22 de julho de 2013

Até ao 9º ano fiz cábulas para passar a Matemática. Não é isso: estudava que me desunhava. Mas tinha muitas perguntas e os professores não tinham paciência para ouvir as perguntas quanto mais para lhes responder. Sem perceber os mecanismos básicos, fui perdendo o interesse, embora sentisse uma enorme amargura por não conseguir dominar a matéria. Por isso quando cheguei ao 9º ano, preparava-me para a guerra.
O meu professor nesse ano chamava-se Carlos Martins. Quando na primeira aula estávamos finalmente todos sentados, desenhou uma linha recta a atravessar os dois quadros da sala de aula e perguntou:

- O que é isto?

Sou uma pessoa de desafios e a pergunta deixou-me em silêncio, com os olhos fixados no rosto dele, que olhou brevemente para nós e logo se foi sentar à sua carteira. Esperei ver um sorriso provocador, alguma ironia, a arrogância de quem detém um saber, mas não encontrei nenhum deles. Isso deixou-me perplexa. Eu queria saber o que era aquela linha recta mas também quem era aquela pessoa que me lançava a pergunta, em vez de se lançar como um comboio na matéria.
Alguns braços levantaram-se mas passado uns minutos já todos falavam ao mesmo tempo. E ninguém acertava. Alguns berravam «uma linha recta» como se o tom da voz fosse dar-lhes razão. Eu não disse nada. Simplesmente não tive nenhuma ideia. A dada altura, sempre com a mesma expressão incógnita, ele levanta-se, dirige-se para o quadro, aponta para a linha recta e diz:

- Isto é o infinito.

O meu coração estalou para além das fronteiras da cidade, ou seja, para além daquilo que conhecia. E fui eu quem sorriu. Ouvi-o depois explicar porquê, o que passava pela diferença entre uma linha recta e uma circunferência. Não sei como, percebi tudo.
Quando na aula seguinte tivemos de fazer o primeiro exercício, arrisquei. Fiz uma pergunta. Uma pergunta muito parva, sobre qualquer coisa que eu já devia saber há muito tempo. Ele nem sequer olhou para mim. Explicou com muita calma como se fazia, só a mim, com o tronco inclinado sobre o meu caderno. Indicou-me onde podia procurar exercícios sobre isso para fazer em casa. E eu procurei e fiz muitos exercícios e continuei a fazer perguntas. Era um professor extraordinário. Contou-nos muitas histórias sobre a sua vida, muitas delas difíceis, como a do dia em que, depois de se perder do seu batalhão na Guerra Colonial, com outras duas ou três pessoas (já não tenho a certeza), teve de sobreviver na selva durante semanas sem nada para beber ou comer. Comeu raízes, bebeu o seu mijo, encontrou o caminho.
Eu sempre fiz parte das turmas mais difíceis da escola. Não havia dia em que não houvesse um festival, fosse porque várias pessoas íam para a rua, porque alguém decidia fumar dentro da sala ou saltar pela janela para ir ao café, porque alguém decidia tirar as calças e as cuecas em cima do balcão da aula de físico-química, porque se falava, porque se levavam baratas para correr maratonas em cima das mesas. Aquele professor não tinha problemas connosco.
Entretanto já me esqueci de tudo o que aprendi menos da véspera do primeiro teste em que, depois de fazer a cábula, decidi não a levar. E do infinito.