem à minha frente. Tinham todos o mesmo fato branco, camisa negra, gravata vermelha e chapéu. Sempre sem parar, juntaram-se e caminhando para trás começam a cantar a Garota de Ipanema. Cantaram a música do início ao fim, sempre a caminhar para trás (que eu não dei mole e nunca parei de andar), com várias vozes e uns batuques. No final tiraram os chapéus e foram embora. Depois disso, fazer parar o trânsito não me pareceu nada de especial.
Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
No doce balanço, a caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar
Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
No doce balanço, a caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar
Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor
31 de agosto de 2013
Entro no Mercado do Bolhão, junto-me aos
turistas que tiram fotografias. Atrás de mim, alguém que vem a entrar diz: «Two
or three months ago I dreamt about a place like this.» E então eu
vejo os nossos sonhos a nascer dentro dos corredores, escada acima,
escada abaixo, na boca dos vendedores, nas facas, nos baldes, debaixo
das bancadas, uma matéria num devir que nunca cessa.
7 de agosto de 2013
Num restaurante, fico sentada atrás de uma
montra à frente da qual está sentado um rapaz a pedir e leio-lhe nos
lábios o solilóquio.
No jardim de um museu, dois cigarros fumados de seguida para expelir o fumo em direcção a um raio de sol sob uma árvore.
Numa loja reparo em pessoas que se escondem como leprosos, quando os empregados se dirigem a elas.
No jardim de um museu, dois cigarros fumados de seguida para expelir o fumo em direcção a um raio de sol sob uma árvore.
Numa loja reparo em pessoas que se escondem como leprosos, quando os empregados se dirigem a elas.
4 de agosto de 2013
Há muito, muito tempo atrás, ocultava-se por entre as densas florestas e profundos vales de uma grande montanha, um pequeno mosteiro budista. Nele habitavam 10 monges e 10 monjas que viviam abnegadamente, cumprindo com afã rituais e tarefas, praticamente os mesmos todos os dias.
Os monges acordavam antes do sol nascer e adormeciam quando a noite estava completa. Os seus dias eram límpidos, cheios de trabalho e mantinham entre si o zelar do silêncio. No fim do dia contudo, os 20 monges reuniam-se em redor de uma fogueira e nessa altura, podiam falar. Um dia, um monge pequeno e careca mas com uma longa barba branca, contou a história da filha do pedreiro da sua aldeia, nas margens do rio Nejanra, que enfrentou um vil imperador. Um monge sábio e respeitado por todos gostava de contar anedotas, por isso quando se preparava para falar, um sorriso surgia atrás das orelhas dos seus ouvintes. Havia uma monja cujas palavras se dirigiam ao coração e outra que tinha o dom de interrogar.
Entre as 10 monjas havia uma cuja beleza era a primeira coisa que todos queriam ver pela manhã. A sua prática era irrepreensível e devotada. Quando não estava a trabalhar, retirava-se para a montanha ou sentava-se na Sala do Buda do Umbigo Aberto. Nunca falava.
Entre os 10 monges havia um que era muito jovem. Tinha uma memória prodigiosa, uma imaginação arrebatadora, um raciocínio quase exótico e a modéstia do seu discernimento fazia com que até os animais o procurassem.
Cuidava do Poço das Relíquias Azuis, ocupava-se com a lavandaria e com a plantação na encosta mais íngreme da colina, a que os monges mais frágeis eram poupados.
O jovem monge observava de longe a devota, sem saber como aproximá-la. Um dia, decidiu escrever-lhe uma carta.
Todos os dias o monge deixou cartas de amor à porta do seu quarto. No entanto, quando regressava à porta do quarto da monja para deixar uma nova carta, o monge reencontrava a que tinha deixado na noite anterior.
Durante o dia, enquanto trabalhavam, os seus olhares cruzavam-se. O jovem não entendia a ausência de um sinal da bela mulher. Debatia-se com a sua conquista, procurando ser mais persuasivo a cada nova carta. Mas nada parecia interferir nos ritmos da monja, que continuava a isolar-se na Sala do Buda do Umbigo Aberto e partia longas horas para a montanha, regressando novamente para o meio do seu silêncio.
Um ano volvido, como acontecia todos os dias, a fogueira levantou-se e todos se reuniram. Neste momento tão íntimo, muitos queriam apenas mostrar-se gratos pelo cansaço que o dia trouxera. Mas neste dia, a bela monja levantou-se e deu um passo em direcção à fogueira. Como nada surpreende mais na vida do que romper com um hábito, todas as cabeças se voltaram para ela. Olhando para o centro da fogueira disse: «Se me amas, levanta-te.»
Os monges acordavam antes do sol nascer e adormeciam quando a noite estava completa. Os seus dias eram límpidos, cheios de trabalho e mantinham entre si o zelar do silêncio. No fim do dia contudo, os 20 monges reuniam-se em redor de uma fogueira e nessa altura, podiam falar. Um dia, um monge pequeno e careca mas com uma longa barba branca, contou a história da filha do pedreiro da sua aldeia, nas margens do rio Nejanra, que enfrentou um vil imperador. Um monge sábio e respeitado por todos gostava de contar anedotas, por isso quando se preparava para falar, um sorriso surgia atrás das orelhas dos seus ouvintes. Havia uma monja cujas palavras se dirigiam ao coração e outra que tinha o dom de interrogar.
