0. Um dia uma parte do corpo começa a doer ao levantar, a frase no livro que gostámos tanto de ler enterrou-se não se sabe onde, pensamos que temos de correr para apanhar aquele autocarro e abrandamos o passo. Enquanto esses eventos não se destacam ainda dos outros, até quando intocados, descobrimos através deles que começámos a envelhecer.
1. Em menos de 24h dois acontecimentos levam-me à amarga constatação que nunca vi um grão de trigo. Eu que quero ver todas as montanhas do mundo, que gostava de ver um deserto de gelo e um de fogo, que quero ler quanto conseguir, que quero aprender outra língua e a tocar um instrumento antes de morrer e que aprendi a nadar no ano passado só para saber o que era isso, nunca vi um grão de trigo. Quase me envergonho. Não passo do quase porque de facto ainda não morri e sei onde há campos de trigo.
2. Sei que um dia destes vou fazer alguém passar vergonha no cinema. É a segunda vez que me acontece. Estou a ver os pescadores e a pesca no écrã, cânticos, força, água, sangue, peles queimadas. No regresso da faina, um grupo em pé em cima de um dos barcos acena à câmara. Suprimo a tempo o meu acenar de resposta.
3. Num dos barcos os sons raptam-me. Gaivotas, cordas a passar por metal, metal a girar sobre metal, metal a chocalhar, um motor. Sou chamada e não sei onde estou.
4. Os pastores fazem queijo de cabra. Sinto um nó atar-se na alma e renego todos os supermercados onde tenho posto os pés. Prometo a mim mesma que farei uma refeição de queijo de cabra, pão caseiro, uvas brancas, nozes e vinho.
5. Num dos filmes vejo uma figueira só com folhas novas. Pergunto-me se isso ainda existe.
6. É uma festa para comemorar o início da Primavera, cortam uma árvore e tiram-lhe a casca no cimo de um monte para a trazer para baixo para a aldeia e voltar a erguê-la. As mulheres esperam os homens no vale com um piquenique. Entre as crianças há uma que não se distrai com a câmara, olha para dentro a comer um naco de pão. Está a pensar e eu penso que talvez ela pense em cinema.
7. No fim da festa nenhum som. Esse som que tantas insónias me trouxe.
O Mundo Perdido de Vittorio De Seta (Curtas-metragens de Vittorio De Seta 1954-1959), hoje na Cinemateca Portuguesa.
6 de outubro de 2013
29 de setembro de 2013
O que me interessa na linguagem - qualquer forma de linguagem - é a sua relação com o silêncio. O que me interessa no silêncio é a ausência de relação que o caracteriza e que dá forma em nós ao desejo de dizer. Talvez não haja música sem ouvinte. Mas o que há de mais profundo é silêncio, que não procede nem prossegue, não existe nem é nada porquanto o que é não tem relação com o tempo. E no entanto, não sei como nem onde, está em mim.
17 de setembro de 2013
O meu primeiro beijo foi roubado. Ele chamava-se Ivo. Era um rapaz de aparência rude, pequeno, com orelhas grandes e cheio de sardas. Achava-o muito bruto e como ele deitava perdigotos nunca brincava com ele, aliás, evitava estar perto dele. Mas como as crianças e os pássaros andam sempre em bando, fui como toda a gente à festa de aniversário dele. Levava o meu vestido de fazenda cor-de-rosa, a estrear, que eu tinha ajudado a desenhar, e um laço no cabelo.
O Ivo morava num castelo. Não estou a inventar nem a ser metafórica, o Ivo morava num castelo com masmorras e torres e portas pesadas de madeira, paredes e chão de pedra, um poço, alçapões, lareiras do tamanho de casas, num sítio onde demorámos muito tempo a chegar. Com o olho à janela fui perdendo de vista as casas e quando chegámos a paisagem tinha o esplendor inóspito dos sobreiros que parecem reafirmar com prepotência o vazio em redor. Ao sair do carro, quando vi o castelo pela primeira vez, parei de pensar.
À porta para nos receber estava uma mulher grande, alta, de formas exuberantes, com o cabelo muito loiro (e como era a primeira vez que estava a ver cabelos pintados pensei Porque é que o Ivo não é loiro) e muito comprido, vestida com roupas modernas, os lábios pintados de vermelho, os olhos de azul, com pulseiras e colares, um cigarro sempre na mão, e cuja voz era demasiado grossa e rouca para uma mulher. Era a mulher mais bela que tinha visto. Parecia irreal. Era hipnotizante. Onde ela estava, o ar era raro. No interior, uma sala com sofás de veludo verde. Ela, sorrindo efusivamente, dava a boas vindas aos pais e dizia às crianças que tudo era permitido.
Brincámos até ser noite. Subimos à torre para ver o mundo, jogámos às escondidas na masmorra. Um caçador mostrou-nos as armas. Comemos tantos doces que julguei não voltar a ter fome. E vi o Ivo andar de cavalo, o que antes de significar que eu estava doida quase fez dele um rapaz giro.
