27 de fevereiro de 2015

coisas sobre o fogo:
  • Fénix
  • a Sarça Ardente, a acácia Seneh que, ateada de fogo, não se consumia
  • Joana d'Arc
  • Leonard Cohen, Who by fire
  • Heraclito, fragmento 16
  • elemento cósmico a que corresponde o calar
  • a Serra a arder
  • uma mesa braseira
A nossa entrada [na CEE] vai provocar gravíssimos retrocessos no país, a Europa não é solidária com ninguém, explorar-nos-á miseravelmente como grande agiota que nunca deixou de ser. A sua vocação é ser colonialista. A sua influência (dos retornados) na sociedade portuguesa não vai sentir-se apenas agora, embora seja imensa. Vai dar-se sobretudo quando os seus filhos, hoje crianças, crescerem e tomarem o poder. Essa será uma geração bem preparada e determinada, sobretudo muito realista devido ao trauma da descolonização, que não compreendeu nem aceitou, nem esqueceu. Os genes de África estão nela para sempre, dando-lhe visões do país diferentes das nossas. Mais largas mas menos profundas. Isso levará os que desempenharem cargos de responsabilidade a cair na tentação de querer modificar-nos, por pulsões inconscientes de, sei lá, talvez vingança!
Portugal vai entrar num tempo de subcultura, de retrocesso cultural, como toda a Europa, todo o Ocidente. Mais de oitenta por cento do que fazemos não serve para nada. E ainda querem que trabalhemos mais. Para quê? Além disso, a produtividade hoje não depende já do esforço humano, mas da sofisticação tecnológica. Os neoliberais vão tentar destruir os sistemas sociais existentes, sobretudo os dirigidos aos idosos. Só me espanta que perante esta realidade ainda haja pessoas a por gente neste desgraçado mundo e votos neste reaccionário centrão.
Há a cultura, a fé, o amor, a solidariedade. Que será, porém, de Portugal quando deixar de ter dirigentes que acreditem nestes valores? As primeiras décadas do próximo milénio serão terríveis. Miséria, fome, corrupção, desemprego, violência, abater-se-ão aqui por muito tempo. A Comunidade Europeia vai ser um logro. O Serviço Nacional de Saúde, a maior conquista do 25 de Abril, e Estado Social e a independência nacional sofrerão gravíssimas rupturas. Abandonados, os idosos vão definhar, morrer, por falta de assistência e de comida. Espoliada, a classe média declinará, só haverá muito ricos e muito pobres. A indiferença que se observa ante, por exemplo, o desmoronar das cidades e o incêndio das florestas é uma antecipação disso, de outras derrocadas a vir.


Natália Correia
sem dúvida, respondeu ele, a olhar para o outro lado da estrada, apesar do sinal estar vermelho para passar. ela aperta-lhe a mão suada que ele quer deslaçar.

24 de fevereiro de 2015

Only this everlasting waiting, eternal helplessness.

Franz Kafka, Diário 1910-1923.