Entre as 10 monjas havia uma cuja beleza era a primeira coisa que todos queriam ver pela manhã. A sua prática era irrepreensível e devotada. Quando não estava a trabalhar, retirava-se para a montanha ou sentava-se na Sala do Buda do Umbigo Aberto. Nunca falava.
Entre os 10 monges havia um que era muito jovem. Tinha uma memória prodigiosa, uma imaginação arrebatadora, um raciocínio quase exótico e a modéstia do seu discernimento fazia com que até os animais o procurassem.
Cuidava do Poço das Relíquias Azuis, ocupava-se com a lavandaria e com a plantação na encosta mais íngreme da colina, a que os monges mais frágeis eram poupados.
O jovem monge observava de longe a devota, sem saber como aproximá-la. Um dia, decidiu escrever-lhe uma carta.
Todos os dias o monge deixou cartas de amor à porta do seu quarto. No entanto, quando regressava à porta do quarto da monja para deixar uma nova carta, o monge reencontrava a que tinha deixado na noite anterior.
Durante o dia, enquanto trabalhavam, os seus olhares cruzavam-se. O jovem não entendia a ausência de um sinal da bela mulher. Debatia-se com a sua conquista, procurando ser mais persuasivo a cada nova carta. Mas nada parecia interferir nos ritmos da monja, que continuava a isolar-se na Sala do Buda do Umbigo Aberto e partia longas horas para a montanha, regressando novamente para o meio do seu silêncio.
Um ano volvido, como acontecia todos os dias, a fogueira levantou-se e todos se reuniram. Neste momento tão íntimo, muitos queriam apenas mostrar-se gratos pelo cansaço que o dia trouxera. Mas neste dia, a bela monja levantou-se e deu um passo em direcção à fogueira. Como nada surpreende mais na vida do que romper com um hábito, todas as cabeças se voltaram para ela. Olhando para o centro da fogueira disse: «Se me amas, levanta-te.»
31 de julho de 2013
Depois
de irmos andar de bicicleta pela primeira vez, continuámos a ir. As
ruas do bairro rapidamente se esgotaram e o caminho das cobras (haverá
uma história só sobre ele) não demorava muito tempo a percorrer numa ida
e volta. Atrás da casa da minha avó havia campo. Colinas e mais
colinas verdes, matas, figueirais, olivais, caminhos ladeados de
arbustos carregados de amoras e marmelos no Verão. Nós fomos descobrir de bicicleta esses caminhos e um dia escolhemos uma colina. A nossa colina era o fim de todos os dias. Religiosamente, antes de ir
para casa, quando já não nos apetecia descobrir mais caminhos, íamos
para lá. E com o tempo, o tempo que ficávamos na nossa colina foi
aumentando. Era um espaço resguardado, íntimo, sem promessas. E um
momento de contemplação. Pura contemplação. Deitados na relva ao lado
das bicicletas, ou encostados a uma oliveira, ficávamos em silêncio, os
três. Por vezes conversávamos mas naquele ponto do dia a sintonia era
tanta que não era preciso dizer muito. Agora que escrevo isto, sinto novamente vontade de me calar. O que é o tempo?
28 de julho de 2013
Nos seus jardins murados, os monges cultivavam ervas medicinais; num dado momento — ninguém sabe quando —, ocorreu-lhes a ideia de adicionar algumas ervas à aguardente, inventando assim o licor beneditino. Pode parecer estranha esta associação da vida monástica com o luxo das bebidas alcoólicas, mas o vinho foi sempre uma bebida permitida aos Beneditinos. Ligava bem com as suas refeições simples, constituídas essencialmente por pão, ovos, queijo e peixe. Embora a carne fosse proibida nos primeiros séculos, posteriormente algumas abadias adicionaram aos alimentos consumidos aves de capoeira e de caça, uma vez que o fundador não as mencionara expressamente entre as virtualhas proibidas. Em todas as refeições, porém, reinava o silêncio. Deste modo, a Regra de São Bento, posto que severa sob muitos aspectos, conseguiu atingir um certo equilíbrio entre a ascese e o comprazimento.
Enciclopédia Ao Encontro do Passado, Selecções Reader's Digest.
Enciclopédia Ao Encontro do Passado, Selecções Reader's Digest.
26 de julho de 2013
Em 1995 parti o fémur e em consequência disso descobri que, para além de
um crânio negróide e não caucasiano, uma lordose lombar acentuada e
mais duas ou três características que não vale agora a pena mencionar,
herdei da raça negra, por linhagem do meu avô materno, uma coisa chamada
quelóides: uma lesão saliente que pode ocorrer na cicatrização e que
por ser muito comum nas peles negras, algumas tribos africanas usam para
fazer uma espécie de desenhos na pele, como uma tatuagem sem tinta.
Portanto, depois da operação e apesar de duas operações plásticas,
fiquei com várias cicatrizes grandes no corpo, isto é, compridas,
grossas e escuras, encontrando-se a maior de todas elas na nádega
direita.
