15 de junho de 2017

reparámos no cão ferido ao mesmo tempo e, sem interromper a conversa, abrandámos o passo. nenhum de nós sabia o que fazer. se fossemos a conduzir parávamos o carro?, ocorreu-me. ela baixou-se para observar melhor o estado do animal que respirava com dificuldade. depois voltou a levantar-se, constatando que nada havia a fazer para o salvar. «ligamos a um veterinário?», «sim, ligamos a alguém», respondi com uma certa displicência, pois, sendo feriado, ambos sabíamos que não ia ser fácil encontrar alguém disposto a vir por termo ao sofrimento do animal. foi por isso com surpresa que, à primeira chamada, ouvimos um sim. no tempo que tivemos de esperar fomos deixando de ter assunto, os silêncios tornaram-se cada vez mais longos e mais incómodos. o cão continuava vivo em cima da poça de sangue e, ainda que desconhecêssemos os benefícios de ter um animal de companhia, a sua dor foi-se entranhando em nós. despedimo-nos com uma espécie de nojo em tocar um no outro, o que costumávamos fazer naturalmente e até disso tirando proveito. pelo caminho, já sozinho, pensava que não sabia porque não se faz o mesmo aos humanos. nunca voltámos a falar disso mas a lembrança do cão moribundo ficou sempre entre nós, como um vulto ou uma sombra funesta e grosseira. creio que foi isso que acabou por impedir que a nossa proximidade se aprofundasse.

14 de junho de 2017

ela serviu o chá em silêncio, as cortinas ondulavam com o vento que passava através das portas abertas para o quintal. um cão latia ao longe, as cigarras cantavam. enquanto dávamos os primeiros goles, desviámos o olhar para dentro, para nenhures. perguntei de onde vinha o chá, elogiei-o. ela respondeu que era marroquino, que a irmã lhe tinha oferecido há pouco tempo, depois de uma viagem. «é realmente muito bom», disse-lhe. sem saber como chegar ao assunto, perguntei imediatamente a seguir: «quanto tempo tens?». «cerca de um mês», respondeu-me, sem balbuciar nem mostrar surpresa. «tens dores?», «não». levantou-se. dirigiu-se ao quintal, como se tivesse esquecido o chá e eu próprio. levantei-me também e prendi-lhe o cabelo atrás da nuca. fizemos amor e, contra as minhas expetativas, não encontrei feridas no corpo dela inchado pelo calor, apenas alguns sinais do tempo que me excitaram ainda mais. na verdade, era ainda uma mulher jovem, os anos passaram mais entre nós do que sobre ela. fumámos os dois o mesmo cigarro e rimos. «apetece-me ficar quieto ao pé de ti, aqui em tua casa, muitas horas.» olhou para mim sem saber o que dizer, como se receasse que eu não compreendesse a lógica que se tinha imposto. desviei o olhar. bebemos e voltámos a fazer amor, agora com menos pudor ainda. tomámos banho juntos, rimos. o sexo prolongou-se noite dentro, divertidos, uma ternura antiga abria-se entre nós. no dia seguinte, depois de tomarmos o pequeno almoço, vesti-me, peguei na chave, disse-lhe «até já», beijei-a. ela acenou levemente e de repente disse «espera», desaparecendo dentro da casa. voltou trazendo na mão uma caixa de madeira. «o que é?», «depois vês em casa». mal entrei no carro abri-a. tinha cartas com mais de vinte anos que nunca tinha chegado a receber, fotografias, um diário. arranquei, a manhã de neblina oferecia-me espaço para pensar. uma pergunta afligia-me o espírito: porque é que não nos aproximámos antes?