À hora de jantar fomos cantar os parabéns. Toda a gente se reuniu à volta da mesa e eu estranhei ver a minha mãe ao lado da mulher loira. Muito composta e bem comportada, fiquei ao fundo da mesa, do lado oposto ao bolo e portanto oposto também ao lugar do Ivo. E eis que a minha mãe me chama para ir para perto dele. Disse que não o mais discretamente possível com a cabeça. Disse que não com a cabeça e com os olhos. Disse que não com a cabeça, com os olhos e com o corpo. E fui.
Enquanto cantávamos os parabéns, fiquei ao lado dele a sentir-me uma jarra, uma jarra contrariada, com a luz das velas a iluminar a zanga e o embaraço que eu queria esconder. Foram segundos até que no momento de apagar as velas, em vez de as apagar, o Ivo se volta para mim e me dá um beijo na boca. Afastei-o com todas as minhas forças, olhei-o nos olhos, gritei não e corri dali para fora. Ainda hoje me lembro da humidade. E não é do castelo.
O Ivo morava num castelo. Não estou a inventar nem a ser metafórica, o Ivo morava num castelo com masmorras e torres e portas pesadas de madeira, paredes e chão de pedra, um poço, alçapões, lareiras do tamanho de casas, num sítio onde demorámos muito tempo a chegar. Com o olho à janela fui perdendo de vista as casas e quando chegámos a paisagem tinha o esplendor inóspito dos sobreiros que parecem reafirmar com prepotência o vazio em redor. Ao sair do carro, quando vi o castelo pela primeira vez, parei de pensar.
À porta para nos receber estava uma mulher grande, alta, de formas exuberantes, com o cabelo muito loiro (e como era a primeira vez que estava a ver cabelos pintados pensei Porque é que o Ivo não é loiro) e muito comprido, vestida com roupas modernas, os lábios pintados de vermelho, os olhos de azul, com pulseiras e colares, um cigarro sempre na mão, e cuja voz era demasiado grossa e rouca para uma mulher. Era a mulher mais bela que tinha visto. Parecia irreal. Era hipnotizante. Onde ela estava, o ar era raro. No interior, uma sala com sofás de veludo verde. Ela, sorrindo efusivamente, dava a boas vindas aos pais e dizia às crianças que tudo era permitido.
Brincámos até ser noite. Subimos à torre para ver o mundo, jogámos às escondidas na masmorra. Um caçador mostrou-nos as armas. Comemos tantos doces que julguei não voltar a ter fome. E vi o Ivo andar de cavalo, o que antes de significar que eu estava doida quase fez dele um rapaz giro.
À hora de jantar fomos cantar os parabéns. Toda a gente se reuniu à volta da mesa e eu estranhei ver a minha mãe ao lado da mulher loira. Muito composta e bem comportada, fiquei ao fundo da mesa, do lado oposto ao bolo e portanto oposto também ao lugar do Ivo. E eis que a minha mãe me chama para ir para perto dele. Disse que não o mais discretamente possível com a cabeça. Disse que não com a cabeça e com os olhos. Disse que não com a cabeça, com os olhos e com o corpo. E fui.
Enquanto cantávamos os parabéns, fiquei ao lado dele a sentir-me uma jarra, uma jarra contrariada, com a luz das velas a iluminar a zanga e o embaraço que eu queria esconder. Foram segundos até que no momento de apagar as velas, em vez de as apagar, o Ivo se volta para mim e me dá um beijo na boca. Afastei-o com todas as minhas forças, olhei-o nos olhos, gritei não e corri dali para fora. Ainda hoje me lembro da humidade. E não é do castelo.
16 de setembro de 2013
Há dois tipos de crise: aquela que procede da angústia e é uma explosão de revolta pela constatação de que as coisas são irrevogavelmente distantes da sua origem e aquela que é trazida pela luz, a claridade ou a dolorosa ausência de sombras das imagens que concede acesso ao horror. Nenhuma crise é mais terrível do que o amor puro.
15 de setembro de 2013
Eu estava sozinha mas eram poucos os momentos em que me permitia ficar nesse encontro com a minha própria amplitude, sem acrescentar nem ocultar nada para poder parecer menos isolada ou menos diferente. Havia nisso um sabor supremo. Uma serenidade. E eu tinha um ritual para o saborear.
No meu quarto em silêncio, ficava a escutar atentamente uma linguagem que por vezes não compreendia. Encontrava através dela uma mulher a nascer mas a grande maioria das imagens permaneciam misteriosas. Sem as distinguir suficientemente, não sabia que qualidade do assombro existia nela. Interrogava-me se, como num livro de crianças para pintar, teria de ser eu com o tempo a definir as suas cores. Ou se simplesmente um dia seria ela a engolir-me. Certo é que queria apoderar-me daquela música. Queria dominá-la, que é o mesmo que dizer que queria poder ouvir tudo, sem véus, sem enigmas, e traduzi-la.
Descia à cidade depois do jantar mas não ia directamente para a praça encontrar os amigos que me esperavam. Fazia um desvio.