Eu tinha 19 anos e isto arrasou-me. Não deixava que ninguém visse as cicatrizes que eu própria tinha dificuldade em observar e não conseguia aceitar o corpo que, anteriormente angélico, estava subitamente marcado para lá de Bagdad. Ainda por cima, por serem diferentes de tudo o que alguma vez tinha visto, era como se aquelas cicatrizes trouxessem à visão algo daquilo que, por doer demais, preferiríamos não nomear. Era como se agora eu fosse obrigada a nomear uma coisa a que nunca deveria ter sido dada existência.
No Verão do ano seguinte, fiz uma pequena viagem com uma amiga e passámos uns dias na praia da Nazaré, que ela não conhecia. Apesar do calor, e apesar do discurso dissuasor da minha amiga, lá andava eu com o meu pano sobre o corpo, que só tirava à beira-mar para entrar na água. Tínhamos acabado de chegar à praia, após um passeio pelo labirinto da Vila. Naquele dia, o céu cinzento tornava o calor ainda mais intenso. Estávamos a ler, à espera do sol para ir tomar banho. Deixei-a frente ao mar. Levantei-me para ir à casa-de-banho e atravessei num passo lento a praia até às casas-de-banho públicas perto das rochas. Senti-me grata por a praia ainda estar quase deserta àquela hora. Quando comecei a lavar as mãos, pousei o pano no lavatório ao lado e entrou uma mulher com o filho, uma criança com cerca de 3 ou 4 anos. Ao passar por mim, o miúdo toca em cheio na minha grande cicatriz sobre a nádega direita e diz: «- Qué ito?» Olhei para os seus olhos enormes à espera de uma resposta e tranquilizei a mãe que o arrebatava para longe do meu corpo. Sorri e respondi: «- É uma cicatriz.» Ele continuou: «- O qué uma ticatiz?» E eu continuei a responder: «- É quando fazemos uma ferida grande e depois temos de voltar a fechar. Fica lá a marca. Tu também já fizeste uma ferida não já?» Ele disse logo que sim. Satisfeito com a resposta, continuou a sua vida e voltou-se para a mãe para que ela o levasse à casa-de-banho. Nunca nos chegámos a despedir.
A sua inocência deixou-me perplexa. Enquanto vestia o pano, já sem muita convicção, pensava que de facto era apenas isso, nada mais do que isso: uma cicatriz. Voltei a atravessar o areal. O sol começava a espreitar. O mar brilhava. Entre mais um e outro pensamento, voltei a sorrir e retirei o pano enquanto caminhava. Foi nesse momento que dei o salto.
Eu tinha 19 anos e isto arrasou-me. Não deixava que ninguém visse as cicatrizes que eu própria tinha dificuldade em observar e não conseguia aceitar o corpo que, anteriormente angélico, estava subitamente marcado para lá de Bagdad. Ainda por cima, por serem diferentes de tudo o que alguma vez tinha visto, era como se aquelas cicatrizes trouxessem à visão algo daquilo que, por doer demais, preferiríamos não nomear. Era como se agora eu fosse obrigada a nomear uma coisa a que nunca deveria ter sido dada existência.
No Verão do ano seguinte, fiz uma pequena viagem com uma amiga e passámos uns dias na praia da Nazaré, que ela não conhecia. Apesar do calor, e apesar do discurso dissuasor da minha amiga, lá andava eu com o meu pano sobre o corpo, que só tirava à beira-mar para entrar na água. Tínhamos acabado de chegar à praia, após um passeio pelo labirinto da Vila. Naquele dia, o céu cinzento tornava o calor ainda mais intenso. Estávamos a ler, à espera do sol para ir tomar banho. Deixei-a frente ao mar. Levantei-me para ir à casa-de-banho e atravessei num passo lento a praia até às casas-de-banho públicas perto das rochas. Senti-me grata por a praia ainda estar quase deserta àquela hora. Quando comecei a lavar as mãos, pousei o pano no lavatório ao lado e entrou uma mulher com o filho, uma criança com cerca de 3 ou 4 anos. Ao passar por mim, o miúdo toca em cheio na minha grande cicatriz sobre a nádega direita e diz: «- Qué ito?» Olhei para os seus olhos enormes à espera de uma resposta e tranquilizei a mãe que o arrebatava para longe do meu corpo. Sorri e respondi: «- É uma cicatriz.» Ele continuou: «- O qué uma ticatiz?» E eu continuei a responder: «- É quando fazemos uma ferida grande e depois temos de voltar a fechar. Fica lá a marca. Tu também já fizeste uma ferida não já?» Ele disse logo que sim. Satisfeito com a resposta, continuou a sua vida e voltou-se para a mãe para que ela o levasse à casa-de-banho. Nunca nos chegámos a despedir.
A sua inocência deixou-me perplexa. Enquanto vestia o pano, já sem muita convicção, pensava que de facto era apenas isso, nada mais do que isso: uma cicatriz. Voltei a atravessar o areal. O sol começava a espreitar. O mar brilhava. Entre mais um e outro pensamento, voltei a sorrir e retirei o pano enquanto caminhava. Foi nesse momento que dei o salto.