23 de fevereiro de 2015

ambição do escritor em representar a massa, em representar aquilo que representa. e através do contingente, deleite mórbido em demonstrar, irrefutavelmente, a insignificância do significante. procura da beleza, branda, invulgar, simultaneamente abundante e vazia.
várias coisas denunciavam o mau humor do meu pai quando ele entrava em casa: o arfar da sua respiração e a forma assustadora como retinha a fala, cerrando os dentes e os lábios, como que para atrasar a libertação da cólera. mas também o grau de violência com que fechava a porta de casa e a cadência dos seus passos: quanto mais depressa caminhasse e mais pesados fossem os passos, mais negra era a carga que iria despejar. a minha mãe não precisava de fazer muito para nos alertar, simplesmente olhava para nós, um olhar que dizia «cuidado». nós sabíamos o que tínhamos de fazer, ou melhor, o que não podíamos fazer. barulho. nesses dias, assim que ele entrava em casa, eu e a minha irmã interrompíamos a brincadeira ou os trabalhos de casa, íamos para o quarto e tentávamos respirar silenciosamente. no entanto, para funcionar, havia que fingir que isso — o silêncio, o não sair de um canto, a quietude —, correspondia efetivamente a um ambiente normal numa casa com duas crianças pequenas. e isso implicava o confronto. a parte do beijo era mais fácil, era rápido. a parte do jantar e da noite eram as mais difíceis. o medo imperava. sabíamos que nem toda a quietude do mundo seria capaz de evitar os gritos, a fúria. por inexplicáveis, incompreensíveis e injustificáveis que fossem.
num desses dias a minha mãe tinha o jantar pronto. tinha feito açorda, prato que fazia poucas vezes por ser o único prato que eu não comia. para me dar um mimo, nos dias em que fazia açorda ela fazia sempre ovos mexidos com batatas fritas só para mim, que era, ao contrário, um dos meus pratos preferidos, e desta maneira eu não ficava com tanta pena por não estar a comer o mesmo que toda a gente comia. eu era esta criança, que reunia toda a família ao domingo para beber chá e comer bolinhos, por achar importante que estivéssemos juntos. para os convencer dizia-lhes que, se alguém faltasse, isso significava que estávamos ameaçados, que o amor estava ameaçado. todos tinham de ir ao «chá com todos» e todos tinham de beber chá e bolinhos. os ovos mexidos no dia da açorda era um costume já antigo. não é que eu fosse boa boca, não era, mas de alguma forma a minha mãe percebeu que, aquele prato, não conseguia mesmo obrigar-me a comer, e por isso, a partir de determinado momento, deixou de insistir. sentámo-nos à mesa, o meu pai pegou no tacho de barro com a açorda assim que a minha mãe o pousou ao centro e enquanto se servia a minha mãe foi acabar os ovos para me por no prato. o meu prato era branco com flores azuis. o cheiro da açorda era nauseabundo.
começámos a comer, eu deliciada com os meus ovos e batatas fritas, que nesse dia estavam perfeitos.
uma garfada depois, o meu pai pergunta: «mas porque é que ela não está a comer açorda?». congelei. olhei para ele, olhei para a minha mãe, olhei para a minha irmã, não disse nada. nem percebi porque fazia a pergunta, visto que não era uma novidade eu não comer açorda. não percebi se era suposto eu explicar nem sabia como é que havia de explicar uma coisa que estava mais do que explicada. fiquei atónita, mirrei de medo, a minha mãe respondeu: «ela não gosta C.». trocaram-se mais duas ou três frases e de súbito o meu pai levanta-se atirando com a cadeira para trás e dirige-se a mim como um gigante. enche um prato de açorda, senta-se à minha frente, afasta o prato dos ovos e diz-me «come». respondi que não conseguia. pega no prato e numa colher, pede-me para abrir a boca, respondo «não consigo». levanta-se, aperta-me as bochechas com uma mão, a colher na outra que empurra para a boca, pousa o prato, fecha-me a boca com as mãos e aperta-me as narinas gritando «engole». enquanto isto sucedia, a minha irmã e a minha mãe estavam atrás dele, observavam e pediam o mais gentilmente possível que não me obrigasse, mas sem se aproximarem. senti a colherada de açorda, viscosa e repugnante, descer pela garganta. as lágrimas começaram a chegar de enxurrada, como se o corpo estivesse completamente aberto. e ele viu, ficou espantado e sorriu ligeiramente, como se também se orgulhasse com o que ele considerava ser uma rebeldia e que na verdade, todos o sabíamos, não era. nesse momento fugi para o quarto o mais rápido que pude, encostei-me a um canto da cama, na penumbra e calada, rezando para que aquilo tivesse acabado ali. foi quando o ouvi pegar na colher e no prato. e depois os passos pelo corredor, cada vez mais fortes. a minha mãe e irmã seguiram-no até à porta do quarto. a luz acendeu-se e, usando o mesmo método, repetia que «havia de comer aquele prato até ao fim». bastou a ameaça em receber mais uma daquelas colheres na boca, vomitei para cima dele. um vómito-arma, dirigido, para matar. o chão, os pés e as pernas ficaram sujos, ele olhou-os durante uns segundos e depois, provavelmente sem saber o que fazer à fúria, saiu de casa sem dizer palavra.
I am constantly trying to communicate something incommunicable, to explain something inexplicable, to tell about something I only feel in my bones and which can only be experienced in those bones.

