8 de agosto de 2019

No meu sonho da noite passada o amor era novamente relacionado a uma máquina. Eu era já muito velha quando ele finalmente a completou e, pondo um fim à minha espera, a acionou pela primeira vez, fazendo soar uma música que chegando às mais altas esferas, trouxe o meu sorriso à vigília.

1 de agosto de 2019

Gostava de ser uma leitora pouco ambiciosa. Leria de seguida coleções completas de uma única editora, estudaria um filósofo anos a fio, dedicar-me-ia a um período da História, um poeta, um romancista, tudo com tempo e sem sofreguidão, sem pensar no livro seguinte ou no livro que me aparecesse diante dos olhos, me passasse pelas mãos, me encontrasse. Mas é inútil. A prateleira dos livros que tenho para ler ocupa agora um móvel inteiro e isso inclui alguns livros que me emprestaram. Também me esqueço dos livros que li. Não sinto angústia, mas tenho pena. Significa que um livro lido volta, após algum tempo, a ser um livro que posso reler sem me lembrar de nada, ou seja, volta a ser acrescentado à pilha dos livros que tenho em casa para ler. Também me esqueço dos filmes, mas não das fotografias nem das músicas e não tenho a mínima pista para o explicar. Os nomes, as palavras, foram sempre mais difíceis para mim: primeiro tardam em aparecer e depois desaparecem sem deixar rasto. Começo sempre vários livros, mas, por vezes, acontece entregar-me apenas a um, sem deixar que nada nos interrompa, que nada se interfira entre mim e a leitura. Eu e o livro desaparecemos, somos um universo constante preenchido por uma audição tátil, saborosa, e quanto mais o tempo passa, mais quero estar a sós com o meu livro. Única exceção, o tempo da escrita. Quando a escrita se torna exigente não leio nada e penso sempre que nunca mais quero ler.

23 de julho de 2019

impressionou-me recentemente encontrar o mesmo rapaz a atender em duas lojas diferentes. com a sua farda, como se de um regime militar se tratasse, devolveu-me o olhar vago e desinteressado de sempre, enquanto me servia um café. «por esta hora, já devia saber o nome dele», pensei, procurando preencher essa vagueza com um sentimento de familiaridade. naquele momento quis saber tudo sobre a sua vida: o que gostava de fazer, se estaria a estudar e o quê ou se não e porquê, se tinha um amor, se morava longe ou por ali. ele foi compreensivo e deixou passar a fixidez do meu olhar sobre o seu rosto, como se o desenhasse.

11 de julho de 2019

Texto e ilustração de A to Z Picture Book, de Gyo Fujikawa.
imprudente performer
falas de ti como se fosses
a pessoa mais importante 
do mundo
e acrescentas sempre o sinal
da tua comoção
perante quem o reconhece.