24 de julho de 2013
Pessoas com sofás. Pessoas que trazem um sofá para casa. Primeiro pensam que precisam de um sofá. Há um espaço vazio na sala, onde devia estar um sofá. Ou então o sofá está velho, gasto, tem nódoas, um pé partido. Imaginam um sofá novo, com um padrão novo e pés novos. Vão à loja, procuram na Internet pelo sofá certo. Nesse momento o sofá, a coisa que preenche o espaço, já começou a existir. Depois encontram um sofá que corresponde ao que querem ter. Pagam. Pagam também o transporte, dois homens e uma carrinha trazem o sofá no dia e na hora combinados até ao destino. O sofá novo chega, embrulhado em plástico bolha. Ter um sofá é um momento sério na vida. A vida acaba no instante em que os homens que fizeram o transporte saem e se contempla o sofá adquirido, da mesma maneira que um rio acaba quando chega ao mar e que um dia acaba no crepúsculo. Um sofá novo é o princípio de qualquer coisa que já acabou.
23 de julho de 2013
Num Colégio de freiras, como podem imaginar, as histórias são aos milhares. Aquilo que cá fora poderia ser um detalhe disperso entre outros detalhes insignificantes, lá dentro torna-se acontecimento excepcional, singular ou mesmo assombroso.
Na altura em que as meninas percebem que podem ser mulheres, não havia meninos no meu Colégio. Os meninos eram seres de outro mundo, do outro lado do muro, que nos despertavam curiosidade e sentimentos incompreensíveis e inomináveis, como o desejo. Portanto entre nós, as meninas, não se falava de meninos, mas sim daquilo que nos poderia conduzir aos meninos. Por exemplo: um dia entrei no recinto atrasada e as raparigas da minha turma estavam numa roda, muito apertada, a falar. Entrei na roda a pensar que alguém tinha trazido um brinquedo novo para o recreio, para descobrir que uma delas tinha estado a ver uma Enciclopédia da Vida Sexual, dos pais, e sabia duas coisas: o que era o sexo e como dar um beijo na boca. No intervalo seguinte, os segredos seriam desvendados.
Ela desenhou na areia do chão o sexo de uma mulher (parecia um figo) e o sexo de um homem (não percebi) e explicou como se fazia. Depois, explicou que para dar um beijo na boca tinha de se usar a língua. E isso foi o fim. «A língua?????». Isso fez-nos esquecer imediatamente a primeira parte. Por muito que ela nos repetisse o que tinha lido, nenhuma de nós conseguia perceber como era possível que os adultos andassem a fazer uma coisa tão nojenta e depois nos dissessem para não fazer isto ou aquilo. Qual era a moral? Perante a nossa confusão, a minha colega de turma encostou o braço à boca e simulou um beijo contra a pele. Seguiram-se vários minutos de silêncio. A campainha tocou enquanto outras colegas procuravam repetir a simulação e os braços já andavam de boca em boca. Eu não me conseguia decidir entre a repulsa e o pudor e mantive-me imóvel a olhar para elas. Como em muitas outras situações, de repente, já não me interessavam os beijos na boca. Estava apenas a observar aquelas raparigas lambuzarem os braços umas das outras à procura de um beijo que não tardaria a chegar, e via beleza.
Enquanto episódios como este se sucediam, os rapazes faziam fila com as suas bicicletas à porta do Colégio. Cada dia eram mais numerosos. À porta do Colégio, do outro lado da rua, havia uma casa amarela, como um muro e um portão. De cada lado da casa, duas ruas com árvores, que iam ambas dar a minha casa. A rua principal, a que passava entre a casa amarela e o Colégio, dava para um lado para a saída da cidade e para o outro para o centro. Eles subiam estas três ruas, à hora do toque de saída, estacionavam as bicicletas no muro da casa amarela e encostavam-se ao muro, ao lado das suas magníficas bicicletas. Ficavam a olhar para nós, do outro lado da estrada, enquanto saíamos. E nós a olhar para eles. Nós saíamos com a bata azul, parte obrigatória de um regime de regras que era proibido quebrar até atravessar o portão. E a bata era feia, comprida e uma bata, ou seja, tapava tudo menos a cabeça. Um dia, alguém teve uma ideia: «tragam fita cola». Encontrámo-nos cada uma com o seu rolo de fita cola no jardim antes do portão da saída, cujas sebes eram altas. Rapidamente, cortámos pequenas partes de fita, subimos a bata e prendemos o pano acima do joelho. Foi uma saída gloriosa, pelo menos para nós. Depois era preciso não esquecer retirar a fita cola antes de entrar em casa. Aquilo foi acontecendo assim, semanas após semanas, até se desenhar mais um corredor de possibilidades.