Entrava nas ruas escuras, onde era suposto não ir. O caminho era mais longo do que o habitual e o movimento na rua era diferente. Por vezes, ninguém. O nevoeiro subindo do rio, o bafo da minha boca, sons de pequenas pedras a rolar, animais que passavam. Outras vezes desconhecidos. Pessoas mais velhas que eu encostadas à parede de uma casa a fumar ou sentadas nos degraus de um edifício. Conversas que se interrompiam quando eu passava. Olhos. Uma liberdade virgem que a esforço não me fazia sorrir.
Entrava no salão de jogos, o maior, cheio de fumo, muito barulho, onde iam as pessoas mais velhas e portanto eu não podia entrar. A vibração mudava assim que eu me aproximava e aqueles que estavam à entrada me viam. Dirigia-me à Jukebox e punha a tocar o Wild Thing do Jimi Hendrix. Enquanto a música tocava eu dançava, cantava e sorria quanto fosse a minha vontade. Vivia aquilo que estava a viver, tudo o que em mim estava a viver. Sobretudo o indecifrável.
No meu quarto em silêncio, ficava a escutar atentamente uma linguagem que por vezes não compreendia. Encontrava através dela uma mulher a nascer mas a grande maioria das imagens permaneciam misteriosas. Sem as distinguir suficientemente, não sabia que qualidade do assombro existia nela. Interrogava-me se, como num livro de crianças para pintar, teria de ser eu com o tempo a definir as suas cores. Ou se simplesmente um dia seria ela a engolir-me. Certo é que queria apoderar-me daquela música. Queria dominá-la, que é o mesmo que dizer que queria poder ouvir tudo, sem véus, sem enigmas, e traduzi-la.
Descia à cidade depois do jantar mas não ia directamente para a praça encontrar os amigos que me esperavam. Fazia um desvio.
Entrava nas ruas escuras, onde era suposto não ir. O caminho era mais longo do que o habitual e o movimento na rua era diferente. Por vezes, ninguém. O nevoeiro subindo do rio, o bafo da minha boca, sons de pequenas pedras a rolar, animais que passavam. Outras vezes desconhecidos. Pessoas mais velhas que eu encostadas à parede de uma casa a fumar ou sentadas nos degraus de um edifício. Conversas que se interrompiam quando eu passava. Olhos. Uma liberdade virgem que a esforço não me fazia sorrir.
Entrava no salão de jogos, o maior, cheio de fumo, muito barulho, onde iam as pessoas mais velhas e portanto eu não podia entrar. A vibração mudava assim que eu me aproximava e aqueles que estavam à entrada me viam. Dirigia-me à Jukebox e punha a tocar o Wild Thing do Jimi Hendrix. Enquanto a música tocava eu dançava, cantava e sorria quanto fosse a minha vontade. Vivia aquilo que estava a viver, tudo o que em mim estava a viver. Sobretudo o indecifrável.
Entrámos finalmente no jardim. Nunca lá tinha estado, era enorme. Começámos a descer a colina da entrada e observei o horizonte verde onde grupos de crianças corriam sobre o relvado, várias pessoas se reuniam em redor de toalhas estendidas sobre a terra, havia jogos de raquetes, namorados escondidos atrás de arbustos ou abraçados ao sol, bandos de pássaros chilreavam e levantavam voo da copa das árvores. Enquanto os amigos com quem estava começavam a escolher um lugar para ficarmos, notei ao longe um engenho colorido que nunca tinha visto. Parecia ser um carrossel. Havia contudo naquele carrossel qualquer coisa de extraordinário que me atraía inexoravelmente. A partir do momento em que o vi, longínquo, ao fundo do jardim, não consegui mais desviar dele a minha atenção. Ao contrário, chamei os meus amigos. Procurei dizer-lhes como estava ali à nossa frente, a poucos passos de nós, a coisa mais assombrosa que alguma vez tinha visto e que devíamos ir lá. Mas nenhum deles olhou para o engenho ou para mim. Portanto comecei a atravessar o jardim em direcção a ele.
Será difícil descrever esta máquina. Na sua base estava o casco de um grande barco em madeira. O mastro principal era cruzado por uma verga de igual tamanho e em cujas extremidades rodavam quatro cascos de embarcações, igualmente de madeira, duas de cada lado. Com o interior encostado ao interior do outro casco, faziam lembrar nozes, um pouco mais pequenas que o barco de madeira na base da estrutura. Das extremidades da verga ao topo do mastro, pendia uma corda com bandeirolas coloridas, semelhantes às bandeiras tibetanas de orações. Chamo-lhe máquina ou carrossel porque, para além de parecer haver alguém a vigiar, à excepção da base e do mastro principal, tudo estava em movimento. As cascas de noz giravam na horizontal e na vertical, rodando uma sobre a outra, em simultâneo, o mesmo movimento de cada lado, e a verga rodava a grande velocidade. Era um movimento impossível. Tinha de perceber como funcionava e para que servia.