10 de julho de 2019

POESIA

A bala no cérebro de Maiakóvski. A tuberculose de Álvares de Azevedo. O seppuku de Yukio Mishima. A miséria de Orides Fontela. A orelha de Van Gogh. A roupa puída & suja de Edgar Allan Poe. O tráfico de fogo de Arthur Rimbaud. A pindaíba de James Joyce. Os processos de Allen Ginsberg. O gás de cozinha de Torquato Neto. A cirrose hepática de Paulo Leminski. O vômito de Jimi Hendrix. O manicômio de Antonin Artaud. O salto de Ana Cristina Cesar. O tiro de espingarda de Hunter S. Thompson. A mágika sem lágrimas de Aleister Crowley. A gravata de Santos Dumont. O Hotel Inglaterra de Serguei Iessiênin. O desespero idílico de Werther. A convicção de Carlos Marighela. O cárcere de Rubin Carter. Os narcórticos & o forno de Sylvia Plath. O maligno plano virtual de Yoñlu. A heresia de Giordano Bruno. O mar salgado de Hart Crane. A extradição de Olga Benário Prestes. O tiro natalino no peito de Raul Pompéia. A morfina de Jack London. As ondas de Violeta Parra. O Sena de Paul Celan. O desespero de Walter Benjamin. O hospício de Lima Barreto. Os cinco frascos de arseniato de estricnina de Mário de Sá-Carneiro. A conversão de José Vicente. A forca de Ian Curtis. A crucificação de Jesus Cristo. A tara de Pier Paolo Pasolini. O silêncio de Buda. As quarenta doses de uísque de John Bonham. O chumbo na massa encefálica de Kurt Cobain. Os flagrantes delitros de Fernando Pessoa. O copo de vodca sobre a cabeça de Joan de William Burroughs. Os romances de Roberto Bolaño. A queda do helicóptero de Randy Rhoads. A coragem de Ernesto Che Guevara. As janelas de vidro de Unica Zürn. A calma do bosque de Wendy O. Williams. A sífilis nervosa de Manuel Laranjeira. A Praça da Glória de Pedro Nava. O câncer de próstata de Mario Monicelli. A gentileza do Profeta. A solidão do Tartaristão de Marina Tzvietáieva. Os radiogramas de João Cândido. O ataque cardíaco de Antonio Calixto. Os últimos tostões para Regine de Søren Kierkegaard. A decapitação de Zumbi dos Palmares. As proposições factuais da Primeira Guerra de Ludwig Wittgenstein. O esfolamento & o monóxido de carbono de Stuart Angel Jones. A queda de cinco andares de Jeanne Hébuterne. Os dedos triturados de Victor Jara. Os trilhos do Engenho Novo de Marcelo Gama. Os dezesseis tiros de calibre 38 & 45 no coração de Malcolm x. Os dentes no estômago de Joaquim Câmara Ferreira. O violento traumatismo craniano de Steve Biko. O rebolado de Harvey Milk. A copa do álamo de Frei Tito. O câncer no ovário de Clarice Lispector. O sonho de Martin Luther King. O fim do sonho de John Lennon. As 32 fugas, os 73 processos, os 530 inquéritos por roubos assaltos & estelionatos & as 28 facadas no corpo de Lúcio Flávio Vilar Lírio. A angústia de Graciliano Ramos. A cadeira elétrica de Nicola Sacco & Bartolomeo Vanzetti. O tiro no coração de Jacques Rigaut. A valentia de Frank Zappa. Os 109 dias de tortura de Eduardo Collen Leite. A cabeça desaparecida de Antonio Conselheiro. O misticismo de Guimarães Rosa. Os mais de cem tiros na carcaça de Cara de Cavalo. A cachacinha & o torresminho de Hélio Oiticica. A arma (presenteada por Fidel Castro) de Salvador Allende. A estrela no buraco dos olhos & o diálogo da tristeza com o fim de Cesare Pavese. A overdose de barbitúricos de Alejandra Pizarnik. A coragem, o amor, Dorine & André Gorz.

Fabiano Calixto, Telhados de Vidro n.16, 2012.

9 de julho de 2019

No dia a seguir à morte da sua mãe, Hemiette Binger, que faleceu aos 84 anos, a 25 de outubro de 1977, Roland Barthes começa um Diário de Luto. Escrito entre outubro de 1977 e setembro de 1979, isto é, em dois dos seus últimos três anos de vida, o Diário de Luto, de Roland Barthes foi escrito a tinta e a lápis em fichas que o próprio preparava a partir de folhas de papel A4 cortadas em quatro e das quais mantinha sempre uma reserva sobre a mesa. Feito de fragmentos, este diário é constituído por notas breves, sem conexão, e, sobretudo, por uma obsessão sobre o luto entrecortada por outra, a da escrita e da linguagem. Nele, Barthes escreve sobre o afeto pela mãe e sobre a dor da perda, mas também sobre o próprio ato de escrever um diário.

Escrever para recordar? Não para me recordar, mas para combater a dilaceração do esquecimento.

Não quero falar disto com medo de fazer literatura — ou sem a ter a certeza de que não o será — embora de facto a literatura tenha origem nestas verdades.

Habito a minha tristeza e isso faz-me feliz. Tudo o que me impede de habitar a minha tristeza é insuportável para mim.