O verão estava a chegar e, apesar das batas subirem todos os dias mais um bocadinho, e das roupas por baixo serem cada vez mais extravagantes, ainda ninguém conhecia os rapazes. Lá dentro, durante o dia, as estratégias que elaborávamos eram verdadeiramente kafkianas e por isso nenhuma com aplicação prática. Um dia, não sei o que me deu, já no portão de saída, pensei «E se eu atravessar a estrada?». Foi como se um raio me tivesse caído em cima e digo-o assim porque me lembro perfeitamente da luz desse fim de tarde, com a parede branca do Colégio e a da casa amarela a refletirem sobre a estrada e brilhos como estrelas através da copa das árvores. Assim como o pensei, o fiz. As meninas pararam, os meninos puseram-se em sentido e a meio da passadeira eu já pensava «Meu deus, o que é que eu vou dizer». Aproximei-me de um deles (o que tinha a bicicleta mais fixe, toda preta). Ele, o Jorge, e outro rapaz ao seu lado, o Luís, acompanharam-me a casa, éramos vizinhos. No dia a seguir fomos os três andar de bicicleta.
Na altura em que as meninas percebem que podem ser mulheres, não havia meninos no meu Colégio. Os meninos eram seres de outro mundo, do outro lado do muro, que nos despertavam curiosidade e sentimentos incompreensíveis e inomináveis, como o desejo. Portanto entre nós, as meninas, não se falava de meninos, mas sim daquilo que nos poderia conduzir aos meninos. Por exemplo: um dia entrei no recinto atrasada e as raparigas da minha turma estavam numa roda, muito apertada, a falar. Entrei na roda a pensar que alguém tinha trazido um brinquedo novo para o recreio, para descobrir que uma delas tinha estado a ver uma Enciclopédia da Vida Sexual, dos pais, e sabia duas coisas: o que era o sexo e como dar um beijo na boca. No intervalo seguinte, os segredos seriam desvendados.
Ela desenhou na areia do chão o sexo de uma mulher (parecia um figo) e o sexo de um homem (não percebi) e explicou como se fazia. Depois, explicou que para dar um beijo na boca tinha de se usar a língua. E isso foi o fim. «A língua?????». Isso fez-nos esquecer imediatamente a primeira parte. Por muito que ela nos repetisse o que tinha lido, nenhuma de nós conseguia perceber como era possível que os adultos andassem a fazer uma coisa tão nojenta e depois nos dissessem para não fazer isto ou aquilo. Qual era a moral? Perante a nossa confusão, a minha colega de turma encostou o braço à boca e simulou um beijo contra a pele. Seguiram-se vários minutos de silêncio. A campainha tocou enquanto outras colegas procuravam repetir a simulação e os braços já andavam de boca em boca. Eu não me conseguia decidir entre a repulsa e o pudor e mantive-me imóvel a olhar para elas. Como em muitas outras situações, de repente, já não me interessavam os beijos na boca. Estava apenas a observar aquelas raparigas lambuzarem os braços umas das outras à procura de um beijo que não tardaria a chegar, e via beleza.
Enquanto episódios como este se sucediam, os rapazes faziam fila com as suas bicicletas à porta do Colégio. Cada dia eram mais numerosos. À porta do Colégio, do outro lado da rua, havia uma casa amarela, como um muro e um portão. De cada lado da casa, duas ruas com árvores, que iam ambas dar a minha casa. A rua principal, a que passava entre a casa amarela e o Colégio, dava para um lado para a saída da cidade e para o outro para o centro. Eles subiam estas três ruas, à hora do toque de saída, estacionavam as bicicletas no muro da casa amarela e encostavam-se ao muro, ao lado das suas magníficas bicicletas. Ficavam a olhar para nós, do outro lado da estrada, enquanto saíamos. E nós a olhar para eles. Nós saíamos com a bata azul, parte obrigatória de um regime de regras que era proibido quebrar até atravessar o portão. E a bata era feia, comprida e uma bata, ou seja, tapava tudo menos a cabeça. Um dia, alguém teve uma ideia: «tragam fita cola». Encontrámo-nos cada uma com o seu rolo de fita cola no jardim antes do portão da saída, cujas sebes eram altas. Rapidamente, cortámos pequenas partes de fita, subimos a bata e prendemos o pano acima do joelho. Foi uma saída gloriosa, pelo menos para nós. Depois era preciso não esquecer retirar a fita cola antes de entrar em casa. Aquilo foi acontecendo assim, semanas após semanas, até se desenhar mais um corredor de possibilidades.
O verão estava a chegar e, apesar das batas subirem todos os dias mais um bocadinho, e das roupas por baixo serem cada vez mais extravagantes, ainda ninguém conhecia os rapazes. Lá dentro, durante o dia, as estratégias que elaborávamos eram verdadeiramente kafkianas e por isso nenhuma com aplicação prática. Um dia, não sei o que me deu, já no portão de saída, pensei «E se eu atravessar a estrada?». Foi como se um raio me tivesse caído em cima e digo-o assim porque me lembro perfeitamente da luz desse fim de tarde, com a parede branca do Colégio e a da casa amarela a refletirem sobre a estrada e brilhos como estrelas através da copa das árvores. Assim como o pensei, o fiz. As meninas pararam, os meninos puseram-se em sentido e a meio da passadeira eu já pensava «Meu deus, o que é que eu vou dizer». Aproximei-me de um deles (o que tinha a bicicleta mais fixe, toda preta). Ele, o Jorge, e outro rapaz ao seu lado, o Luís, acompanharam-me a casa, éramos vizinhos. No dia a seguir fomos os três andar de bicicleta.