Depois de caminhar durante muito tempo, alcancei o fim do jardim onde encontrei um lago dentro de uma caverna. Para ver a máquina teria de o atravessar mas não sabia como pois a única coisa que os meus olhos podiam avistar ao redor era pedra. Hesitei durante alguns minutos, tentando encontrar uma solução. Não sabia nadar e seja como for não sei se poderia nadar aquela distância. Do outro lado do lago, a máquina continuava a girar. Distinguia-se agora melhor a pessoa que se encontrava perto da base, caminhando de um lado para o outro lentamente. Não havia mais ninguém para além dele perto da máquina. Como um druida, tinha um capuz e uma espécie de cajado, mais ou menos da sua altura. Podia ver-se a sua longa barba branca. Já me tinha visto.
Olhei para a máquina. Precisava de a ver de perto. As águas negras do lago ocultavam a sua profundidade e espelhavam-se no tecto da gruta, reflexos verdes, azuis, amarelos, o mundo negro, onde as aparências deixam de ser, começava ali. Olhei para os meus pés perto da água. Ondas minúsculas batiam na rocha. Decido avançar, coloco um pé sobre a água.
Mal me preparo para dar um passo sobre a água fico nua. Estou neste momento em pé dentro de uma pequena embarcação que avança a remos. O remador coloca uma capa negra sobre o meu corpo imóvel. O druida está voltado para mim e espera-me.
Chegamos ao outro lado do lago. A embarcação pára para me deixar sair e volta a partir. Estou finalmente diante dele. É colossal. O movimento dos cascos é prodigioso. Estou siderada, penso, tento pensar mas não consigo encontrar um correspondente em nada que tenha visto ou ouvido relatar. Estou também a ignorar o druida, que se mantém num dos lados da máquina e me observa durante alguns minutos até começar a falar:
- O que vieste aqui fazer?
- Vim para ver.
Menti. Não sei porquê. Na verdade eu tinha feito a viagem para entrar na máquina e experimentar o seu movimento. Lembrei-me que estava nua por baixo do manto negro e tive medo. Queria perguntar-lhe qual era a moeda que tinha de pagar para poder dar uma volta no carrossel mas o meu ego causava-me embaraço. Ele continuou a falar.
- Vieste para dizer a palavra.
- Qual palavra?
- Tu sabes a palavra.
Então o druida removeu o seu capuz. Era um velho de barbas brancas que me olhava com o meu próprio rosto. O meu rosto masculino e envelhecido. Havia uma grande atração entre nós, que eu talvez não possa explicar. Ainda em choque, senti que poderia morrer às mãos dele. A sua mão ergueu-se com uma grande espada e quando me cortou o pescoço, a luz que emanei devolveu-me à vigília. Acordei a sorrir.
Será difícil descrever esta máquina. Na sua base estava o casco de um grande barco em madeira. O mastro principal era cruzado por uma verga de igual tamanho e em cujas extremidades rodavam quatro cascos de embarcações, igualmente de madeira, duas de cada lado. Com o interior encostado ao interior do outro casco, faziam lembrar nozes, um pouco mais pequenas que o barco de madeira na base da estrutura. Das extremidades da verga ao topo do mastro, pendia uma corda com bandeirolas coloridas, semelhantes às bandeiras tibetanas de orações. Chamo-lhe máquina ou carrossel porque, para além de parecer haver alguém a vigiar, à excepção da base e do mastro principal, tudo estava em movimento. As cascas de noz giravam na horizontal e na vertical, rodando uma sobre a outra, em simultâneo, o mesmo movimento de cada lado, e a verga rodava a grande velocidade. Era um movimento impossível. Tinha de perceber como funcionava e para que servia.
Depois de caminhar durante muito tempo, alcancei o fim do jardim onde encontrei um lago dentro de uma caverna. Para ver a máquina teria de o atravessar mas não sabia como pois a única coisa que os meus olhos podiam avistar ao redor era pedra. Hesitei durante alguns minutos, tentando encontrar uma solução. Não sabia nadar e seja como for não sei se poderia nadar aquela distância. Do outro lado do lago, a máquina continuava a girar. Distinguia-se agora melhor a pessoa que se encontrava perto da base, caminhando de um lado para o outro lentamente. Não havia mais ninguém para além dele perto da máquina. Como um druida, tinha um capuz e uma espécie de cajado, mais ou menos da sua altura. Podia ver-se a sua longa barba branca. Já me tinha visto.
Olhei para a máquina. Precisava de a ver de perto. As águas negras do lago ocultavam a sua profundidade e espelhavam-se no tecto da gruta, reflexos verdes, azuis, amarelos, o mundo negro, onde as aparências deixam de ser, começava ali. Olhei para os meus pés perto da água. Ondas minúsculas batiam na rocha. Decido avançar, coloco um pé sobre a água.
Mal me preparo para dar um passo sobre a água fico nua. Estou neste momento em pé dentro de uma pequena embarcação que avança a remos. O remador coloca uma capa negra sobre o meu corpo imóvel. O druida está voltado para mim e espera-me.