13 de junho de 2017

festas, segredos, ameaças, um júbilo desconcertante, alimentam os meus sonhos. acordar deles é ao mesmo tempo um alívio e um esforço, e nunca sei o que é real, se a vigília se aquilo com que sonhei. seja como for, num caso como no outro, estou sempre à procura de algo que não encontro e, assim, não é tão significativa a diferença que os separa: é o que obscura a divisão que me intriga, como se nela houvesse um terceiro mundo em que ambos se juntam, que porventura fosse o mais real de todos. dizem que quando pintava, Salvador Dalí se deixava adormecer em frente à tela com uma colher na mão pousada no joelho. por baixo colocava um balde de água e, quando a colher caía na água, pintava o que tinha visto durante a impercetível transição entre o estado desperto e o sono. poderíamos pensar que coisas como esta talvez só tivessem lugar no âmbito do surrealismo, que não é feito de sentidos imediatos e privilegia as intrusões na psique, mas também cientistas e filósofos têm trazido revelações estruturantes dos seus sonhos. tudo se passa como se de facto a lucidez não pudesse passar-se deles. e contudo, o que sabemos deles? desde logo, a consciência — de nós próprios mas também do ambiente em que nos encontramos — parece ser impreterivelmente mais aguda, mais preenchida. se permanecem enigmáticos, mesmo quando pensamos ter aprendido a sua língua, talvez seja porque a imaginação não se encerra na descrição da vida ou da morte, que define o nosso tempo e o nosso espaço. a relação ambígua que mantemos com eles demonstra que somos meros rumores das nossas ficções.
durante anos deixei de o ver. não o procurei e creio que ele também não me procurou, a acreditar naquilo que deveras não sei. nesse tempo, fomos estranhos um para o outro mesmo quando pensámos um no outro. o pouco que dele recordei foram pequenos olhares sem importância, palavras ocasionais, um rosto antigo onde nada se lia. hoje vi-o. não o chamei. vi-o passar do outro lado da rua, caminhava rapidamente, sozinho, com um olhar assertivo e compenetrado, vestia umas calças de ganga e um casaco azuis. ocorreu-me imediatamente que pode bem ter sido a última vez que o vi e um prazer súbito mas incompreensível assomou ao meu espírito. não pensei em mais nada até que desaparecesse ao fundo da rua contornando uma esquina, mas agora que estou a salvo interrogo-me: o que fez o meu coração disparar? que fragilidade insuperável se instalou sem o envolver? pouco mais somos que fogos involuntários cuja existência só é revelada quando tudo ardeu.
Porque precisa de tempo, o amor destrói-se a si próprio.

Nicklas Luhmann

2 de junho de 2017

E penso
A face fraca do poema / a metade na página
Partida
Mas calo a face dura
Flor apagada no sonho
Eu penso
A dor visível do poema / a luz prévia
Dividida
Mas calo a superfície negra
Pânico iminente do nada.

Ana Cristina César

30 de maio de 2017

Rumor do mundo não é mais que um sopro
De vento que ora aqui ora ali passa,
E ao mudar de lugar muda de nome.

Dante Alighieri, A Divina Comédia.

25 de maio de 2017

A canção de Seikilos

Hoson zēs, phainou
Mēden holōs sy lypou;
Pros oligon esti to zēn
To telos ho chronos apaitei.

As long as you live, shine,
Let nothing grieve you beyond measure.
For your life is short,
and time will claim its toll.

23 de maio de 2017

mal entrámos em casa dirigiu-se ao frigorífico, que abriu e observou longamente, e, antes que eu pudesse dizer alguma coisa, tinha aberto todos os armários para procurar chávenas de café. sem tempo de reagir, percebi, um pouco confusamente, que ela gostava de invadir mas não de se revelar. na minha casa arrumada por devassar, usava a sua força e despudor como uma capa que eu observava atentamente mas pela qual me desinteressava. desconhecia portanto, concluí, que tudo está a descoberto. talvez por isso, tinha facilidade em criar relações instantaneamente, a maioria das quais, supus, como aquela que havia acabado de nascer entre nós, não passavam de um envolvimento superficial ou mesmo — eis o meu terror — equívoco. a comparação com ele foi inevitável. também ele tinha invadido a minha casa antes, quando a visitou pela primeira vez, descalçando-se imediatamente, abrindo o frigorífico e os armários, demorando-se em todos os cantos onde havia livros e instalando-se confortavelmente no sofá como se este já lhe conhecesse o peso e as formas. ao contrário dela, ele usava e abusava de tudo o que pudesse forjar a mínima centelha de emoção, dirigindo-se a mim totalmente exposto, como se nisso gozasse de um certo prazer. disse-me, não muito tempo depois, que na exibição das suas fraquezas havia uma violência inescapável que as transformava no seu lado bom. essa violência atraía-me e dava azo a uma brandura, por exemplo no sexo, conferindo ao amor elasticidade. perante a exposição da sua fragilidade, a minha própria fragilidade cresceu: diante dele sentia-me como uma criança, indefesa e desprotegida, e era assim que me queria manter, como se houvesse alcançado um refúgio seguro onde me encontrava, com ele, do avesso. entre ela e ele havia portanto esta diferença, entre quem se revela e quem se esconde, quem se deixa sucumbir e quem se protege, quem mergulha e quem fica na margem a observar o rio que corre.
Ninguém sabe se o vento arrasta a lua ou se a lua
arranca um vento às escuras.
As salas contemplam a noite com uma atenção extasiada.
Fazemos álgebra, música, astronomia,
um mapa
intuitivo do mundo. O sobressalto,
a agonia, às vezes um monstruoso júbilo,
desencadeiam
abruptamente o ritmo.