22 de julho de 2013
Até ao 9º ano fiz cábulas para passar a Matemática. Não é isso: estudava que me desunhava. Mas tinha muitas perguntas e os professores não tinham paciência para ouvir as perguntas quanto mais para lhes responder. Sem perceber os mecanismos básicos, fui perdendo o interesse, embora sentisse uma enorme amargura por não conseguir dominar a matéria. Por isso quando cheguei ao 9º ano, preparava-me para a guerra.
O meu professor nesse ano chamava-se Carlos Martins. Quando na primeira aula estávamos finalmente todos sentados, desenhou uma linha recta a atravessar os dois quadros da sala de aula e perguntou:
- O que é isto?
Sou uma pessoa de desafios e a pergunta deixou-me em silêncio, com os olhos fixados no rosto dele, que olhou brevemente para nós e logo se foi sentar à sua carteira. Esperei ver um sorriso provocador, alguma ironia, a arrogância de quem detém um saber, mas não encontrei nenhum deles. Isso deixou-me perplexa. Eu queria saber o que era aquela linha recta mas também quem era aquela pessoa que me lançava a pergunta, em vez de se lançar como um comboio na matéria.
Alguns braços levantaram-se mas passado uns minutos já todos falavam ao mesmo tempo. E ninguém acertava. Alguns berravam «uma linha recta» como se o tom da voz fosse dar-lhes razão. Eu não disse nada. Simplesmente não tive nenhuma ideia. A dada altura, sempre com a mesma expressão incógnita, ele levanta-se, dirige-se para o quadro, aponta para a linha recta e diz:
- Isto é o infinito.
O meu coração estalou para além das fronteiras da cidade, ou seja, para além daquilo que conhecia. E fui eu quem sorriu. Ouvi-o depois explicar porquê, o que passava pela diferença entre uma linha recta e uma circunferência. Não sei como, percebi tudo.
Quando na aula seguinte tivemos de fazer o primeiro exercício, arrisquei. Fiz uma pergunta. Uma pergunta muito parva, sobre qualquer coisa que eu já devia saber há muito tempo. Ele nem sequer olhou para mim. Explicou com muita calma como se fazia, só a mim, com o tronco inclinado sobre o meu caderno. Indicou-me onde podia procurar exercícios sobre isso para fazer em casa. E eu procurei e fiz muitos exercícios e continuei a fazer perguntas. Era um professor extraordinário. Contou-nos muitas histórias sobre a sua vida, muitas delas difíceis, como a do dia em que, depois de se perder do seu batalhão na Guerra Colonial, com outras duas ou três pessoas (já não tenho a certeza), teve de sobreviver na selva durante semanas sem nada para beber ou comer. Comeu raízes, bebeu o seu mijo, encontrou o caminho.
Eu sempre fiz parte das turmas mais difíceis da escola. Não havia dia em que não houvesse um festival, fosse porque várias pessoas íam para a rua, porque alguém decidia fumar dentro da sala ou saltar pela janela para ir ao café, porque alguém decidia tirar as calças e as cuecas em cima do balcão da aula de físico-química, porque se falava, porque se levavam baratas para correr maratonas em cima das mesas. Aquele professor não tinha problemas connosco.
Entretanto já me esqueci de tudo o que aprendi menos da véspera do primeiro teste em que, depois de fazer a cábula, decidi não a levar. E do infinito.
O meu professor nesse ano chamava-se Carlos Martins. Quando na primeira aula estávamos finalmente todos sentados, desenhou uma linha recta a atravessar os dois quadros da sala de aula e perguntou:
- O que é isto?
Sou uma pessoa de desafios e a pergunta deixou-me em silêncio, com os olhos fixados no rosto dele, que olhou brevemente para nós e logo se foi sentar à sua carteira. Esperei ver um sorriso provocador, alguma ironia, a arrogância de quem detém um saber, mas não encontrei nenhum deles. Isso deixou-me perplexa. Eu queria saber o que era aquela linha recta mas também quem era aquela pessoa que me lançava a pergunta, em vez de se lançar como um comboio na matéria.
Alguns braços levantaram-se mas passado uns minutos já todos falavam ao mesmo tempo. E ninguém acertava. Alguns berravam «uma linha recta» como se o tom da voz fosse dar-lhes razão. Eu não disse nada. Simplesmente não tive nenhuma ideia. A dada altura, sempre com a mesma expressão incógnita, ele levanta-se, dirige-se para o quadro, aponta para a linha recta e diz:
- Isto é o infinito.
O meu coração estalou para além das fronteiras da cidade, ou seja, para além daquilo que conhecia. E fui eu quem sorriu. Ouvi-o depois explicar porquê, o que passava pela diferença entre uma linha recta e uma circunferência. Não sei como, percebi tudo.
Quando na aula seguinte tivemos de fazer o primeiro exercício, arrisquei. Fiz uma pergunta. Uma pergunta muito parva, sobre qualquer coisa que eu já devia saber há muito tempo. Ele nem sequer olhou para mim. Explicou com muita calma como se fazia, só a mim, com o tronco inclinado sobre o meu caderno. Indicou-me onde podia procurar exercícios sobre isso para fazer em casa. E eu procurei e fiz muitos exercícios e continuei a fazer perguntas. Era um professor extraordinário. Contou-nos muitas histórias sobre a sua vida, muitas delas difíceis, como a do dia em que, depois de se perder do seu batalhão na Guerra Colonial, com outras duas ou três pessoas (já não tenho a certeza), teve de sobreviver na selva durante semanas sem nada para beber ou comer. Comeu raízes, bebeu o seu mijo, encontrou o caminho.