Chegamos ao outro lado do lago. A embarcação pára para me deixar sair e volta a partir. Estou finalmente diante dele. É colossal. O movimento dos cascos é prodigioso. Estou siderada, penso, tento pensar mas não consigo encontrar um correspondente em nada que tenha visto ou ouvido relatar. Estou também a ignorar o druida, que se mantém num dos lados da máquina e me observa durante alguns minutos até começar a falar:
- O que vieste aqui fazer?
- Vim para ver.
Menti. Não sei porquê. Na verdade eu tinha feito a viagem para entrar na máquina e experimentar o seu movimento. Lembrei-me que estava nua por baixo do manto negro e tive medo. Queria perguntar-lhe qual era a moeda que tinha de pagar para poder dar uma volta no carrossel mas o meu ego causava-me embaraço. Ele continuou a falar.
- Vieste para dizer a palavra.
- Qual palavra?
- Tu sabes a palavra.
Então o druida removeu o seu capuz. Era um velho de barbas brancas que me olhava com o meu próprio rosto. O meu rosto masculino e envelhecido. Havia uma grande atração entre nós, que eu talvez não possa explicar. Ainda em choque, senti que poderia morrer às mãos dele. A sua mão ergueu-se com uma grande espada e quando me cortou o pescoço, a luz que emanei devolveu-me à vigília. Acordei a sorrir.
14 de setembro de 2013
Não houve em toda a minha vida nada mais importante do que ter tido uma irmã. A autobiografia não me interessa, a biografia interessa-me o suficiente. Tenho muitas histórias que aguardam o seu momento, que aguardam que os anos passem para as publicar, quando possam ser apenas um conto, literatura. Da minha irmã contudo, não consigo dizer nada. É a minha ficção mais profunda. Aquela que me devolve a minha própria imagem. A que vive onde não há nada, no espaço sem eco da grande incógnita.
11 de setembro de 2013
Não sei se o mesmo acontece na vossa família mas na minha família há algumas histórias que são contadas à mesa repetidamente, nas poucas reuniões que ainda fazemos anualmente. São sempre as mesmas histórias, não muitas. Cada pessoa tem duas ou três histórias preferidas e a mesma pessoa a conta durante algum tempo, ou seja, ao longo de alguns anos. Por assim dizer, calha na conversa. Não é que decidamos «agora vamos para ali contar histórias antigas». Mas não sei se é natural e menos ainda posso assegurar que seja espontâneo. É um ritual que nos liga a todos e que serve para alimentar essa ligação. Penso que há como uma necessidade que nos constringe ao momento, mais ou menos raro por ser anual, e à escolha de palavras que vamos usar, porque estamos a lidar com coisas que por vezes já não lembramos bem. Somos todos muito atentos a esse momento e a essas palavras. Ninguém se levanta, ou se levanta, mantém o ouvido à mesa. Estas histórias renovam-se lentamente. A primeira renovação chega pela pessoa que a conta. Se a princípio foi a minha mãe ou o meu pai que ouvimos contarem a história que vou contar a seguir, mais tarde, aos poucos, outras pessoas começaram a contá-la. A pessoa que a conta parece por vezes usá-la como homenagem à pessoa de quem se fala na história ou então parece querer fazer reviver o acontecimento, e em primeiro para o reapresentar a si próprio. A segunda renovação chega pelo nascimento. Um filho, um neto, um sobrinho, um bebé faz renovar a vida de uma família essencialmente porque as histórias são novas. É assim que, nos almoços e jantares de Natal, de Páscoa, de alguns aniversários mas também nos funerais, nos vemos uns aos outros a pensar através das ficções que vamos narrando uns aos outros.
Aos cerca de 3, 4 anos eu não conseguia dormir. Não era falta de conforto nem preocupações nem medo do escuro a tirarem-me o sono. Os meus pais não conseguiam encontrar a razão. Eu não chorava nem me queixava, apenas não dormia. O médico também não soube explicar e não havia outra criança que sofresse do mesmo mal com quem os meus pais me pudessem comparar. Ora, o meu pai gostava de ver a TV2. Na altura havia um ciclo de filmes semanais (que entretanto regressou) que se chamava o Cinco Noites, Cinco Filmes e que consistia em cinco filmes sobre uma determinada temática ou autor ou protagonista a emitir nas cinco noites dos dias de semana à mesma hora. Assim, por exemplo, houve a semana dos Westerns e a semana do Hitchcock, a semana do cinema italiano, a semana do cinema francês, e por aí fora. A luz ficava apagada com a sala iluminada apenas pelo écrã. O meu pai sentava-se no sofá mais perto da televisão e eu queria sempre ficar mas era forçada a ir para a cama enrolar caracóis. Lembro-me de ficar a ouvir o filme, de olhos abertos, até adormecer; ouvia-se um ruído de electricidade para além do som do próprio filme. Até que um dia os meus pais me deixaram ficar.
