várias coisas denunciavam o mau humor do meu pai quando ele
entrava em casa: o arfar da sua respiração e a forma assustadora como
retinha a fala, cerrando os dentes e os lábios, como que para atrasar a libertação
da cólera. mas também o grau de violência com que fechava a porta de casa e a cadência dos seus passos: quanto mais depressa caminhasse e mais pesados fossem os passos, mais negra era a carga que iria despejar. a minha mãe não precisava de fazer muito para nos alertar, simplesmente olhava para nós, um olhar que dizia «cuidado». nós sabíamos o que tínhamos de fazer, ou melhor, o que não podíamos fazer. barulho. nesses dias, assim que ele entrava em casa, eu e a minha irmã interrompíamos a brincadeira ou os trabalhos de casa, íamos para o quarto e tentávamos respirar silenciosamente. no entanto, para funcionar, havia que fingir que isso — o silêncio, o não sair de um canto, a quietude —, correspondia efetivamente a um ambiente normal numa casa com duas crianças pequenas. e isso implicava o confronto. a parte do beijo era mais fácil, era rápido. a parte do jantar e da noite eram as mais difíceis. o medo imperava. sabíamos que nem toda a quietude do mundo seria capaz de evitar os gritos, a fúria. por inexplicáveis, incompreensíveis e injustificáveis que fossem.
num desses dias a minha mãe tinha o jantar pronto. tinha feito açorda, prato que fazia poucas vezes por ser o único prato que eu não comia. para me dar um mimo, nos dias em que fazia açorda ela fazia sempre ovos mexidos com batatas fritas só para mim, que era, ao contrário, um dos meus pratos preferidos, e desta maneira eu não ficava com tanta pena por não estar a comer o mesmo que toda a gente comia. eu era esta criança, que reunia toda a família ao domingo para beber chá e comer bolinhos, por achar importante que estivéssemos juntos. para os convencer dizia-lhes que, se alguém faltasse, isso significava que estávamos ameaçados, que o amor estava ameaçado. todos tinham de ir ao «chá com todos» e todos tinham de beber chá e bolinhos. os ovos mexidos no dia da açorda era um costume já antigo. não é que eu fosse boa boca, não era, mas de alguma forma a minha mãe percebeu que, aquele prato, não conseguia mesmo obrigar-me a comer, e por isso, a partir de determinado momento, deixou de insistir. sentámo-nos à mesa, o meu pai pegou no tacho de barro com a açorda assim que a minha mãe o pousou ao centro e enquanto se servia a minha mãe foi acabar os ovos para me por no prato. o meu prato era branco com flores azuis. o cheiro da açorda era nauseabundo.
começámos a comer, eu deliciada com os meus ovos e batatas fritas, que nesse dia estavam perfeitos.
uma garfada depois, o meu pai pergunta: «mas porque é que ela não está a comer açorda?». congelei. olhei para ele, olhei para a minha mãe, olhei para a minha irmã, não disse nada. nem percebi porque fazia a pergunta, visto que não era uma novidade eu não comer açorda. não percebi se era suposto eu explicar nem sabia como é que havia de explicar uma coisa que estava mais do que explicada. fiquei atónita, mirrei de medo, a minha mãe respondeu: «ela não gosta C.». trocaram-se mais duas ou três frases e de súbito o meu pai levanta-se atirando com a cadeira para trás e dirige-se a mim como um gigante. enche um prato de açorda, senta-se à minha frente, afasta o prato dos ovos e diz-me «come». respondi que não conseguia. pega no prato e numa colher, pede-me para abrir a boca, respondo «não consigo». levanta-se, aperta-me as bochechas com uma mão, a colher na outra que empurra para a boca, pousa o prato, fecha-me a boca com as mãos e aperta-me as narinas gritando «engole». enquanto isto sucedia, a minha irmã e a minha mãe estavam atrás dele, observavam e pediam o mais gentilmente possível que não me obrigasse, mas sem se aproximarem. senti a colherada de açorda, viscosa e repugnante, descer pela garganta. as lágrimas começaram a chegar de enxurrada, como se o corpo estivesse completamente aberto. e ele viu, ficou espantado e sorriu ligeiramente, como se também se orgulhasse com o que ele considerava ser uma rebeldia e que na verdade, todos o sabíamos, não era. nesse momento fugi para o quarto o mais rápido que pude, encostei-me a um canto da cama, na penumbra e calada, rezando para que aquilo tivesse acabado ali. foi quando o ouvi pegar na colher e no prato. e depois os passos pelo corredor, cada vez mais fortes. a minha mãe e irmã seguiram-no até à porta do quarto. a luz acendeu-se e, usando o mesmo método, repetia que «havia de comer aquele prato até ao fim». bastou a ameaça em receber mais uma daquelas colheres na boca, vomitei para cima dele. um vómito-arma, dirigido, para matar. o chão, os pés e as pernas ficaram sujos, ele olhou-os durante uns segundos e depois, provavelmente sem saber o que fazer à fúria, saiu de casa sem dizer palavra.