Eu sempre fiz parte das turmas mais difíceis da escola. Não havia dia em que não houvesse um festival, fosse porque várias pessoas íam para a rua, porque alguém decidia fumar dentro da sala ou saltar pela janela para ir ao café, porque alguém decidia tirar as calças e as cuecas em cima do balcão da aula de físico-química, porque se falava, porque se levavam baratas para correr maratonas em cima das mesas. Aquele professor não tinha problemas connosco.
Entretanto já me esqueci de tudo o que aprendi menos da véspera do primeiro teste em que, depois de fazer a cábula, decidi não a levar. E do infinito.
21 de julho de 2013
A escola primária onde eu andei tinha um recreio enorme, cheio de labirintos, jogos, locais proibidos, locais perigosos, zonas vazias, sombra e sol, bancos compridos onde nos podíamos sentar todos juntos e bancos isolados que ninguém abordava quando estavam ocupados, canteiros e árvores, areia e pedras e até uma zona de fuga, que quase ninguém conhecia, e que dava acesso aos campos de cultivo por detrás da escola e através deles (para quem conhecesse o caminho), acesso à cidade.
Não me lembro quanto tempo durava o intervalo maior, mas pareciam ser horas, de resto, insuficientes. A campainha tocava e nós voltámos ao ponto exato onde a brincadeira tinha sido deixada no intervalo anterior. Mas para além do rigor, o que havia era sobretudo um envolvimento que nos deixava absolutamente absorvidos pelo que na brincadeira era ocasionado. Éramos atentos. Crescíamos rapidamente, e todos os planos, todas as percepções eram desenterradas aí.
Um dia, não sei como nem porquê, algo mudou. Entre dois intervalos, era como se alguém tivesse decidido alguma coisa sem me avisar: os meninos começaram a perseguir as meninas, pedindo-lhes que lhes mostrassem as cuecas. De repente criaram-se dois grupos e as meninas passaram a ter de fugir dos rapazes, que nos perseguiam e, como máquinas programadas para fazer apenas uma coisa, tentavam convencer-nos a mostrar-lhes as cuecas. Quando jogávamos speedball ou vólei ou à macaca, lá estavam eles, preparados para nos tocar subtil e inapropriadamente.
De início estávamos apenas surpreendidas pela reviravolta e achámos que duraria pouco. Mas passado uns dias a situação começou a mudar. A insistência tornou-se invasiva, repetitiva e chata. E fundamentalmente, já ninguém brincava. Então decidi agir.
Entre o fim de um intervalo e a hora de aulas que se seguiu, elaborei o meu plano. Antes de entrarmos cada um na sua sala, reuni os rapazes e pedi-lhes à pressa que no intervalo seguinte se encontrassem comigo à porta das casas de banho atrás do pavilhão desportivo. No intervalo corri para o local na expectativa da minha convocatória ter funcionado ou não, mas lá estavam eles. Expliquei-lhes então que tinha uma proposta a fazer-lhes, que era a seguinte: uma das casas de banho (a das meninas justamente) tinha um guardanapo no lugar da fechadura, que tinha caído, e nunca tinha sido arranjada. Eu iria entrar na casa de banho, ficar de pé, subir a saia e tirar o guardanapo para que cada menino pudesse espreitar pelo buraco da fechadura e ver as minhas cuecas. Em troca (não há almoços grátis), eles nunca mais podiam chatear as meninas.
Eu tinha umas cuecas do rato Mickey. E o resto é história.
Não me lembro quanto tempo durava o intervalo maior, mas pareciam ser horas, de resto, insuficientes. A campainha tocava e nós voltámos ao ponto exato onde a brincadeira tinha sido deixada no intervalo anterior. Mas para além do rigor, o que havia era sobretudo um envolvimento que nos deixava absolutamente absorvidos pelo que na brincadeira era ocasionado. Éramos atentos. Crescíamos rapidamente, e todos os planos, todas as percepções eram desenterradas aí.
Um dia, não sei como nem porquê, algo mudou. Entre dois intervalos, era como se alguém tivesse decidido alguma coisa sem me avisar: os meninos começaram a perseguir as meninas, pedindo-lhes que lhes mostrassem as cuecas. De repente criaram-se dois grupos e as meninas passaram a ter de fugir dos rapazes, que nos perseguiam e, como máquinas programadas para fazer apenas uma coisa, tentavam convencer-nos a mostrar-lhes as cuecas. Quando jogávamos speedball ou vólei ou à macaca, lá estavam eles, preparados para nos tocar subtil e inapropriadamente.
De início estávamos apenas surpreendidas pela reviravolta e achámos que duraria pouco. Mas passado uns dias a situação começou a mudar. A insistência tornou-se invasiva, repetitiva e chata. E fundamentalmente, já ninguém brincava. Então decidi agir.