Nesse dia estava sentada no sofá grande, oposto à televisão. Eles perguntaram se eu queria ficar, eu disse que sim sem um som, com a cabeça. Eles estavam os dois à porta, os dois a fechar juntos a porta, já do lado do corredor, com a porta meio fechada. O meu pai disse à minha mãe «Não te preocupes, não faz mal» e a minha mãe ainda preocupada acabou por aceder. Senti alívio. O alento de quem fica livre. Escondi-o profundamente porque não queria que mo voltassem a levar.
Então comecei a sentar-me ali praticamente todos os dias da semana até aos 18 anos. Ficava a ver os filmes e quando a sessão acabava desligava a televisão e ía para a cama. E foi assim que vi pela primeira vez filmes de terror, sozinha, no escuro, com 3 ou 4 anos. A minha irmã, que ao contrário de mim era muito medrosa, não queria nem ouvir falar disso. Só a sugestão do tema (como «filme de...») já a assustava ao ponto de não conseguir ela dormir ou começar a chorar. Ela sonhava com o terror que não queria imaginar. Nos olhos da minha mãe vi inverosimilhança durante muito tempo. Depois foi ela quem transformou a história em piada a ser contada à mesa anualmente. Transformou em piada o que saía da norma e que ela não conseguia entender. Ainda hoje ela diz que não percebe como eu conseguia ver aquilo sozinha e afirma peremptoriamente que nunca viu outra criança a fazê-lo. Uma criança a ver filmes de terror impressionou toda a gente mas, não sei porquê, a impressão que esses filmes me causavam a mim era tão excitante que era impossível ter medo. O que eu via era tão surreal, tão surpreendente e por vezes tão poético, que me acontecia frequentemente rir. Lembro-me da descoberta desse pensamento fundador de que a criatividade torna tudo possível enquanto via um deles.
Não sei porquê, nunca mais vi filmes de terror. Todo o entusiasmo que em criança tinha por eles se desfez. Mas o hábito fez-se e vi outros filmes. Também vi filmes com bolinha. Enquanto crescia vi os filmes de Bergman, de Tarkovski, os musicais americanos, o Eisenstein, o Chaplin, o Manoel de Oliveira, a Marylin, o Woody Allen e outros na televisão da casa dos meus pais, sozinha. Filmes que continuei a ver e a rever. Na cidade onde nasci, um deserto menos movimentado que o Sahara, onde à época nem havia cinema, este hábito teve o seu quê de salvífico. Talvez por isso a história surja à mesa quando alguém quer falar de mim.
Aos cerca de 3, 4 anos eu não conseguia dormir. Não era falta de conforto nem preocupações nem medo do escuro a tirarem-me o sono. Os meus pais não conseguiam encontrar a razão. Eu não chorava nem me queixava, apenas não dormia. O médico também não soube explicar e não havia outra criança que sofresse do mesmo mal com quem os meus pais me pudessem comparar. Ora, o meu pai gostava de ver a TV2. Na altura havia um ciclo de filmes semanais (que entretanto regressou) que se chamava o Cinco Noites, Cinco Filmes e que consistia em cinco filmes sobre uma determinada temática ou autor ou protagonista a emitir nas cinco noites dos dias de semana à mesma hora. Assim, por exemplo, houve a semana dos Westerns e a semana do Hitchcock, a semana do cinema italiano, a semana do cinema francês, e por aí fora. A luz ficava apagada com a sala iluminada apenas pelo écrã. O meu pai sentava-se no sofá mais perto da televisão e eu queria sempre ficar mas era forçada a ir para a cama enrolar caracóis. Lembro-me de ficar a ouvir o filme, de olhos abertos, até adormecer; ouvia-se um ruído de electricidade para além do som do próprio filme. Até que um dia os meus pais me deixaram ficar.
Nesse dia estava sentada no sofá grande, oposto à televisão. Eles perguntaram se eu queria ficar, eu disse que sim sem um som, com a cabeça. Eles estavam os dois à porta, os dois a fechar juntos a porta, já do lado do corredor, com a porta meio fechada. O meu pai disse à minha mãe «Não te preocupes, não faz mal» e a minha mãe ainda preocupada acabou por aceder. Senti alívio. O alento de quem fica livre. Escondi-o profundamente porque não queria que mo voltassem a levar.
Então comecei a sentar-me ali praticamente todos os dias da semana até aos 18 anos. Ficava a ver os filmes e quando a sessão acabava desligava a televisão e ía para a cama. E foi assim que vi pela primeira vez filmes de terror, sozinha, no escuro, com 3 ou 4 anos. A minha irmã, que ao contrário de mim era muito medrosa, não queria nem ouvir falar disso. Só a sugestão do tema (como «filme de...») já a assustava ao ponto de não conseguir ela dormir ou começar a chorar. Ela sonhava com o terror que não queria imaginar. Nos olhos da minha mãe vi inverosimilhança durante muito tempo. Depois foi ela quem transformou a história em piada a ser contada à mesa anualmente. Transformou em piada o que saía da norma e que ela não conseguia entender. Ainda hoje ela diz que não percebe como eu conseguia ver aquilo sozinha e afirma peremptoriamente que nunca viu outra criança a fazê-lo. Uma criança a ver filmes de terror impressionou toda a gente mas, não sei porquê, a impressão que esses filmes me causavam a mim era tão excitante que era impossível ter medo. O que eu via era tão surreal, tão surpreendente e por vezes tão poético, que me acontecia frequentemente rir. Lembro-me da descoberta desse pensamento fundador de que a criatividade torna tudo possível enquanto via um deles.