Franz Kafka, carta a Milena Jesenska.

22 de fevereiro de 2015

Words and images run riot in my head, pursuing, flying, clashing, merging, endlessly. But beyond this tumult there is a great calm, and a great indifference, never really to be troubled by anything again.

Samuel Beckett, Malone Dies.
sentava-me agora a uma secretária com o meu computador em frente, começava a escrever sobre os meus pais e não saía de lá enquanto não tivesse terminado. comia quando me lembrasse da fome, deitava-me numa cama ou num colchão atrás da secretária para recuperar do sono, saía para caminhar quando alguma coisa me estivesse a bloquear para logo me arrepender e ter de voltar a correr para o computador, eu que odeio correr. o resultado, seria pouco ou seria muito? meia, uma página? cinco, cinquenta, quinhentas páginas? de quanto tempo precisava? de uma tarde, de um mês? um ano, dez? o que tenho para dizer sobre eles? agora sei, neste preciso momento sei, agora começava. agora a indiferença é irrisória. começava pelo fim.

21 de fevereiro de 2015

ora portanto: ando a ler ao meu sobrinho mais velho uma BD que reúne várias histórias de super heróis. hoje chegámos a uma onde aparece pela primeira vez a Mulher Maravilha. ela está num planeta qualquer cheio de gelo e aparece o Batman e o Robin. trocam umas piadas e entretanto ela diz: «bom, venham para dentro antes que gelem.», ao que o Robin diz entredentes para o Batman: «se continuares com essas roupas, vai ser difícil.» e o Batman retorque: «pensamentos puros Robin, mantém os pensamentos puros...».
neste ponto da história, ouvindo o silêncio do meu sobrinho, decidi parar e perguntei-lhe eu «a mulher maravilha é gira?», ao que o meu sobrinho respondeu «hum hum!» acompanhando a interjeição com um aceno de cabeça afirmativo. para minha surpresa, eis que continua (e aqui poderão efetivamente constatar que sim, ele sabe falar): «e aqui há outra! queres veres? (e começa a folhear as páginas, à procura de qualquer coisa no final do livro). eu já vi, está aqui. é a super girl.» decido ajudar. encontro uns desenhos de uma miúda de cabelo comprido loiro atado num rabo de cavalo, mini saia e copa 100b a voar. e pergunto: «gostas desta?» ele diz que sim. e novamente continua: «ela é que é a super menina. mesmo.» eu, que sou macaca e desconheço o que sejam os pensamentos puros de que o Batman estaria a falar, digo-lhe: «que giro, é loira como a mamã não é?». ele sorri. prometi ler mais amanhã e vim embora.

agora, alguém me diga que não estamos já neste ponto se faz favor.

17 de fevereiro de 2015

Thomas Becker, uma das sete fotografias da edição original de Nach der Natur, de 1988, de W.G. Sebald.

16 de fevereiro de 2015

a criança ri porque a mãe, que conversa com uma pessoa que encontrou na rua, ri. não pode participar na conversa, o conteúdo escapa-lhe, é-lhe estrangeiro. espanta-se sim com a repentina rutura do peso do quotidiano, cuja possibilidade, a princípio, se afigura até incompreensível. perante o frio enigma, a criança pergunta-se qual é o preço a pagar por essa alegria de contágio, de pura perda.