Entre o fim de um intervalo e a hora de aulas que se seguiu, elaborei o meu plano. Antes de entrarmos cada um na sua sala, reuni os rapazes e pedi-lhes à pressa que no intervalo seguinte se encontrassem comigo à porta das casas de banho atrás do pavilhão desportivo. No intervalo corri para o local na expectativa da minha convocatória ter funcionado ou não, mas lá estavam eles. Expliquei-lhes então que tinha uma proposta a fazer-lhes, que era a seguinte: uma das casas de banho (a das meninas justamente) tinha um guardanapo no lugar da fechadura, que tinha caído, e nunca tinha sido arranjada. Eu iria entrar na casa de banho, ficar de pé, subir a saia e tirar o guardanapo para que cada menino pudesse espreitar pelo buraco da fechadura e ver as minhas cuecas. Em troca (não há almoços grátis), eles nunca mais podiam chatear as meninas.
Eu tinha umas cuecas do rato Mickey. E o resto é história.
20 de julho de 2013
17 de julho de 2013
Vivi com uma reprodução de um quadro de Rembrandt (The Mill, 1645-1648) até aos 18 anos. Lembro-me vagamente do dia em que chegou. Primeiro era apenas um objecto entre outros objectos acabados de adquirir. Só que este objecto levantou voo até à parede. E tinha coisas lá dentro. A minha mãe não gostava e disseram-me que o meu pai é que tinha insistido para o trazer. Lembro-me de achar que isso é que era o amor.
Isto - o quadro - intrigava-me. Não percebia bem o que era. Não sabia bem o que pensar dele. Um dia comecei-me a sentar à frente dele, na parede oposta, no chão, e ficava a olhar. Fazia isto dia após dia. Comecei a achar que o quadro precisava que olhassem para ele. Que se eu não olhasse para ele, ele não existia. Que para ele começar a existir, eu tinha de lhe dedicar o meu tempo e a minha atenção.
Às vezes ficava só a olhar para uma coisa, por exemplo, para a mulher que leva a criança pela mão ou para o barco que sai ou que chega ou para o moinho ou para o reflexo das árvores na água ou para a água ou para a ladeira ou para o buraco ao lado da ladeira (e ali começará uma ponte?) ou para a luz ou para a água, etc. Sei exactamente para onde olhei durante mais tempo, que foi para aquele céu a aparecer negro. Durante muito tempo esperei que acontecessem coisas maravilhosas: que aquilo tudo ganhasse vida e de repente chovesse, que as pessoas fugissem para casa a abrigar-se, que a copa das árvores mexesse violentamente com o vento, cada uma para cada lado ao mesmo tempo, que ficasse tudo enlameado, o rio subisse devagarinho e por fim o céu ficasse claro, limpo, radioso. Depois as pessoas voltariam, a falar umas com as outras e finalmente o moinho moeria. Enquanto crescia, isto foi assim.
Mais tarde, já depois da desilusão das coisas maravilhosas* nunca acontecerem, percebi que tinham todas acontecido. E quando vi um Van Gogh ao vivo pela primeira vez lembrei-me do meu quadro. Só que era como se fosse eu o meu quadro e ele me estivesse a ver a mim. Mas isso já são outros tantos.
*(E só muito mais tarde, percebi que todas as coisas que eu achava maravilhosas, extraordinárias, mágicas, eram o quotidiano).
Isto - o quadro - intrigava-me. Não percebia bem o que era. Não sabia bem o que pensar dele. Um dia comecei-me a sentar à frente dele, na parede oposta, no chão, e ficava a olhar. Fazia isto dia após dia. Comecei a achar que o quadro precisava que olhassem para ele. Que se eu não olhasse para ele, ele não existia. Que para ele começar a existir, eu tinha de lhe dedicar o meu tempo e a minha atenção.
Às vezes ficava só a olhar para uma coisa, por exemplo, para a mulher que leva a criança pela mão ou para o barco que sai ou que chega ou para o moinho ou para o reflexo das árvores na água ou para a água ou para a ladeira ou para o buraco ao lado da ladeira (e ali começará uma ponte?) ou para a luz ou para a água, etc. Sei exactamente para onde olhei durante mais tempo, que foi para aquele céu a aparecer negro. Durante muito tempo esperei que acontecessem coisas maravilhosas: que aquilo tudo ganhasse vida e de repente chovesse, que as pessoas fugissem para casa a abrigar-se, que a copa das árvores mexesse violentamente com o vento, cada uma para cada lado ao mesmo tempo, que ficasse tudo enlameado, o rio subisse devagarinho e por fim o céu ficasse claro, limpo, radioso. Depois as pessoas voltariam, a falar umas com as outras e finalmente o moinho moeria. Enquanto crescia, isto foi assim.
Mais tarde, já depois da desilusão das coisas maravilhosas* nunca acontecerem, percebi que tinham todas acontecido. E quando vi um Van Gogh ao vivo pela primeira vez lembrei-me do meu quadro. Só que era como se fosse eu o meu quadro e ele me estivesse a ver a mim. Mas isso já são outros tantos.
*(E só muito mais tarde, percebi que todas as coisas que eu achava maravilhosas, extraordinárias, mágicas, eram o quotidiano).
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