Não sei porquê, nunca mais vi filmes de terror. Todo o entusiasmo que em criança tinha por eles se desfez. Mas o hábito fez-se e vi outros filmes. Também vi filmes com bolinha. Enquanto crescia vi os filmes de Bergman, de Tarkovski, os musicais americanos, o Eisenstein, o Chaplin, o Manoel de Oliveira, a Marylin, o Woody Allen e outros na televisão da casa dos meus pais, sozinha. Filmes que continuei a ver e a rever. Na cidade onde nasci, um deserto menos movimentado que o Sahara, onde à época nem havia cinema, este hábito teve o seu quê de salvífico. Talvez por isso a história surja à mesa quando alguém quer falar de mim.
10 de setembro de 2013
8 de setembro de 2013
A contraste do pensamento abstracto, o problema do pensamento analítico é o mesmo do nazismo: a assumpção de primazia. É o pensamento dos mercados, totalizante, sintético, redutor. As perguntas sem resposta, como aquelas que as crianças formulam, não têm aqui lugar. Mas mais do que reduzir a interrogação a uma fórmula que não admite divisões, o pensamento lógico exceptua o pensamento alheio. Não é só a diversidade que está em causa mas a capacidade da dúvida, enquanto matéria criadora. O saber unívoco está sob a grande ameaça do poder.
Daí que o grande projecto da lógica tenha sido sempre a instauração de um sistema de linguagem, uma linguagem analítica que destruísse os problemas filosóficos (coisas estranhas que não se podem conhecer como a estética, a ética, o significado da vida e a fé). Trata-se portanto de um projecto de selecção. Uma selecção pela linguagem. O critério é muito simples: o teu problema ou é falso ou é verdadeiro e pode ou não pode ser verificado. Caso não entre nestes critérios, caput, o teu problema não existe. É essa grande frase de Wittgenstein, corrijam-me à-vontade pois vou citar de cor, "O que pode ser dito pode ser dito claramente mas aquilo de que não podemos falar devemos calar. O que está oculto não interessa.", (devo ter comido umas palavras mas é este o sentido).
O que me irrita – e me fez levar a lógica na garganta tantos anos – é que estes rapazes passam a vida a querer que a gente imagine coisas. Situações, proposições, na lógica analítica nada é feito sem o auxílio da imaginação. Podia ser literatura. Podíamos fazer com a lógica o que o Italo Calvino fez com as cartas de tarôt, quando pegou nelas sem saber nada de tarôt para contar uma história a partir das gravuras nelas inscritas. E a imaginação não é passível de demonstrações verificáveis. Uma coisa é o quotidiano, outra coisa é a vida onde esse quotidiano se dá.
Daí que o grande projecto da lógica tenha sido sempre a instauração de um sistema de linguagem, uma linguagem analítica que destruísse os problemas filosóficos (coisas estranhas que não se podem conhecer como a estética, a ética, o significado da vida e a fé). Trata-se portanto de um projecto de selecção. Uma selecção pela linguagem. O critério é muito simples: o teu problema ou é falso ou é verdadeiro e pode ou não pode ser verificado. Caso não entre nestes critérios, caput, o teu problema não existe. É essa grande frase de Wittgenstein, corrijam-me à-vontade pois vou citar de cor, "O que pode ser dito pode ser dito claramente mas aquilo de que não podemos falar devemos calar. O que está oculto não interessa.", (devo ter comido umas palavras mas é este o sentido).
O que me irrita – e me fez levar a lógica na garganta tantos anos – é que estes rapazes passam a vida a querer que a gente imagine coisas. Situações, proposições, na lógica analítica nada é feito sem o auxílio da imaginação. Podia ser literatura. Podíamos fazer com a lógica o que o Italo Calvino fez com as cartas de tarôt, quando pegou nelas sem saber nada de tarôt para contar uma história a partir das gravuras nelas inscritas. E a imaginação não é passível de demonstrações verificáveis. Uma coisa é o quotidiano, outra coisa é a vida onde esse quotidiano se dá.
6 de setembro de 2013
La croissance à l'absence du désir habite tout
enfant. Tout créateur est un enfant habité pour le désir dont il faudra
faire le deuil.
Marie-José Mondzain, Cultura do Possível e Fundação da Vida Pública, conferência na Fundação Calouste Gulbenkian.
O mais terrível dos crimes é a obliteração do real. E o desejo é o que cumpre plenamente a obliteração do real. Com a sua solidão inexaurível, a loucura mantém com o real uma relação de forças nostálgica.
Marie-José Mondzain, Cultura do Possível e Fundação da Vida Pública, conferência na Fundação Calouste Gulbenkian.
O mais terrível dos crimes é a obliteração do real. E o desejo é o que cumpre plenamente a obliteração do real. Com a sua solidão inexaurível, a loucura mantém com o real uma relação de forças nostálgica.