15 de fevereiro de 2015

no meio do caminho tinha uma pedra. nunca me esquecerei desse acontecimento na vida das minhas retinas tão fatigadas.
li agora num comentário no facebook No princípio era o verbo. E esse não nos podem tirar e pensei, quase automaticamente, ai podem podem.
já apenas dou crédito àqueles que se recolhem e protegem do mundo, aos que tomam a sua distância sobre sublevações sociais e movimentos políticos, que se rodeiam de cuidados quando usam palavras, atentos ao que nelas se constitui pelo seu verso, que nos escapa e que incomunicável finalmente nos isola. é a piada da vida.

14 de fevereiro de 2015

This bitter earth
What a fruit it bears
What good is love
That no one shares
And if my life
Is like the dust
That hides the glow of a rose
What good am I
Heaven only knows
This bitter earth
Can be so cold
Today you're young
Too soon you're old
But while a voice
Within me cries
I'm sure someone
May answer my call
And this bitter earth
May not be so bitter after all

Clyde Otis

13 de fevereiro de 2015

Remember that my life is wind. I have become the pelican of the desert, the owl of the ruins, and like a sparrow I am sitting alone on the roof.

Forough Farrokhzad, خانه سیاه است [The House is Black].

12 de fevereiro de 2015

quando eu era pequena gostava de um rapaz muito moreno que nunca falava e nunca olhava para mim e que, disseram-me recentemente, tem epilepsia. talvez ainda goste pois é a primeira vez que falo dele, e agora mesmo ainda com incerteza, embora desde essa época reveja frequentemente o seu rosto inescrutável. chamava-se Afonso. tinha o cabelo muito liso, os lábios negros. trazia uma aparência de tal forma insegura quando a cada início de ano entrava na sala, que parecia poder soçobrar em lágrimas a qualquer momento. eu tinha vontade de o resgatar a essa aflição, como de resto a qualquer outra aflição que pudesse atormentá-lo. era uma vontade que me apertava a base da garganta e me ordenava que me levantasse e lhe pegasse na mão para o conduzir até ao lugar onde se quisesse sentar obrigando os outros a meterem-se na sua vida e a olharem para outro lado. ele sentava-se no centro da sala. sentava-se, pousava os olhos na carteira diante dele e a partir dali não olhava nem falava com ninguém. eu procurava o lugar mais próximo possível dele. procurava um lugar de onde pudesse pelo menos contemplar o seu olhar posto sobre a secretária, investigar a cor dos seus olhos, a agilidade das mãos. agora acho espantoso que tivesse feito isto. que uma criança tão pequena possa fazer isto. uma única vez tentei dirigir-lhe a palavra, já não sei exatamente porquê, pretendi ajudá-lo com alguma coisa. ele teve uma reação muito violenta, como se me ralhasse, creio que chegou a levantar-me a voz, embora nem mesmo nesse momento tenha olhado para mim. nunca pude perceber a sua reação e a irredutibilidade desse enigma transformou-me. depois disso continuei a ajudá-lo, como tinha feito até aí, procurando protegê-lo da crueldade dos outros colegas sobretudo, ou tentando suavizar alguma questão de comunicação com a professora (que facilmente se irritava) quando ele era chamado ao quadro, mas em nenhuma outra ocasião voltei a fazer-me visível. no dia em que me disseram que ele tem epilepsia, esperei que alguma coisa se resolvesse em mim, mas apenas voltei a sentir a base da garganta apertar-se. vi com assombro que a improvável vontade de o levar para fora daqui se mantinha bem como a frustração por nunca ter conseguido falar com ele. chamava-se Afonso. tinha o sorriso mais lindo do mundo, bonito ao ponto de me comover. por vezes eu ia para casa repetindo o nome dele contra o meu silêncio e sorrindo sem saber porquê. não sabia porquê. havia um menino chamado Ivo que gostava de mim e que eu odiava, não porque ele fosse mau ou importuno, não era, mas porque o Afonso podia pensar que eu lhe correspondesse. mesmo depois de o Afonso me ter respondido rispidamente, e de com isso eu ter percebido que nunca iria brincar com ele no intervalo, nunca deixei de o proteger em segredo e nunca correspondi às ardentes e arrebatadas propostas do Ivo nem do Pedro nem do Gonçalo, tendo posto termo a qualquer esperança e sem o mais fino fio de dúvida. no dia em que a quarta classe acabou, toda a gente achou que eu estava a chorar por causa da separação da minha melhor amiga mas, embora eu não o tenha desmentido, não é verdade. eu chorei porque o Afonso nem sequer ficou para a festa de despedida e assim nem o meu olhar pôde despedir-se dele.
Um pintor deveria iniciar sempre uma tela com um banho de preto, porque todas as coisas na natureza são negras, exceto quando expostas à luz.

