11 de setembro de 2013

Não sei se o mesmo acontece na vossa família mas na minha família há algumas histórias que são contadas à mesa repetidamente, nas poucas reuniões que ainda fazemos anualmente. São sempre as mesmas histórias, não muitas. Cada pessoa tem duas ou três histórias preferidas e a mesma pessoa a conta durante algum tempo, ou seja, ao longo de alguns anos. Por assim dizer, calha na conversa. Não é que decidamos «agora vamos para ali contar histórias antigas». Mas não sei se é natural e menos ainda posso assegurar que seja espontâneo. É um ritual que nos liga a todos e que serve para alimentar essa ligação. Penso que há como uma necessidade que nos constringe ao momento, mais ou menos raro por ser anual, e à escolha de palavras que vamos usar, porque estamos a lidar com coisas que por vezes já não lembramos bem. Somos todos muito atentos a esse momento e a essas palavras. Ninguém se levanta, ou se levanta, mantém o ouvido à mesa. Estas histórias renovam-se lentamente. A primeira renovação chega pela pessoa que a conta. Se a princípio foi a minha mãe ou o meu pai que ouvimos contarem a história que vou contar a seguir, mais tarde, aos poucos, outras pessoas começaram a contá-la. A pessoa que a conta parece por vezes usá-la como homenagem à pessoa de quem se fala na história ou então parece querer fazer reviver o acontecimento, e em primeiro para o reapresentar a si próprio. A segunda renovação chega pelo nascimento. Um filho, um neto, um sobrinho, um bebé faz renovar a vida de uma família essencialmente porque as histórias são novas. É assim que, nos almoços e jantares de Natal, de Páscoa, de alguns aniversários mas também nos funerais, nos vemos uns aos outros a pensar através das ficções que vamos narrando uns aos outros.

Aos cerca de 3, 4 anos eu não conseguia dormir. Não era falta de conforto nem preocupações nem medo do escuro a tirarem-me o sono. Os meus pais não conseguiam encontrar a razão. Eu não chorava nem me queixava, apenas não dormia. O médico também não soube explicar e não havia outra criança que sofresse do mesmo mal com quem os meus pais me pudessem comparar. Ora, o meu pai gostava de ver a TV2. Na altura havia um ciclo de filmes semanais (que entretanto regressou) que se chamava o Cinco Noites, Cinco Filmes e que consistia em cinco filmes sobre uma determinada temática ou autor ou protagonista a emitir nas cinco noites dos dias de semana à mesma hora. Assim, por exemplo, houve a semana dos Westerns e a semana do Hitchcock, a semana do cinema italiano, a semana do cinema francês, e por aí fora. A luz ficava apagada com a sala iluminada apenas pelo écrã. O meu pai sentava-se no sofá mais perto da televisão e eu queria sempre ficar mas era forçada a ir para a cama enrolar caracóis. Lembro-me de ficar a ouvir o filme, de olhos abertos, até adormecer; ouvia-se um ruído de electricidade para além do som do próprio filme. Até que um dia os meus pais me deixaram ficar.
Nesse dia estava sentada no sofá grande, oposto à televisão. Eles perguntaram se eu queria ficar, eu disse que sim sem um som, com a cabeça. Eles estavam os dois à porta, os dois a fechar juntos a porta, já do lado do corredor, com a porta meio fechada. O meu pai disse à minha mãe «Não te preocupes, não faz mal» e a minha mãe ainda preocupada acabou por aceder. Senti alívio. O alento de quem fica livre. Escondi-o profundamente porque não queria que mo voltassem a levar.
Então comecei a sentar-me ali praticamente todos os dias da semana até aos 18 anos. Ficava a ver os filmes e quando a sessão acabava desligava a televisão e ía para a cama. E foi assim que vi pela primeira vez filmes de terror, sozinha, no escuro, com 3 ou 4 anos. A minha irmã, que ao contrário de mim era muito medrosa, não queria nem ouvir falar disso. Só a sugestão do tema (como «filme de...») já a assustava ao ponto de não conseguir ela dormir ou começar a chorar. Ela sonhava com o terror que não queria imaginar. Nos olhos da minha mãe vi inverosimilhança durante muito tempo. Depois foi ela quem transformou a história em piada a ser contada à mesa anualmente. Transformou em piada o que saía da norma e que ela não conseguia entender. Ainda hoje ela diz que não percebe como eu conseguia ver aquilo sozinha e afirma peremptoriamente que nunca viu outra criança a fazê-lo. Uma criança a ver filmes de terror impressionou toda a gente mas, não sei porquê, a impressão que esses filmes me causavam a mim era tão excitante que era impossível ter medo. O que eu via era tão surreal, tão surpreendente e por vezes tão poético, que me acontecia frequentemente rir. Lembro-me da descoberta desse pensamento fundador de que a criatividade torna tudo possível enquanto via um deles.
Não sei porquê, nunca mais vi filmes de terror. Todo o entusiasmo que em criança tinha por eles se desfez. Mas o hábito fez-se e vi outros filmes. Também vi filmes com bolinha. Enquanto crescia vi os filmes de Bergman, de Tarkovski, os musicais americanos, o Eisenstein, o Chaplin, o Manoel de Oliveira, a Marylin, o Woody Allen e outros na televisão da casa dos meus pais, sozinha. Filmes que continuei a ver e a rever. Na cidade onde nasci, um deserto menos movimentado que o Sahara, onde à época nem havia cinema, este hábito teve o seu quê de salvífico. Talvez por isso a história surja à mesa quando alguém quer falar de mim.