Uma amiga aconselhou-me o livro pouco tempo depois da morte da minha mãe. Despreparada, peguei nele uns dias depois, com a urgência de encontrar um refúgio longe da cacofonia do mundo e próximo da minha profunda tristeza. Encontrei nele um ribeiro de clarividência e, ao mesmo tempo, um exemplo da grande tenacidade da escrita. Há um enorme cuidado em fazer o relato seja desta morte, seja desta vida que acabou; qualquer abordagem ao sofrimento trazido por ela é feita com delicadeza e com uma exigência de concisão. Não é que, por ser escrito por um cuidador, o discurso esteja impregnado de um amor sem culpa, pelo contrário. Aquele que tudo deu, pensa sempre que podia ter dado mais.

para a minha irmã

8 de julho de 2019

quando era pequena, adoeci algumas vezes com febres graves em consequência de mudanças radicais. uma delas, recordo, todavia não sem embaraço, deu-se quando mudei a primeira vez de escola, do Colégio onde estava desde os 3 anos, para a escola pública. fiquei doente logo no primeiro dia, passado apenas umas horas de aulas e apresentações, tendo chegado a casa já fraca e com delírios, para grande aflição da minha mãe. na escola, diante das risadas dos meus colegas, tinha ficado levantada à espera que os professores entrassem na sala e se sentassem e tinha falado em inglês com a professora perante o escárnio da turma. o meu pudor era estranho pois, no Colégio, o que eu queria era ser a primeira a responder bem a tudo e ter as melhores notas. nunca quis ir para a escola pública nem nunca deixei de querer, era uma inevitabilidade, dado que no Colégio o ensino não ia até ao 12º ano. fora dos muros que eu conhecia, contudo, o mundo era demasiado grande e grotesco, um prolongado logro pontuado por respiradouros aqui e ali. habitado por interditos e pela possibilidade de os romper, o Colégio contrastava com um ambiente onde nada era exigido nem proibido e onde a minha identidade se lavrou muitas vezes através de provocações. depois disso, as febres voltaram ainda algumas vezes, mas nunca mais de forma tão violenta. com os solavancos, criei defesas ainda que a minha vulnerabilidade sempre soubesse não estar totalmente protegida. limpa e certeira, a desilusão está sempre mais perto do que o espanto.

3 de julho de 2019

A poesia é o verdadeiro real absoluto. Isso é a essência da minha filosofia. Quanto mais poético, mais verdadeiro.

Novalis

23 de junho de 2019

ocultar o rosto. barbas, maquilhagem, tatuagens, o cabelo que se força a cobrir a testa, fotografias com óculos e orelhas de animais virtuais, e os recursos ao photoshop que, entre olhos aumentados e defeitos escondidos, aumentam e se diversificam.
o que é o rosto? em Lévinas, o seu grande filósofo, o rosto não deve ser entendido no sentido próprio. ele excede qualquer descrição possível, seja a cor dos olhos, a forma do nariz, o desenho dos lábios, o seu eixo, como qualquer outra característica ou atributo. Lévinas descreve o rosto como uma miséria, uma vulnerabilidade e uma indigência que, em si, sem palavras explícitas, imploram ao sujeito uma resposta, exigindo-lhe apoio e ajuda. o acesso ao rosto é, pois, imediatamente ético: "Le visage s’impose à moi sans que je puisse cesser d’être responsable de sa misère. La conscience perd sa première place" (Totalité et infini, 1961). nele, o olhar é conhecimento, perceção. está sempre a nu, oferecido, exposto, sem defesa. a relação social com outrem impede a sua objetivação, a sua descrição. e é ambivalente: na sua nudez, a primeira palavra, que não é dita mas cujo significado é expresso, é «não matarás». mas a nudez do rosto traz consigo igualmente a mensagem inversa, a da tentação do homicídio. enfim, o rosto «fala», reclama que lhe respondamos e que respondamos por ele. a sua aparição é um mandamento moral, uma ordem.
tenho prazer em contemplar rostos completamente nus, sem maquilhagem ou adereços, pois são uma potência ativa reveladora de intimidade. tão mais perto se encontram da beleza mais intacta quanto mais perigosamente se aproximam da nudez mais crua, mais pobre.


