1 de fevereiro de 2015

cheguei cedo àquele ponto da vida em que as escolhas são feitas consoante se submetem em absoluto à vontade que tenho de as fazer. como a única pessoa viva que vê a minha vida sou eu própria, compreendo que por vezes as minhas escolhas possam parecer desprovidas de sentido para os outros. o sentido é de resto uma ideia que só interessa aos outros, aos leitores, aos biógrafos, à família, aos amigos, e no que me diz respeito, há muito que me desfiz dela. há, no entanto, certa classe de vontades, mais rara, que se confunde em absoluto com o sentido. mostram-se altivas porque nos sabem submetidos à sua clareza. e não é raro que estejamos de facto submetidos, é mesmo difícil, embora não impossível, deixarmos de nos submeter, especialmente à sua alegria. mas (feliz ou infelizmente, que não é meu lugar saber pois não fui eu que a criei e portanto não sei para que serve) em jogo com a vida nem a determinação chega nem as evidências se bastam. há evidências que com o tempo se transformam em logros e por sua vez quimeras que ganham viço, surpreendendo-nos um dia com toda a sua perfeição e beleza. pode haver milhares de razões a sustentar uma escolha; tenha ou não sentido, siga mais ou menos amplamente a nossa vontade, nenhuma delas lhe confere a certeza e o garante de ser uma boa escolha. quando vou a uma loja escolher uma caneca, é o objetivo da compra que vai determinar a escolha: se quero uma caneca que dure, se quero uma que seja bonita, se quero uma caneca que dure e seja bonita ou se quero uma caneca terrivelmente feia. mas nem toda a agudeza dos nossos sentidos, aprimorados ao longo de anos de evolução mais uma vida ainda a fazer-se, irão garantir que aquela caneca terrivelmente feia e praticamente inquebrável, não vá desaparecer da cozinha do escritório onde trabalho e para onde a levei. os otimistas dizem que se soubermos bem o que queremos não o falhamos. não saber o que se quer é assim como não ter para onde ir. o que me lembra Porthos, o mosqueteiro grande e desajeitado, a correr para fora do subterrâneo onde acabou de depositar uma bomba e onde morrerá a pensar como é que poe um pé à frente do outro. é este o ponto em que se exercem as escolhas: qual é a natureza da evidência que as suporta? há evidências que estão manchadas pela fantasia, outras pelo desejo, pela ambição, pela inveja. há evidências obscuras, cuja força pode guiar uma vida inteira, e que antecipam no seu íntimo a mais simples clareza. e o amor é da natureza da evidência? se assim fosse não amaríamos os filhos da mesma maneira? e no entanto: haverá sentido em perguntar qual foi o filho que mais custou a Medeia matar? o que é possível escolher? quando a caneca desaparece do escritório não deixa de ser praticamente indesejável e praticamente inquebrável. os pintores por exemplo, passam a grande maioria do seu tempo a tentar obter a cor que já veem. e pintores, escolheram ser?
os nossos juízos, de todas as operações mentais a mais espontânea, não são ideias porque não são pensamentos, mas sim aquilo que diz da validade de um conteúdo de pensamento. não revelam rigorosamente nada da vida psíquica do que emite àquele que compreende. os juízos são unívocos porque dizem respeito à compreensão (e não apenas à interpretação, que pode ser múltipla e portanto equívoca) de um conteúdo de pensamento. ora, a relação da ação com a vida mental é constante. o ato é aquilo que podemos ver de outrem e o que os outros mostram é sempre parcial, condicionado pelo possível e pelo tempo, ou seja, pela própria estrutura do eu e pela História. sem nunca corresponder a uma definição total da vida interior, toda a ação revela também o seu negativo: aniquila tudo o que não é ela própria. somos sempre – e apenas – uma parte de nós próprios. o paradoxo está em que, conscientes disto ou não, o conhecimento está sempre dificultado pelo que se encontra oculto. para me ajudar a orientar nesse breu, um amigo disse-me uma vez que devemos escolher aquilo que gostaríamos de poder fazer até morrer. uma evidência não pode ser persuasiva. não se avalia pelo seu grau de sinceridade, pela realidade que a possa confirmar. a possibilidade e impossibilidade são-lhe anteriores ou posteriores, mas não se lhe ajustam. nunca a força da nossa convicção serve para avaliar uma evidência, diria mesmo que serve apenas para termos cuidado com ela. as evidências só se tornam evidências quando nos tornamos a nossa própria escolha: a firmeza de uma evidência está na sua naturalidade.
não é sem prazer que vejo a alegria excêntrica dos primeiros anos da minha vida converter-se aos poucos numa alegria branda, cada vez mais ténue, e a braços com o grande desconhecido do presente. talvez morra reduzida a um mero sorriso, demasiado subtil por não se dirigir a nem ser visto por ninguém. haja sorte.