Leonardo da Vinci

9 de fevereiro de 2015

Como pode alguém esconder-se diante daquilo que não tem ocaso?

Como poderia alguém manter-se encoberto face ao que nunca se deita?

Quem poderá esconder-se do fogo que não dorme?


Heraclito, fragmento 16.

8 de fevereiro de 2015

Na Bíblia, o caçador por excelência é o gigante Nemrod, o mesmo a quem a tradição atribui o projeto da torre de Babel, cujo cimo deveria tocar o céu. O autor do Gênesis o define “robusto caçador diante de Deus” (10.9) (e ainda “contra Deus”, segundo a versão latina mais antiga, chamada Vetus Latina [Itala]), e esta sua qualidade venatória era essencial a ponto de ter se transformado em provérbio (“daqui nasce o provérbio: como Nemrod robusto caçador frente a Deus”).
No Inferno XXXI, Dante pune Nemrod, pelo seu “pensamento doentio”, com a perda da linguagem significante (“que assim está para ele qualquer linguagem / como a sua para os outros, a ninguém é conhecida”): ele pode apenas proferir sons privados de sentido (“Raphél may améch zabì almi”) ou, como caçador, tocar a corneta (“[...] alma estúpida / mantém contigo a corneta e com ela te desabafes”).
O que Nemrod caçou? E por que a sua caça é “contra Deus”? Se a punição de Babel foi a confusão das línguas, é provável que a caça de Nemrod tivesse a ver com um aperfeiçoamento artificial da única língua dos homens, que devia abrir à razão um poder sem limites. Isso ao menos deixa entender Dante, quando, para caracterizar a perfídia dos gigantes, fala do “argumento da mente” (Inf., XXXI 55).
É um mero acaso o próprio Dante ter apresentado, no De vulgari Eloquentia, a sua pesquisa do vulgar ilustrando-a constantemente através de imagens de uma caça (“caçamos a língua”, I, XI, 1; “aquilo que caçamos”, I, XV, 8; “as nossas armas de caça”, I, XVI, 2), e que a língua assim perseguida seja assimilada a uma besta feroz, a uma pantera?
Nas origens da nossa tradição literária, a pesquisa de uma língua poética ilustre se coloca assim sob o inquietante signo de Nemrod e da sua caça titânica, quase significando o risco mortal implícito em toda pesquisa sobre a linguagem que queira de algum modo restaurar o esplendor originário.
A “caça da língua” é a um só tempo arrogância insolente anti-divina, que exalta o poder de raciocínio da palavra, e amorosa busca que quer, ao contrário, reparar a presunção babélica. Todo sério empenho humano na palavra deve sempre se confrontar com esse risco.
Na poesia do último Caproni, esses dois temas se aproximam até coincidir na ideia de uma caça obsessiva e feroz cujo objeto é a própria palavra, e que une em si a desconfiança do gigante bíblico sobre os limites da linguagem e a piedosa veneração dantesca. Os dois aspectos da linguagem humana (a nomeação de Nemrod e a amorosa busca do poeta) tornaram-se então indistinguíveis, e a caça é de fato uma experiência mortal, cuja presa – a palavra – é uma besta que, diz Caproni, “vivifica e mata”, e que, “mansa e atroz”, talvez volte uma última vez a vestir o manto pintado da pantera dantesca (mas uma “pantera nebulosa” e “suicida”).
A palavra retorna então à sua própria potência lógica, diz si mesma, e, nesse extremo gesto poético, apreende somente a própria insensatez, aparece apenas no seu desaparecer. O “trompete” que se ouve vibrar “em eco” na música interrompida do último Caproni é a última e abafada ressonância da “alta corneta” delirante de Nemrod, do “robusto caçador diante de Deus”.