14 de junho de 2019

de cada vez que o vento se levanta, um buliço atinge as árvores e o pó, de modo que parece que um avião parte, atravessando o céu perto dos telhados. ao que dei conta, devem ter partido cem aviões esta tarde e eu, deitada no sofá, olhando pela janela para as casas silentes e sem mudança, ouvi-os atentamente a todos. caindo a noite, o vento sossegou. os pássaros começaram a aparecer na varanda e senti vontade de ouvir música. deslizei para fora do sofá e vim ocupar a cadeira à frente da escrivaninha, olhando para as listas de artistas que guardei no computador. será errado profanar o silêncio do meu luto? como poderei usar uma língua que nasceu da tua extinção? depois de ti, o que é que eu vou dizer? a atenção dissipou-se, os objetos desta casa esquivam-se aos seus nomes, a tradução de um pecado tornou-se concêntrica, sem fim e sem destino. o sol arde, mas não vejo os teus destroços. estás fora da linguagem,

exata
intacta
inteira

como o princípio de um precipício.

*

para a minha mãe, que faria anos hoje.

11 de junho de 2019

teria saudades de fazer aquele caminho, embalada pela luz do estio, vagarosa e soberba, que todos os lagartos procuravam. a paz era tanta que a cada passo se afundava mais profundamente, contudo, sem peso, como se a terra a recebesse pela primeira vez e, assim, pudesse participar do seu âmago, intacto e inexplorado. procurava agora a água, mas, sem a encontrar, esperou. o céu sem nuvens era ameaçador, como uma doença. sem esperar nada, esperou ainda até a noite cair completamente, altura em que as pessoas começaram a aparecer, passando por ela sem notarem a sua presença compacta e inabalável. de uma alegria que encontra o deserto, diluiu-se num medo que sabe do silêncio da morte, sombra feminina sem expressão, sem eloquência, sem força. levantou-se do nada sem desejar mover-se e procurou a ousada metáfora para o jogo do tempo, que só no fim executava os seus movimentos e se cumpria. o sono alcançou-a e desistiu da vigília. o caminho perfeito foi esquecido para sempre, a água inundou-lhe os sonhos e o medo elevou-se à intrépida insensatez do amor.

16 de maio de 2019

Não podemos deixar de ser como somos, só para agradar a quem não é como nós.

Monge cartuxo anónimo.

26 de abril de 2019

Quem tem coragem de rir é dono do mundo, quase como quem está pronto para morrer.

Giacomo Leopardi

7 de abril de 2019

acontece por vezes cruzar-me com pessoas de quem gosto, mas que não me apetece cumprimentar. no supermercado, na fila para o cinema, na rua, nos transportes, na praia, há sítios que parecem exigir a nossa liberdade por via do anonimato. não há desprezo ou desconsideração nestas ocasiões, apenas o desejo de estar só, concentrada no que estou a fazer, quer isso seja caminhar ou comprar legumes. sou nefelibata, os devaneios na deriva pela cidade são constantes e necessários. quando me apanham, fico envergonhada, acomete-me um certo desespero por me faltarem as palavras ou por receio de perder o fio à meada dos meus pensamentos, muitas vezes textos a fazerem-se em pleno éter, alguns posteriormente concretizados, outros devorados pela impotência, pela falta de coragem ou de arrogância. o contrário também me acontece, vejo pessoas de quem não conheço senão simpatia evitarem cruzar olhares comigo ou serem surpreendidas num momento de intimidade. como podemos pretender salvaguardar a nossa intimidade nos locais públicos? o direito à intimidade está circunscrito a uma esfera restrita da vida privada, na qual, é bem suposto, ninguém pode penetrar sem consentimento. nesse sentido, ela é inviolável e, como diz Hannah Arendt, é regulada pelo princípio da exclusividade. a intimidade é a esfera que comanda as escolhas pessoais e legalmente, o que constitui a vida íntima das pessoas não é de interesse público. porque é exclusiva, sente-se lesada quando é invadida sem autorização. ora, hoje em dia (que do passado não sei), o acesso à intimidade quotidiana exerce sobre nós uma atração tremenda. queremos olhar para dentro das casas, conhecer as biografias, participar dos segredos, num movimento em direção ao ínfimo, ao insignificante, ao parcial. ao mesmo tempo que se circunscreve cirurgicamente a intimidade ao domínio do intangível, queremos penetrar o mais possível a sua esfera. em que nos transformamos quando surpreendemos e vigiamos o íntimo? o choque da familiaridade conforta-nos e seduz-nos e a estranheza entre nós e os outros cessa.