— Um dedo toca nas têmporas, mergulha tão fundo
que todo o sangue do corpo vem à boca
numa palavra.
E o vento dessa palavra é uma expansão da terra.


Herberto Helder, in A Última Ciência.

18 de maio de 2017

em dias de vento intenso como o de hoje, lembro-me sempre de um dia de tempestade há mais de trinta anos atrás. a minha irmã e eu levávamos a bata azul do colégio por cima da roupa, uma mochila e um chapéu de chuva cada uma. o céu estava negro quando saímos de casa, ameaçador, mas num instante estaríamos na escola. de mão dada, subimos a ladeira e os pingos começaram a cair, passando rapidamente a uma bátega que, apesar da proteção, encharcou as roupas e os sapatos. quando chegámos ao "Rossio", um amplo descampado de terra batida que tínhamos de atravessar, o vento surpreendeu-nos: vinha, em tufões, de todos os lados. como os nossos corações batiam em uníssono, eu soube que a minha irmã teve medo e a minha irmã soube que tive medo. a meio do baldio, o extraordinário acontece: uma lufada de vento levanta-me do chão. com o chapéu de chuva na mão, durante uns segundos, fui como um balão na mão da minha irmã. olhávamos uma para a outra incrédulas quando, diligente como sempre foi, a minha irmã me dá um puxão com força para voltar ao chão. nos nossos olhos havia agora a certeza de que ninguém acreditaria se contássemos. acho que nunca o fizemos.

11 de maio de 2017

e ali mesmo, diante do olhar de todos, ela levantou-se para ir à casa de banho com o tampão na mão. não o escondeu no bolso, não o levou numa carteira, não procurou fugir aos olhares: no final da reunião tirou-o da mala descontraidamente, continuando a falar. o gesto foi para mim de tal modo inaugurador, que não consegui disfarçar um ligeiro sorriso nem tirar os olhos dela enquanto atravessava a sala. a chave do feminismo estava ali. quem de entre nós mostra o penso ou o tampão na mão quando o vai mudar? quis fazê-lo imediatamente. contudo, havia tanto que ter em conta. mostrar o objeto é mostrar que se sangra, é mostrar o próprio sangue. fazê-lo em família, no trabalho, com os amigos, no café, no comboio, num jantar, em que situações estaria pronta a fazê-lo e, sobretudo, em que situações me proibiria de o fazer? testei-me. eu, que sempre tinha escondido esses utensílios dos olhares, passei a fazer do momento da troca um acontecimento carregado de intencionalidade e revestido de declaração política. ainda hoje é.

6 de maio de 2017

quero ir numa exploração à Mongólia, caminhar em silêncio contra mil ventos, apagando aos poucos a lembrança de onde vim e fixar o horizonte como uma eternidade sem destino. lá, serei como o cavalo, sábio e forte, encostarei a cara à terra, cuja modulação erótica e apocalíptica me atacará ferozmente, emocionando-me como uma ausência. a alucinação dos sons bate-me no corpo e o seu ritmo, árido e metafísico, leva-me ao fundo do tempo onde há carência de tudo menos da morte. caminharei com um amigo em silêncio, comerei com ele, e, juntos, inventaremos a alegria que ninguém toca por ser uma perigosa proliferação de universos. quando voltar, deixarei a mão direita no meu lugar, com a sua vocação para viver entre a germinação das formas. não procurarei ninguém e ninguém me procurará. sento-me à varanda da minha casa a apreciar a nespereira do jardim diante carregada de fruta que cairá antes de ser colhida, e tudo — sol, céu, nuvem, chuva, calor e frio —, será como uma anunciação.
Como o ruído era para ele, antes da surdez, a forma perceptível que a causa de um movimento revestia, os objetos movidos sem ruído parecem sê-lo sem causa; despojados de toda a qualidade sonora, mostram uma atividade espontânea, parecem viver; movem-se, imobilizam-se, pegam fogo sozinhos. Sozinhos levantam voo como os monstros alados da Pré-história.

Marcel Proust, Em busca do tempo perdido, volume III – O lado de Guermantes.

1 de maio de 2017

uma temporalidade desesperada torna-se real e a sua beleza preenche a distância. olho-me ao espelho e um rosto enigmático mostra-me o animal dilacerado pela imaginação. somos admitidos na luz febril da manhã e a sua multidão de sombras tempestuosas abre uma estrada eterna. não toco em nada. nos confins do mundo, procuro a violência, a morte. transporto um pesado, inquietante silêncio. o êxtase vem e o meu corpo aprova mas a minha consciência está perturbada. insensata e maliciosa, uma palavra precipita-se e ganha forma, como um incêndio.