Giorgio Agamben, A caça da língua in Categorias Italianas. Estudos de poética e literatura., Edições UFSC, 2014.
Há quatro razões por que os cínicos são assim chamados. Primeiro, por causa da indiferença do seu modo de vida, pois fazem um culto à indiferença e, assim como os cães, comem e fazem amor em público, andam descalços e dormem em barris nas encruzilhadas. A segunda razão é que o cão é um animal sem pudor, e os cínicos fazem culto à falta de pudor, não como sendo falta de modéstia, mas como sendo superior a ela. A terceira razão é que o cão é um bom guarda e eles guardam os princípios da sua filosofia. A quarta razão é que o cão é um animal exigente que pode distinguir entre os seus amigos e inimigos. Portanto, eles reconhecem como amigos aqueles que são adequados à filosofia, e os recebem gentilmente, enquanto os inaptos são afugentados por ele, como os cães fazem, ladrando contra eles.

5 de fevereiro de 2015

embora dele nada seja visível, Danae sabe instantaneamente que é dele a presença que silenciosamente invade o corpo. ela também nada diz, não se demove do seu sono leve. mas quando ele a envolve, completa e imediatamente, há como um sorriso ligeiro sobre os lábios. dizem que não se é mulher se não se souber sorrir perante os abismos.
na força que a procura há violência, energia, impulso, uma estabilidade impossível de negar e — que extraordinário é dizer dela — há rigor. quando chega, chega claramente, quando se move, como se move, e a retirada também, tudo é exato, preciso, próprio. é um silêncio com textura que assim que se declara encontra entrega. a Danae surpreende que o prazer possa ser tão intenso mesmo quando apenas faz parte da imaginação. embora a isto, a ele, não se possa realmente chamar imaginação. Danae não sabe se ele sente a sua rendição. Danae não sabe nada. Danae dorme.
que matéria é esta, em tudo viva, como se fosse a primeira coisa viva, ainda que nada nela o indique, que desperta quando nos aproximamos, que denuncia com limpidez a indivisibilidade entre pensamento e ação, e porta plenitude espontânea, sem combustão, sem absurdo, sem malícia, sem morte, desinteressada como as coisas do mundo, os objetos e os acontecimentos, e entre elas encontrada, por acaso, através de um gesto insignificante?

3 de fevereiro de 2015

e depois, que fazer?
prosseguir na noite
como um gato que escolhe a cama
muda, estrangeira, que importa?
estalar sem nome
como um vaso
oco
que não conheceu eco.
John Cage / Morton Feldman: Radio Happenings I - IV
Nova Iorque, de julho de 1966 a janeiro de 1967

