12 de fevereiro de 2015

quando eu era pequena gostava de um rapaz muito moreno que nunca falava e nunca olhava para mim e que, disseram-me recentemente, tem epilepsia. talvez ainda goste pois é a primeira vez que falo dele, e agora mesmo ainda com incerteza, embora desde essa época reveja frequentemente o seu rosto inescrutável. chamava-se Afonso. tinha o cabelo muito liso, os lábios negros. trazia uma aparência de tal forma insegura quando a cada início de ano entrava na sala, que parecia poder soçobrar em lágrimas a qualquer momento. eu tinha vontade de o resgatar a essa aflição, como de resto a qualquer outra aflição que pudesse atormentá-lo. era uma vontade que me apertava a base da garganta e me ordenava que me levantasse e lhe pegasse na mão para o conduzir até ao lugar onde se quisesse sentar obrigando os outros a meterem-se na sua vida e a olharem para outro lado. ele sentava-se no centro da sala. sentava-se, pousava os olhos na carteira diante dele e a partir dali não olhava nem falava com ninguém. eu procurava o lugar mais próximo possível dele. procurava um lugar de onde pudesse pelo menos contemplar o seu olhar posto sobre a secretária, investigar a cor dos seus olhos, a agilidade das mãos. agora acho espantoso que tivesse feito isto. que uma criança tão pequena possa fazer isto. uma única vez tentei dirigir-lhe a palavra, já não sei exatamente porquê, pretendi ajudá-lo com alguma coisa. ele teve uma reação muito violenta, como se me ralhasse, creio que chegou a levantar-me a voz, embora nem mesmo nesse momento tenha olhado para mim. nunca pude perceber a sua reação e a irredutibilidade desse enigma transformou-me. depois disso continuei a ajudá-lo, como tinha feito até aí, procurando protegê-lo da crueldade dos outros colegas sobretudo, ou tentando suavizar alguma questão de comunicação com a professora (que facilmente se irritava) quando ele era chamado ao quadro, mas em nenhuma outra ocasião voltei a fazer-me visível. no dia em que me disseram que ele tem epilepsia, esperei que alguma coisa se resolvesse em mim, mas apenas voltei a sentir a base da garganta apertar-se. vi com assombro que a improvável vontade de o levar para fora daqui se mantinha bem como a frustração por nunca ter conseguido falar com ele. chamava-se Afonso. tinha o sorriso mais lindo do mundo, bonito ao ponto de me comover. por vezes eu ia para casa repetindo o nome dele contra o meu silêncio e sorrindo sem saber porquê. não sabia porquê. havia um menino chamado Ivo que gostava de mim e que eu odiava, não porque ele fosse mau ou importuno, não era, mas porque o Afonso podia pensar que eu lhe correspondesse. mesmo depois de o Afonso me ter respondido rispidamente, e de com isso eu ter percebido que nunca iria brincar com ele no intervalo, nunca deixei de o proteger em segredo e nunca correspondi às ardentes e arrebatadas propostas do Ivo nem do Pedro nem do Gonçalo, tendo posto termo a qualquer esperança e sem o mais fino fio de dúvida. no dia em que a quarta classe acabou, toda a gente achou que eu estava a chorar por causa da separação da minha melhor amiga mas, embora eu não o tenha desmentido, não é verdade. eu chorei porque o Afonso nem sequer ficou para a festa de despedida e assim nem o meu olhar pôde despedir-se dele.