O André Téchiné tem um filme chamado Les
Voleurs onde a certa altura uma personagem diz uma frase que me entrou
pelos ouvidos como um comboio: «nous ne faisons que remplacer». Hoje um
amigo disse-me a mesma coisa: «estamos sempre a substituir». Fez-me
lembrar uma carta que tem uma frase que sei de cor desde que a li a
primeira vez. Recebi-a na véspera do meu casamento e dizia o seguinte:
«Pessoas como tu e eu — e escrevo-te isto com as mãos a tremer — terão
sempre um vazio.» A verdade é incontornável, mesmo em dia de bodas.
2 de setembro de 2013
Durante anos a fio o meu destino de férias foi
a Nazaré, primeiro com os meus pais e mais tarde com a minha tia, uma
bela mulher loira de olhos azuis na altura com os seus 30 e poucos anos.
Com a minha irmã, éramos portanto três loiras de olhos azuis que os
nazarenos recebiam nas ruas e nos mercados com o seu francês, inglês e
alemão cantados mas nunca em português.
Há dois piropos desses anos, colectivos por sinal, que nunca esqueci. Um deles não será original mas foi o meu primeiro piropo. Íamos na autoestrada, primeiro dia de férias e levávamos o vidro aberto. Um carro colocou-se a par do nosso e os rapazes lá dentro começaram a gritar piropos, empoleirados nas janelas, um a seguir ao outro, o condutor a apitar, não fosse o estardalhaço ser pouco. A minha tia se tivesse um buraco tinha-se escondido, vermelha que ficou. Eu e a minha irmã nem estávamos a perceber, ficámos assustadas a princípio. Depois quando ouvimos o que eles diziam, desatámos a rir. As férias estavam ganhas, tínhamos recebido o nosso primeiro piropo!
Noutro ano, eu devia ter uns 14, 15 anos, já podia sair à noite e quando acabei de jantar entrei pelo labirinto antes de me dirigir à praça ao encontro dos amigos. Era tarde e a noite não caía, a cal das paredes cegava, cheirava a creme Nivea e a peixe seco. Após uma esquina, dou de caras com um enorme grupo de homens sentados na esplanada de um restaurante. Adivinhando o que seguia, acelerei o passo. De repente eles aparecem à minha frente. Tinham todos o mesmo fato branco, camisa negra, gravata vermelha e chapéu. Sempre sem parar, juntaram-se e caminhando para trás começam a cantar a Garota de Ipanema. Cantaram a música do início ao fim, sempre a caminhar para trás (que eu não dei mole e nunca parei de andar), com várias vozes e uns batuques. No final tiraram os chapéus e foram embora. Depois disso, fazer parar o trânsito não me pareceu nada de especial.
Há dois piropos desses anos, colectivos por sinal, que nunca esqueci. Um deles não será original mas foi o meu primeiro piropo. Íamos na autoestrada, primeiro dia de férias e levávamos o vidro aberto. Um carro colocou-se a par do nosso e os rapazes lá dentro começaram a gritar piropos, empoleirados nas janelas, um a seguir ao outro, o condutor a apitar, não fosse o estardalhaço ser pouco. A minha tia se tivesse um buraco tinha-se escondido, vermelha que ficou. Eu e a minha irmã nem estávamos a perceber, ficámos assustadas a princípio. Depois quando ouvimos o que eles diziam, desatámos a rir. As férias estavam ganhas, tínhamos recebido o nosso primeiro piropo!
Noutro ano, eu devia ter uns 14, 15 anos, já podia sair à noite e quando acabei de jantar entrei pelo labirinto antes de me dirigir à praça ao encontro dos amigos. Era tarde e a noite não caía, a cal das paredes cegava, cheirava a creme Nivea e a peixe seco. Após uma esquina, dou de caras com um enorme grupo de homens sentados na esplanada de um restaurante. Adivinhando o que seguia, acelerei o passo. De repente eles aparecem à minha frente. Tinham todos o mesmo fato branco, camisa negra, gravata vermelha e chapéu. Sempre sem parar, juntaram-se e caminhando para trás começam a cantar a Garota de Ipanema. Cantaram a música do início ao fim, sempre a caminhar para trás (que eu não dei mole e nunca parei de andar), com várias vozes e uns batuques. No final tiraram os chapéus e foram embora. Depois disso, fazer parar o trânsito não me pareceu nada de especial.
Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
No doce balanço, a caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar
Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor
Mais cheia de graça
É ela menina
Que vem e que passa
No doce balanço, a caminho do mar
Moça do corpo dourado
Do sol de Ipanema
O seu balançado é mais que um poema
É a coisa mais linda que eu já vi passar
Ah, porque estou tão sozinho
Ah, porque tudo é tão triste
Ah, a beleza que existe
A beleza que não é só minha
Que também passa sozinha
Ah, se ela soubesse
Que quando ela passa
O mundo inteirinho se enche de graça
E fica mais lindo
Por causa do amor
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