1 de fevereiro de 2015

cheguei cedo àquele ponto da vida em que as escolhas são feitas consoante se submetem em absoluto à vontade que tenho de as fazer. como a única pessoa viva que vê a minha vida sou eu própria, compreendo que por vezes as minhas escolhas possam parecer desprovidas de sentido para os outros. o sentido é de resto uma ideia que só interessa aos outros, aos leitores, aos biógrafos, à família, aos amigos, e no que me diz respeito, há muito que me desfiz dela. há, no entanto, certa classe de vontades, mais rara, que se confunde em absoluto com o sentido. mostram-se altivas porque nos sabem submetidos à sua clareza. e não é raro que estejamos de facto submetidos, é mesmo difícil, embora não impossível, deixarmos de nos submeter, especialmente à sua alegria. mas (feliz ou infelizmente, que não é meu lugar saber pois não fui eu que a criei e portanto não sei para que serve) em jogo com a vida nem a determinação chega nem as evidências se bastam. há evidências que com o tempo se transformam em logros e por sua vez quimeras que ganham viço, surpreendendo-nos um dia com toda a sua perfeição e beleza. pode haver milhares de razões a sustentar uma escolha; tenha ou não sentido, siga mais ou menos amplamente a nossa vontade, nenhuma delas lhe confere a certeza e o garante de ser uma boa escolha. quando vou a uma loja escolher uma caneca, é o objetivo da compra que vai determinar a escolha: se quero uma caneca que dure, se quero uma que seja bonita, se quero uma caneca que dure e seja bonita ou se quero uma caneca terrivelmente feia. mas nem toda a agudeza dos nossos sentidos, aprimorados ao longo de anos de evolução mais uma vida ainda a fazer-se, irão garantir que aquela caneca terrivelmente feia e praticamente inquebrável, não vá desaparecer da cozinha do escritório onde trabalho e para onde a levei. os otimistas dizem que se soubermos bem o que queremos não o falhamos. não saber o que se quer é assim como não ter para onde ir. o que me lembra Porthos, o mosqueteiro grande e desajeitado, a correr para fora do subterrâneo onde acabou de depositar uma bomba e onde morrerá a pensar como é que poe um pé à frente do outro. é este o ponto em que se exercem as escolhas: qual é a natureza da evidência que as suporta? há evidências que estão manchadas pela fantasia, outras pelo desejo, pela ambição, pela inveja. há evidências obscuras, cuja força pode guiar uma vida inteira, e que antecipam no seu íntimo a mais simples clareza. e o amor é da natureza da evidência? se assim fosse não amaríamos os filhos da mesma maneira? e no entanto: haverá sentido em perguntar qual foi o filho que mais custou a Medeia matar? o que é possível escolher? quando a caneca desaparece do escritório não deixa de ser praticamente indesejável e praticamente inquebrável. os pintores por exemplo, passam a grande maioria do seu tempo a tentar obter a cor que já veem. e pintores, escolheram ser?
os nossos juízos, de todas as operações mentais a mais espontânea, não são ideias porque não são pensamentos, mas sim aquilo que diz da validade de um conteúdo de pensamento. não revelam rigorosamente nada da vida psíquica do que emite àquele que compreende. os juízos são unívocos porque dizem respeito à compreensão (e não apenas à interpretação, que pode ser múltipla e portanto equívoca) de um conteúdo de pensamento. ora, a relação da ação com a vida mental é constante. o ato é aquilo que podemos ver de outrem e o que os outros mostram é sempre parcial, condicionado pelo possível e pelo tempo, ou seja, pela própria estrutura do eu e pela História. sem nunca corresponder a uma definição total da vida interior, toda a ação revela também o seu negativo: aniquila tudo o que não é ela própria. somos sempre – e apenas – uma parte de nós próprios. o paradoxo está em que, conscientes disto ou não, o conhecimento está sempre dificultado pelo que se encontra oculto. para me ajudar a orientar nesse breu, um amigo disse-me uma vez que devemos escolher aquilo que gostaríamos de poder fazer até morrer. uma evidência não pode ser persuasiva. não se avalia pelo seu grau de sinceridade, pela realidade que a possa confirmar. a possibilidade e impossibilidade são-lhe anteriores ou posteriores, mas não se lhe ajustam. nunca a força da nossa convicção serve para avaliar uma evidência, diria mesmo que serve apenas para termos cuidado com ela. as evidências só se tornam evidências quando nos tornamos a nossa própria escolha: a firmeza de uma evidência está na sua naturalidade.
não é sem prazer que vejo a alegria excêntrica dos primeiros anos da minha vida converter-se aos poucos numa alegria branda, cada vez mais ténue, e a braços com o grande desconhecido do presente. talvez morra reduzida a um mero sorriso, demasiado subtil por não se dirigir a nem ser visto por ninguém. haja sorte.